Curso de
leitura dirigida de O Capital
Roteiro da
aula 5, de 11 de setembro, sexta, 19h
Capítulo 4 – Transformação do Dinheiro em
Capital
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Lembrando mais uma vez que O Capital, livro 1, O
processo de produção do capital, tem sete seções.
Seção I
Mercadoria e dinheiro
Seção II
A transformação do dinheiro em capital
Seção
III A produção do mais-valor absoluto
Seção IV
A produção do mais-valor relativo
Seção V
A produção do mais-valor absoluto e relativo
Seção VI
O salário [único claramente subsumível]
Seção
VII O processo de acumulação do capital
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Agora
vejamos de novo a estrutura da Seção I:
Capítulo
1 - A mercadoria
Capítulo
2 - O processo de troca
Capítulo
3 - O dinheiro ou a circulação de mercadorias
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Agora
vejamos, mais uma vez, a estrutura interna desses capítulos
Capítulo
1 - A mercadoria
1. Os
dois fatores da mercadoria: valor de uso e valor (substância do valor, grandeza
do valor)
2. O
duplo caráter do trabalho representado nas mercadorias
3. A
forma de valor ou o valor de troca
A) A
forma de valor simples, individual ou ocasional
B) A
forma de valor total ou desdobrada
C) A
forma de valor universal
D) A
forma-dinheiro
4. O
caráter fetichista da mercadoria e seu segredo
Capítulo
2 - O processo de troca [SUBSUMÍVEL NO ITEM 4 do capítulo 1]
Capítulo
3 - O dinheiro ou a circulação de mercadorias
1.
Medida dos valores
2. O
meio de circulação
a) A metamorfose
das mercadorias
b) O
curso do dinheiro
c) A
moeda. O signo do valor
3.
Dinheiro
a)
Entesouramento
b) Meio
de pagamento
c) O
dinheiro mundial
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Esquematicamente:
M, valor de uso & valor (diferentes tipos de
trabalho)
M-M, valor de troca
Forma relativa, forma equivalente
Forma equivalente universal – dinheiro
M-D-M
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Na Seção II, A TRANSFORMAÇÃO DO DINHEIRO EM CAPITAL, temos
o Capítulo 4, A transformação do dinheiro em capital.
Vejamos
o texto e destaquemos alguns trechos.
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1. A
fórmula geral do capital
A circulação de mercadorias é o ponto de
partida do capital. Produção de mercadorias e circulação
desenvolvida de mercadorias – o comércio – formam os pressupostos históricos a
partir dos quais o capital emerge. O comércio e o mercado mundiais inauguram,
no século XVI, a história moderna do capital.
Se abstrairmos do conteúdo material da circulação das
mercadorias, isto é, da troca dos diversos valores de uso, e considerarmos
apenas as formas econômicas que esse processo engendra, encontraremos, como seu
produto final, o dinheiro. Esse produto final da circulação das mercadorias
é a primeira forma de manifestação do capital.
Historicamente, o
capital, em seu confronto com a propriedade fundiária, assume
invariavelmente a forma do dinheiro, da riqueza monetária, dos capitais
comerciala e usurário1. Mas não é preciso recapitular toda a gênese do capital
para reconhecer o dinheiro como sua primeira forma de manifestação, pois a
mesma história se desenrola diariamente diante de nossos olhos. Todo novo
capital entra em cena – isto é, no mercado, seja ele de mercadorias, de trabalho
ou de dinheiro – como dinheiro, que deve ser transformado em capital mediante
um processo determinado.
Inicialmente, o dinheiro
como dinheiro e o dinheiro como capital se distinguem apenas por sua diferente
forma de circulação.
A forma imediata da circulação
de mercadorias é M-D-M, conversão de mercadoria em dinheiro e reconversão de
dinheiro em mercadoria, vender para comprar. Mas ao lado dessa forma
encontramos uma segunda, especificamente diferente: a forma D-MD,
conversão de dinheiro em mercadoria e reconversão de mercadoria em dinheiro,
comprar para vender. O dinheiro que circula deste último modo
transforma-se, tornase capital e, segundo sua determinação, já é capital.
Analisemos mais de perto
a circulação D-M-D. Ela atravessa, como a circulação simples de mercadorias,
duas fases contrapostas: na primeira, D-M, a compra, o dinheiro é convertido em
mercadoria e, na segunda, M-D, a mercadoria volta a se converter em dinheiro.
Porém, a unidade das duas fases é o movimento inteiro da troca de dinheiro por
mercadoria e desta última novamente por dinheiro, o movimento da compra da
mercadoria para vendê-la, ou, caso se desconsiderem as diferenças formais entre
compra e venda, da compra de mercadoria com dinheiro e de dinheiro com
mercadoria2. O resultado, no qual o processo inteiro se apaga, é a troca
de dinheiro por dinheiro, D-D. Se compro 2 mil libras de algodão por
£100 e revendo as 2 mil libras de algodão por £110, o que faço no fim das
contas é trocar £100 por £110, dinheiro por dinheiro.
Ora, é evidente que o
processo de circulação D-M-D seria absurdo e vazio se a intenção fosse
realizar, percorrendo seu ciclo inteiro, a troca de um mesmo valor em 168
dinheiro pelo mesmo valor em dinheiro, ou seja, £100 por £100. Muito mais
simples e seguro seria o método do entesourador, que conserva suas £100 em vez
de expô-las aos perigos da circulação. Por outro lado, se o mercador revende
por £110 o algodão que comprou por £100, ou se é forçado a liquidá-lo por £100
ou mesmo por £50, de qualquer modo seu dinheiro percorreu um movimento peculiar
e original, de um tipo totalmente distinto do movimento que ele percorre na
circulação simples de mercadorias, por exemplo, nas mãos do camponês que vende
o cereal e, com o dinheiro assim obtido, compra roupas. Temos, portanto, de
examinar as características distintivas das formas dos ciclos D-M-D e
M-D-M. Com isso, revelar-se-á, ao mesmo tempo, a diferença de conteúdo
que se esconde atrás dessas diferenças formais.
Vejamos, antes de tudo,
o que essas formas têm em comum.
As duas formas se
decompõem nas duas fases antitéticas, M-D (venda) e D-M (compra). Em cada uma
das duas fases confrontam-se um com o outro os mesmos dois elementos reificados
[sachlichen], mercadoria e dinheiro, e as mesmas duas pessoas, portando as
mesmas máscaras econômicas: um comprador e um vendedor. Cada um dos dois ciclos
é a unidade das mesmas fases contrapostas, e nos dois casos essa unidade é
mediada pela intervenção de três partes contratantes, das quais uma apenas
vende, outra apenas compra e a terceira compra e vende alternadamente.
Mas o que
realmente diferencia entre si os dois ciclos M-D-M e D-M-D é a ordem invertida
de sucessão das mesmas fases antitéticas de circulação. A circulação
simples de mercadorias começa com a venda e termina com a compra, ao passo que
a circulação do dinheiro como capital começa com a compra e termina com a
venda. Na primeira, o ponto de partida e de chegada do movimento é a mercadoria;
na segunda, é o dinheiro. Na primeira forma, o que medeia o curso inteiro da
circulação é o dinheiro; na segunda, é a mercadoria.
Na circulação M-D-M, o
dinheiro é, enfim, transformado em mercadoria, que serve como valor de uso e é,
portanto, gasto de modo definitivo. J á na forma contrária, D-MD, o comprador
desembolsa o dinheiro com a finalidade de receber dinheiro como vendedor. Na
compra da mercadoria, ele lança dinheiro na circulação, para dela retirálo
novamente por meio da venda da mesma mercadoria. Ele liberta o dinheiro apenas
com a ardilosa intenção de recapturá-lo. O dinheiro é, portanto, apenas
adiantado.
(ardilosamente
investido)
Na forma M-D-M, a mesma
peça monetária muda duas vezes de lugar. O vendedor a recebe do comprador e a
passa a outro vendedor. O processo inteiro, que começa com o recebimento de
dinheiro em troca de mercadoria, conclui-se com o dispêndio de dinheiro por
mercadoria. O inverso ocorre na forma D-M-D. Aqui não é a mesma peça monetária
que muda duas vezes de lugar, mas a mesma mercadoria, e o comprador a recebe das
mãos do vendedor e a passa às mãos de outro comprador. Assim como na circulação
simples de mercadorias as duas mudanças de lugar da mesma peça monetária
implicam a passagem definitiva de uma mão a outra, também aqui a dupla mudança
de lugar da mesma mercadoria implica o refluxo do dinheiro a seu primeiro ponto
de partida.
O refluxo do dinheiro a
seu ponto de partida não depende de a mercadoria ser vendida mais cara do que
foi comprada. Essa circunstância afeta apenas a grandeza da quantia de dinheiro
que reflui. O fenômeno do refluxo propriamente dito ocorre assim que a
mercadoria comprada é revendida, ou seja, assim que o ciclo D-M-D é completado.
Temos aqui, portanto, uma diferença palpável entre a circulação do dinheiro como
capital e sua circulação como mero dinheiro.
O ciclo M-D-M está
inteiramente concluído tão logo o dinheiro obtido com a venda de uma mercadoria
é novamente empregado na compra de outra mercadoria. Se, no entanto, ocorre um
refluxo de dinheiro a seu ponto de partida, isso só pode acontecer por meio da
renovação ou repetição do percurso inteiro. Se vendo 1 quarter de cereal por £3
e com essa quantia compro roupas, as £3 estão definitivamente gastas para mim.
Não tenho mais nenhuma relação com elas. Elas agora pertencem ao comerciante de
roupas. Ora, se vendo mais 1 quarter de cereal, então o dinheiro retorna para
mim, mas não em consequência da primeira transação, e sim apenas de sua
repetição. E ele volta a se separar de mim assim que completo a segunda transação
e volto a comprar. Na circulação M-D-M, portanto, o gasto do dinheiro não tem
nenhuma relação com seu refluxo. J á em D-M-D, ao contrário, o refluxo do
dinheiro é condicionado pelo modo como ele é gasto. Sem esse refluxo, a
operação está fracassada ou o processo está interrompido, ou, ainda, não
concluído, faltando ainda sua segunda fase, a da venda que completa e conclui a
compra.
O ciclo M-D-M parte do
extremo de uma mercadoria e conclui-se com o extremo de uma outra mercadoria,
que abandona a circulação e ingressa no consumo. O consumo, a satisfação de
necessidades – em suma, o valor de uso –, é, assim, seu fim último. O ciclo
D-M-D, ao contrário, parte do extremo do dinheiro e retorna, por fim, ao mesmo
extremo. Sua força motriz e fim último é, desse modo, o próprio valor de troca.
Na circulação simples de
mercadorias, os dois extremos têm a mesma forma econômica. Ambos são
mercadorias. Eles são, também, mercadorias de mesma grandeza de valor. Porém,
são valores de uso qualitativamente diferentes, por exemplo cereal e roupas. A
troca de produtos, a variação das matérias nas quais o trabalho social se
apresenta é o que constitui, aqui, o conteúdo do movimento. Diferentemente do
que ocorre na circulação D-M-D. À primeira vista, ela parece desprovida de
conteúdo, por ser tautológica, mas ambos os extremos têm a mesma forma
econômica. Ambos são dinheiro, portanto, não-valores de uso
qualitativamente distintos, uma vez que o dinheiro é justamente a figura transformada
das mercadorias, na qual estão apagados seus valores de uso específicos. Trocar
£100 por algodão e, em seguida, voltar a trocar esse mesmo algodão por £100, ou
seja, trocar dinheiro por dinheiro, o mesmo pelo mesmo, parece ser uma operação
tão despropositada quanto absurda4. Uma quantia de dinheiro só pode se diferenciar
de outra quantia de dinheiro por sua grandeza. Assim, o processo D-M-D não
deve seu conteúdo a nenhuma diferença qualitativa de seus extremos, pois ambos
são dinheiro, mas apenas à sua distinção quantitativa. Ao final do processo,
mais dinheiro é tirado da circulação do que nela fora lançado inicialmente.
O algodão comprado por £100 é revendido por £100 + £10, ou por £110. A forma
completa desse processo é, portanto, D-M-D’, onde D’ = D + ΔD, isto é, à
quantia de dinheiro inicialmente adiantada mais um incremento. Esse
incremento, ou excedente sobre o valor original, chamo de mais-valor (surplus
value). O valor originalmente adiantado não se limita, assim, a conservar-se na
circulação, mas nela modifica sua grandeza de valor, acrescenta a essa grandeza
um mais-valor ou 170 se valoriza. E esse movimento o transforma em capital.
(O dinheiro se converte
em capital ao aumentar a sua grandeza)
Certamente, também em
M-D-M é possível que os dois extremos M-M, digamos, cereal e roupas, sejam
grandezas de valor quantitativamente distintas. O camponês pode vender seu
cereal acima de seu valor ou comprar roupas abaixo de seu valor. Ele pode, por
outro lado, ser ludibriado pelo vendedor de roupas. No entanto, para a forma da
circulação que agora consideramos, tal diferença de valor é puramente
acidental. O fato de o cereal e as roupas serem equivalentes não priva o
processo de seu sentido, como ocorre com o processo D-M-D. A equivalência de
seus valores é, antes, uma condição necessária para seu curso normal.
A repetição ou renovação
da venda para comprar encontra sua medida, tal como esse processo mesmo, num
fim último situado fora dela, a saber, o consumo, a satisfação de determinadas
necessidades. Na compra para vender, ao contrário, o início e o fim são o
mesmo: dinheiro, valor de troca, e, desse modo, o movimento é interminável.
Sem dúvida, D se torna D + ΔD, e £100 se torna £100 + £10. Porém, consideradas
de modo puramente qualitativo, £110 são o mesmo que £100, ou seja, dinheiro. E
consideradas quantitativamente, £110 são uma quantia limitada de dinheiro tanto
quanto £100. Se as £100 fossem gastas como dinheiro, elas deixariam de
desempenhar seu papel. Deixariam de ser capital. Retiradas da circulação, elas
se petrificariam como tesouro e nem um centavo lhes seria acrescentado, ainda
que permanecessem nesse estado até o dia do J uízo Final. Se, então, o objetivo
é a valorização do valor, há tanta necessidade da valorização de £110 quanto de
£100, pois ambas são expressões limitadas do valor de troca e têm, portanto, a
mesma vocação para se aproximarem da riqueza por meio da expansão de grandeza.
É verdade que, por um momento, o valor originalmente adiantado de £100 se
diferencia do mais-valor de £10 que lhe é acrescentado, mas essa diferença se
esvanece imediatamente. No final do processo, não obtemos, de um lado, o valor
original de £100 e, de outro lado, o mais-valor de £10. O que obtemos é um valor
de £110, que, exatamente do mesmo modo como as £100 originais, encontra-se na
forma adequada a dar início ao processo de valorização. Ao fim do movimento, o
dinheiro surge novamente como seu início5. Assim, o fim de cada ciclo
individual, em que a compra se realiza para a venda constitui, por si mesmo, o
início de um novo ciclo. A circulação simples de mercadorias – a venda
para a compra – serve de meio para uma finalidade que se encontra fora da
circulação, a apropriação de valores de uso, a satisfação de necessidades.
A circulação do dinheiro como capital é, ao contrário, um fim em si
mesmo, pois a valorização do valor existe apenas no interior desse movimento sempre
renovado. O movimento do capital é, por isso, desmedido6.
(acumulação
infinita)
Como portador consciente
desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna capitalista. Sua pessoa, ou
melhor, seu bolso, é o ponto de partida e de retorno do dinheiro. O conteúdo
objetivo daquela circulação – a valorização do valor – é sua finalidade
subjetiva, e é somente enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata é o
único motivo de suas operações que ele funciona como capitalista ou capital
personificado, dotado de vontade e consciência. Assim, o valor de uso
jamais pode ser considerado como finalidade imediata do capitalista. Tampouco
pode sê-lo o lucro isolado, mas apenas o incessante movimento do lucro.
Esse impulso absoluto de 171 enriquecimento, essa caça apaixonada ao valor 9 é
comum ao capitalista e ao entesourador, mas, enquanto o entesourador é apenas o
capitalista ensandecido, o capitalista é o entesourador racional. O aumento
incessante do valor, objetivo que o entesourador procura atingir conservando
seu dinheiro fora da circulação10, é atingido pelo capitalista, que, mais
inteligente, lança sempre o dinheiro de novo em circulação10a.
As formas independentes,
as formas-dinheiro que o valor das mercadorias assume na circulação simples
servem apenas de mediação para a troca de mercadorias e desaparecem no
resultado do movimento. Na circulação D-M-D, ao contrário, mercadoria e
dinheiro funcionam apenas como modos diversos de existência do próprio valor: o
dinheiro como seu modo de existência universal, a mercadoria como seu modo de
existência particular, por assim dizer, disfarçado11. O valor passa
constantemente de uma forma a outra, sem se perder nesse movimento, e, com
isso, transforma-se no sujeito automático do processo. Ora, se tomarmos as
formas particulares de manifestação que o valor que se autovaloriza assume
sucessivamente no decorrer de sua vida, chegaremos a estas duas proposições: capital
é dinheiro, capital é mercadoria. Na verdade, porém, o valor se
torna, aqui, o sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante
variação de forma, aparecendo ora como dinheiro, ora como mercadoria, altera
sua própria grandeza e, como mais-valor, repele [abstösst] a si mesmo como
valor originário valoriza a si mesmo. Pois o movimento em que ele
adiciona mais-valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto,
autovalorização. Por ser valor, ele recebeu a qualidade oculta de adicionar
valor. Ele pare filhotes, ou pelo menos põe ovos de ouro.
Como sujeito usurpador
de tal processo, no qual ele assume ora a forma do dinheiro, ora a forma da
mercadoria, porém conservando-se e expandindo-se nessa mudança, o valor requer,
sobretudo, uma forma independente por meio da qual sua identidade possa ser
constatada. E tal forma ele possui apenas no dinheiro. Este constitui, por
isso, o ponto de partida e de chegada de todo processo de valorização. Ele era
£100 e agora é £110 etc. Mas o próprio dinheiro vale, aqui, apenas como uma
das duas formas do valor. Se não assume a forma da mercadoria, o dinheiro não
se torna capital. Portanto, o dinheiro não se apresenta aqui em antagonismo com
a mercadoria, como ocorre no entesouramento. O capitalista sabe que toda
mercadoria, por mais miserável que seja sua aparência ou por pior que seja seu
cheiro, é dinheiro, não só em sua fé, mas também na realidade; que ela é,
internamente, um judeu circuncidado e, além disso, um meio milagroso de se
fazer mais dinheiro a partir do dinheiro.
Se na circulação simples
o valor das mercadorias atinge no máximo uma forma independente em relação a
seus valores de uso, aqui ele se apresenta, de repente, como uma substância em
processo, que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais
do que meras formas. E mais ainda. Em vez de representar relações de
mercadorias, ele agora entra, por assim dizer, numa relação privada consigo
mesmo. Como valor original, ele se diferencia de si mesmo como mais-valor, tal
como Deus Pai se diferencia de si mesmo como Deus Filho, sendo ambos da mesma
idade e constituindo, na verdade, uma única pessoa, pois é apenas por meio do
mais-valor de £10 que as £100 adiantadas se tornam capital, e, assim que isso
ocorre, assim que é gerado o filho e, por meio do filho, o pai, desaparece sua
diferença e eles são apenas um, £110.
O valor se torna, assim,
valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital. Ele sai da
circulação, volta a entrar nela, conserva-se e multiplica-se em seu percurso,
sai da circulação aumentado e começa o mesmo ciclo novamente. D-D’, dinheiro
que cria dinheiro – money which begets money – é a descrição do capital na boca
de seus primeiros intérpretes, os mercantilistas.
Comprar para vender, ou,
mais acuradamente, comprar para vender mais caro, DM-D’, parece ser apenas um
tipo de capital, a forma própria do capital comercial.
Mas também o capital industrial é dinheiro que se transforma em mercadoria
e, por meio da venda da mercadoria, retransforma-se em mais dinheiro. Eventos
que ocorram entre a compra e a venda, fora da esfera da circulação, não alteram
em nada essa forma de movimento. Por fim, no capital a juros, a circulação
D-M-D’ aparece abreviada, de modo que seu resultado se apresenta sem a mediação
ou, dito em estilo lapidar, como D-D’, dinheiro que é igual a mais dinheiro, ou
valor que é maior do que ele mesmo.
Na verdade, portanto, D-M-D’ é a fórmula geral do capital tal como ele aparece
imediatamente na esfera da circulação.
2. Contradições
da fórmula geral
A forma que a circulação
assume quando o dinheiro se transforma em capital contradiz
todas as leis que investigamos anteriormente sobre a natureza da
mercadoria, do valor, do dinheiro e da própria circulação.
O que a distingue da circulação simples de mercadorias é a ordem inversa dos
dois processos antitéticos: a venda e a compra. E como poderia uma diferença puramente
formal como essa alterar a natureza desses processos como que por mágica?
E mais ainda. Essa
inversão só existe para uma das três partes negociantes, que fazem comércio
umas com as outras. Como capitalista, compro mercadorias de A e as revendo a B,
ao passo que, como simples possuidor de mercadorias, vendo mercadorias a B e
compro mercadorias de A. Para os negociantes A e B, não existe essa distinção.
Eles aparecem apenas como compradores ou vendedores de mercadorias. Eu mesmo me
confronto com eles como simples possuidor, ora de dinheiro, ora de mercadorias,
como comprador ou como vendedor e, além disso, em cada uma dessas transações,
confronto-me com uma pessoa apenas como comprador, com outra apenas como
vendedor, com a primeira apenas como dinheiro, com a segunda apenas como
mercadorias, e com nenhuma delas como capital ou capitalista, ou como
representante de qualquer coisa que seja mais do que dinheiro ou mercadorias,
ou que possa surtir qualquer efeito além daquele do dinheiro ou das mercadorias.
Para mim, a compra de A e a venda a B constituem uma série. Mas a conexão entre
esses dois atos só existe para mim. A não se preocupa com minha transação com
B, e tampouco B com minha transação com A. E se eu quisesse explicar a eles o
mérito particular de minha ação, que consiste em inverter a série, eles me
diriam que estou enganado quanto à própria série e que a transação completa não
começa com uma compra e conclui-se com uma 173 venda, mas, inversamente, começa
com uma venda e conclui-se com uma compra. De fato, meu primeiro ato, a compra,
é, do ponto de vista de A, uma venda, e meu segundo ato, a venda, é, do ponto
de vista de B, uma compra. Não satisfeitos com isso, A e B argumentarão que a
série inteira foi supérflua e não passou de um mero truque. A venderá a
mercadoria diretamente a B, e B a comprará diretamente de A. Com isso, a
transação inteira se reduz a um ato unilateral da circulação usual de
mercadorias, sendo do ponto de vista de A um simples ato de venda e do ponto de
vista de B um simples ato de compra. Assim, a inversão da série não nos conduz
para fora da esfera da circulação simples de mercadorias, de modo que temos,
antes, de investigar se nessa circulação simples existe algo a permitir uma
expansão do valor que entra na circulação e, por conseguinte, a criação de
mais-valor.
Tomemos o processo de
circulação na forma em que ele se apresenta como mera troca de mercadorias.
Esse é sempre o caso quando dois possuidores de mercadoria compram mercadorias
um do outro e, no dia do ajuste de contas, as quantias mutuamente devidas são
iguais e cancelam uma à outra. O dinheiro serve, nesse caso, como moeda de
conta, para expressar o valor das mercadorias em seus preços, porém não se
confronta materialmente com as próprias mercadorias. Na medida em que se trata
de valores de uso, é claro que ambas as partes que realizam a troca podem
ganhar. Ambas alienam mercadorias que lhes são inúteis como valores de uso e
recebem em troca mercadorias de cujo valor de uso elas necessitam. E essa
vantagem pode não ser a única. A, que vende vinho e compra cereal, produz
talvez mais vinho do que o agricultor B poderia produzir no mesmo tempo de
trabalho, assim como o agricultor B poderia produzir mais cereal do que o
agricultor A, de modo que A recebe, pelo mesmo valor de troca, mais cereal, e B
recebe mais vinho do que a quantidade de vinho e cereal que cada um dos dois
teria de produzir para si mesmo sem a troca. Com respeito ao valor de uso,
portanto, pode-se dizer que “a troca é uma transação em que ambas as partes saem
ganhando”. Mas o mesmo não ocorre com o valor de troca.
Um homem que possui
muito vinho e nenhum cereal negocia com outro homem, que possui muito cereal e
nenhum vinho, e entre eles é trocado trigo, no valor de 50, por vinho, no mesmo
valor de 50. Tal troca não constitui um aumento do valor de troca para nenhuma
das partes, pois, antes da troca cada um deles já possuía um valor igual àquele
que foi criado por meio dessa operação.
O resultado não se
altera em nada se o dinheiro é introduzido como meio de circulação entre as
mercadorias, e se os atos de compra e venda são separados um do outro16. O
valor das mercadorias é expresso em seus preços antes de elas entrarem em
circulação, sendo, portanto, o pressuposto, e não o resultado desta última.
Considerado
abstratamente, isto é, prescindindo das circunstâncias que não decorrem
imediatamente das leis imanentes da circulação simples de mercadorias, o que
ocorre na troca – além da substituição de um valor de uso por outro – não é
mais do que uma metamorfose, uma mera mudança de forma da mercadoria. O
mesmo valor, i.e., a mesma quantidade de trabalho social objetivado permanece
nas mãos do mesmo possuidor de mercadorias, primeiramente como sua própria
mercadoria, em seguida como dinheiro pelo qual ela foi trocada e, por fim, como
mercadoria que ele compra com esse dinheiro. Essa mudança de forma não
implica qualquer alteração na grandeza do valor, mas a mudança que o valor da
mercadoria sofre nesse processo é limitada a uma mudança em sua forma-dinheiro.
Ela existe, primeiramente, como preço da mercadoria à venda; em seguida, como
uma quantia de dinheiro que, no entanto, já estava expressa no preço; por fim,
como o preço de uma mercadoria equivalente. Essa mudança de forma implica, em
si mesma, tão pouco uma alteração na grandeza do valor quanto a troca de uma
nota de £5 por sovereigns, meio sovereign e xelins.
Assim, na medida em que
a circulação da mercadoria opera tão somente uma mudança formal de seu valor,
ela implica, quando o fenômeno ocorre livre de interferências, a troca de
equivalentes. Mesmo a economia vulgar, que não sabe
praticamente nada sobre o valor, reconhece, quando deseja considerar o fenômeno
em sua pureza, que a oferta e a demanda são iguais, isto é, que seu efeito é
nulo. Mas se no que diz respeito ao valor de uso tanto o comprador quanto o
vendedor podem igualmente ganhar, o mesmo não ocorre quando se trata do valor
de troca. Nesse caso, diz-se, antes: “Onde há igualdade, não há lucro”18. É
verdade que as mercadorias podem ser vendidas por preços que não correspondem a
seus valores, mas esse desvio tem de ser considerado como uma infração da lei
da troca de mercadorias19. Em sua forma pura, ela é uma troca de
equivalentes, não um meio para o aumento do valor.
Por trás das tentativas
de apresentar a circulação de mercadorias como fonte do mais-valor esconde-se,
na maioria das vezes, um quiproquó, uma confusão de valor de uso com valor de
troca. Por exemplo, diz Condillac:
“Não é verdade que na
troca de mercadorias troca-se um valor igual por outro valor igual. Ao
contrário. Cada um dos dois contratantes dá sempre um valor menor em troca de
um valor maior [...]. S e valores iguais fossem trocados, não haveria ganho
algum para nenhum dos contratantes, mas as duas partes obtêm um ganho, ou pelo
menos deveriam obtê-lo. Por quê? O valor das coisas consiste meramente em sua
relação com nossas necessidades. O que para um vale mais, para outro vale
menos, e vice-versa [...]. Não colocamos à venda artigos que são indispensáveis
para nosso próprio consumo [...]. Abrimos mão de uma coisa inútil para nós em
troca de uma coisa que nos é necessária; queremos dar menos por mais [...]. É
natural julgar que, na troca, dá-se um valor igual por outro valor igual,
sempre que cada uma das coisas trocadas vale a mesma quantidade de ouro [...].
Mas outra consideração tem de entrar nesse cálculo; a questão é se cada uma das
partes troca algo supérfluo por algo necessário.”
Vê-se como Condillac não
apenas confunde valor de uso com valor de troca, como, de modo verdadeiramente
pueril, afirma que, numa sociedade em que a produção de mercadorias é bem
desenvolvida, cada produtor produz seus próprios meios de subsistência e só põe
em circulação o excedente sobre sua própria necessidade, o supérfluo. Mesmo assim,
o argumento de Condillac é frequentemente repetido por economistas modernos,
principalmente quando se trata de mostrar que a forma desenvolvida da troca de
mercadorias, o comércio, é produtora de mais-valor. “O comércio” – diz ele, por
exemplo – “adiciona valor aos produtos, pois os mesmos produtos têm mais valor
nas mãos do consumidor do que nas mãos do produtor, e, por isso, ele tem de ser
considerado estritamente (strictly) um ato de produção.”
Mas não se paga duas
vezes pelas mercadorias, uma vez por seu valor de uso e outra vez por seu
valor. E se o valor de uso da mercadoria é mais útil para o comprador do que
para o vendedor, sua forma-dinheiro é mais útil para o vendedor do que para o
comprador. Se assim não fosse, ele a venderia? Com a mesma razão, poder-se-ia
dizer que o comprador realiza estritamente (strictly) um “ato de produção” quando,
por exemplo, transforma as meias do mercador em dinheiro.
Se são trocadas
mercadorias, ou mercadorias e dinheiro de mesmo valor de troca, portanto, equivalentes,
é evidente que cada uma das partes não extrai da circulação mais valor do que
nela lançou inicialmente. Não há, então, criação de mais-valor. Ocorre que, em
sua forma pura, o processo de circulação de mercadorias exige a troca de
equivalentes. Mas as coisas não se passam com tal pureza na realidade. Por
isso, admitamos uma troca de não equivalentes.
Em todo caso, no mercado
de mercadorias confrontam-se apenas possuidores de mercadorias, e o poder que
essas pessoas exercem umas sobre as outras não é mais do que o poder de suas
mercadorias. A variedade material das mercadorias é a motivação material para a
troca e torna os possuidores de mercadorias dependentes uns dos outros, uma vez
que nenhum deles tem em suas mãos o objeto de suas próprias necessidades, e que
cada um tem em suas mãos o objeto da necessidade do outro. Além dessa diferença
material de seus valores de uso, existe apenas mais uma diferença entre as
mercadorias: a diferença entre sua forma natural e sua forma modificada, entre
a mercadoria e o dinheiro. Assim, os possuidores de mercadorias se distinguem
simplesmente como vendedores, possuidores de mercadoria, e compradores,
possuidores de dinheiro.
Suponha, então, que, por
algum privilégio inexplicável, seja permitido ao vendedor vender a mercadoria
acima de seu valor, por exemplo, por £110, quando ela vale £100, portanto, com um
acréscimo nominal de 10% em seu preço. O vendedor embolsa, assim, um mais-valor
de £10. Mas, depois de ter sido vendedor, ele se torna comprador. E eis que um
terceiro possuidor de mercadorias confronta-se com ele como vendedor e usufrui,
por sua vez, do privilégio de vender a mercadoria 10% mais cara do que seu
valor. Nosso homem ganhou £10 como vendedor apenas para perder £10 como
comprador 24. Assim, cada um dos possuidores de mercadorias vende seus artigos
aos outros possuidores de mercadorias a um preço 10% acima de seu valor, o que,
na verdade, produz o mesmo resultado que se obteria se cada um deles vendesse
as mercadorias pelos seus valores. O mesmo efeito de tal aumento nominal dos
preços das mercadorias seria obtido se os valores das mercadorias fossem
expressos em prata, em vez de ouro. As denominações monetárias, isto é, os
preços das mercadorias aumentariam, mas suas relações de valor permaneceriam inalteradas.
Agora suponha, ao
contrário, que o comprador disponha do privilégio de comprar as mercadorias
abaixo de seu valor. Não precisamos, aqui, recordar que o comprador se tornará
vendedor. Ele o era antes de se tornar comprador. Ele perdeu 10% como vendedor
antes de ganhar 10% como comprador 25. Tudo permanece como estava.
Portanto, a criação de
mais-valor e, por conseguinte, a transformação de dinheiro em capital não pode
ser explicada nem pelo fato de que uns vendem as mercadorias acima de seu valor,
nem pelo fato de que outros as compram abaixo de seu valor 26.
O problema não é de modo
nenhum simplificado com a introdução de elementos estranhos, como faz o coronel
Torrens:
“A demanda efetiva
consiste no poder e na inclinação (!) dos consumidores, seja por meio da troca
imediata ou mediata, a dar pelas mercadorias uma porção de ingredientes do
capital numa quantidade maior do que o custo de produção dessas mesmas
mercadorias.”
Na circulação,
produtores e consumidores se confrontam apenas como vendedores e compradores.
Dizer que o mais-valor obtido pelos produtores tem origem no fato de que os
consumidores compram a mercadoria acima de seu valor é apenas mascarar algo que
é bastante simples: como vendedor, o possuidor de mercadorias dispõe do privilégio
de vender mais caro. O próprio vendedor produziu suas mercadorias ou representa
seus produtores, mas também o comprador produziu as mercadorias representadas
em seu dinheiro ou representa seus produtores. Assim, um produtor se confronta
com outro, e o que os diferencia é que um compra e o outro vende. Que o
possuidor de mercadorias, no papel de produtor, vende a mercadoria acima de seu
valor e, no papel de consumidor, paga mais caro por ela é algo aqui irrelevante.
Em nome da coerência, os
representantes da ideia de que o mais-valor provém de um aumento nominal dos
preços ou de um privilégio de que o vendedor dispõe de vender a mercadoria mais
cara do que seu valor teriam de admitir a existência de uma classe que apenas
compra, sem vender – portanto, que apenas consome, sem produzir. A existência de tal classe é ainda inexplicável neste estágio
de nossa exposição, a saber, o da circulação simples.
Todavia, podemos antecipar algumas ideias. O dinheiro com que tal classe
constantemente compra tem de fluir para ela diretamente dos bolsos dos
possuidores de mercadorias, de modo constante, sem nenhuma troca, gratuitamente,
seja pelo direito ou pela força. Para essa classe, vender mercadorias acima de
seu valor significa apenas reembolsar gratuitamente parte do dinheiro
previamente gasto29. É assim que as cidades da Ásia Menor pagavam um tributo em
dinheiro à Roma Antiga. Com esse dinheiro, Roma comprava mercadorias dessas
cidades, e as comprava mais caras do que seu valor. Desse modo, as províncias
ludibriavam os romanos, surrupiando aos conquistadores, por meio do comércio,
uma parte do tributo anteriormente pago. No entanto, os conquistados
permaneciam sendo os verdadeiros ludibriados. Suas mercadorias eram pagas com
seu próprio dinheiro, e esse não é o método correto para enriquecer ou criar
mais-valor.
Mantenhamo-nos,
portanto, nos limites da troca de mercadorias, em que vendedores são
compradores, e compradores, vendedores. Talvez nossa dificuldade provenha do
fato de termos tratado os atores apenas como categorias personificadas, e não
individualmente.
O possuidor de
mercadorias A pode ser esperto o suficiente para ludibriar seus colegas B ou C
de um modo que estes não possam oferecer uma retaliação, apesar de terem toda a
vontade de fazê-lo. A vende vinho a B pelo valor de £40 e, na troca, compra
cereais pelo valor de £50. A transformou suas £40 em £50, menos dinheiro em
mais dinheiro, e sua mercadoria em capital. Observemos a transação mais
detalhadamente. Antes da troca, tínhamos vinho no valor de £40 nas mãos de A, e
cereais no valor de £50 nas mãos de B, o que forma um total de £90. Após a troca,
temos o mesmo valor total de £90. O valor em circulação não aumentou seu
tamanho em nem um átomo, mas alterou-se sua distribuição entre A e B. O que aparece
como mais-valor para um lado é menos-valor para o outro; o que aparece como
“mais” para um, é “menos” para outro. A mesma mudança teria ocorrido se A, sem
o eufemismo formal da troca, tivesse roubado diretamente £10 de B. Está claro
que a soma do valor em circulação não pode ser aumentada por nenhuma mudança em
sua distribuição, tão pouco quanto um judeu pode aumentar a quantidade de metal
precioso num país ao vender um farthing da época da rainha Ana por um guinéub. A totalidade da classe capitalista de um país não pode se
aproveitar de si mesma.
Pode-se virar e revirar
como se queira, e o resultado será o mesmo. Da troca de equivalentes não
resulta mais-valor, e tampouco da troca de não equivalentes resulta mais-valor.
A circulação ou a troca de mercadorias não cria valor nenhum.
Compreende-se,
assim, por que, em nossa análise da forma básica do capital, forma na qual ele
determina a organização econômica da sociedade moderna, deixamos inteiramente
de considerar suas formas populares e, por assim dizer, antediluvianas: o
capital comercial e o capital usurário.
É no genuíno
capital comercial que a forma D-M-D’, comprar para vender mais caro, aparece de
modo mais puro. Por outro lado, seu movimento inteiro ocorre no interior da
esfera da circulação. Mas como é impossível explicar a transformação de
dinheiro em capital – isto é, a criação do mais-valor – a partir da própria
circulação, o capital comercial aparenta ser impossível, uma vez que se baseia
na troca de equivalentes33, de modo que ele só pode ter sua origem na dupla
vantagem obtida, tanto sobre o produtor que compra quanto sobre o produtor que
vende, pelo mercador que se interpõe como um parasita entre um e outro. Nesse
sentido, diz Franklin: “Guerra é roubo, comércio é trapaça”34. Se é evidente
que a valorização do capital comercial não pode ser explicada pela mera trapaça
entre os produtores de mercadorias, um tratamento devido dessa questão exigiria
uma longa série de elos intermediários, de que carecemos no presente estágio de
nossa exposição, ainda dedicado inteiramente à circulação de mercadorias e seus
momentos simples.
O que dissemos sobre o capital
comercial vale ainda mais para o capital usurário. No capital comercial, os
dois extremos – o dinheiro que é lançado no mercado e o capital que é retirado
do mercado – são, ao menos, mediados pela compra e venda, pelo movimento da circulação.
J á no capital usurário, a forma D-M-D’ é simplificada nos extremos imediatos
D-D’, como dinheiro que se troca por mais dinheiro, uma forma que contradiz a
natureza do dinheiro e, por isso, é inexplicável do ponto de vista da troca de
mercadorias. Diz Aristóteles:
“Porque a crematística é
uma dupla ciência, a primeira parte pertencendo ao comércio, a segunda à
economia, sendo esta última necessária e louvável, ao passo que a primeira se
baseia na circulação e é desaprovada com razão (por não se fundar na natureza,
mas na trapaça mútua), o usurário é odiado com a mais plena justiça, pois aqui
o próprio dinheiro é a fonte do ganho e não é usado para a finalidade para a
qual ele foi inventado, pois ele surgiu para a troca de mercadorias, ao passo
que o juro transforma dinheiro em mais dinheiro. Isso explica seu nome” (tókov:
juro e prole), “pois os filhos são semelhantes aos genitores. Mas o juro é dinheiro
de dinheiro, de maneira que, de todos os modos de ganho, esse é o mais
contrário à natureza.”
No curso de
nossa investigação, veremos que tanto o capital comercial como o capital a
juros são formas derivadas; ao mesmo tempo, veremos por que elas surgem
historicamente antes da moderna forma básica do capital.
Mostrou-se que o
mais-valor não pode ter origem na circulação, sendo necessário, portanto, que
pelas suas costas ocorra algo que nela mesma é invisível. Mas pode o mais-valor
surgir de alguma outra fonte que não a circulação? Esta é a soma de todas as
relações de mercadoriasc travadas entre os possuidores de mercadorias. Fora da
circulação, o possuidor de mercadorias encontra-se em relação apenas com sua
própria mercadoria. No que diz respeito a seu valor, essa relação se limita ao
fato de que a mercadoria contém uma quantidade de seu próprio trabalho, quantidade
que é medida segundo determinadas leis sociais. Tal quantidade de trabalho se
expressa na grandeza de valor de sua mercadoria e, uma vez que a grandeza de
valor se exprime em moeda de conta, num preço de, por exemplo, £10. Porém, seu
trabalho não se expressa no valor da mercadoria acompanhado de um excedente
acima de seu próprio valor, num preço de £10 que é, ao mesmo tempo, um preço de
£11, isto é, num valor que é maior do que ele mesmo. O possuidor de mercadorias
pode, por meio de seu trabalho, criar valores, mas não valores que valorizam a
si mesmos. Ele pode aumentar o valor de uma mercadoria acrescentando ao valor
já existente um novo valor por meio de novo trabalho, por exemplo,
transformando o couro em botas. O mesmo material tem, agora, mais valor, porque
contém uma quantidade maior de trabalho. Por isso, as botas têm mais valor do
que o couro, mas o valor do couro permanece como era. Ele não se valorizou, não
incorporou um mais-valor durante a fabricação das botas. Assim, encontrando-se
o produtor de mercadorias fora da esfera da circulação, sem travar contato com
outros possuidores de mercadorias, é impossível que ele valorize o valor e, por
conseguinte, transforme dinheiro ou mercadoria em capital.
Portanto, o capital não pode ter origem na
circulação, tampouco pode não ter origem circulação. Ele tem de ter origem nela
e, ao mesmo tempo, não ter origem nela.
Temos, assim, um duplo
resultado.
A transformação do
dinheiro em capital tem de ser explicada com base nas leis imanentes da troca
de mercadorias, de modo que a troca de equivalentes seja o ponto de partida37.
Nosso possuidor de dinheiro, que ainda é apenas um capitalista em estado
larval, tem de comprar as mercadorias pelo seu valor, vendê-las pelo seu valor
e, no entanto, no final do processo, retirar da circulação mais valor do que
ele nela lançara inicialmente. Sua crisalidação
[Schmetterlingsentfaltung] tem de se dar na esfera da circulação e não pode se
dar na esfera da circulação. Essas são as condições do problema. Hic Rhodus, hic
salta!d
(...SÓ O BURACO DE MINHOCA
EXPLICA...)
3. A
compra e a venda de força de trabalho
4.
A mudança de valor do
dinheiro destinado a se transformar em capital não pode ocorrer nesse mesmo
dinheiro, pois em sua função como meio de compra e de
pagamento ele realiza apenas o preço da mercadoria que ele compra ou pela qual
ele paga, ao passo que, mantendo-se imóvel em sua própria forma, ele se petrifica
como um valor que permanece sempre o mesmo38. Tampouco pode a mudança ter
sua origem no segundo ato da circulação, a revenda da mercadoria, pois esse ato
limita-se a transformar a mercadoria de sua forma natural em sua forma-dinheiro.
A mudança tem, portanto, de ocorrer na mercadoria
que é comprada no primeiro ato D-M, porém não em seu valor, pois equivalentes
são trocados e a mercadoria é paga pelo seu valor pleno. Desse modo, a mudança só pode provir de seu valor de uso como
tal, isto é, de seu consumo. Para poder extrair valor do consumo de uma
mercadoria, nosso possuidor de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir no mercado, no interior da esfera da circulação,
uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a característica peculiar de
ser fonte de valor, cujo próprio consumo fosse, portanto, objetivação de
trabalho e, por conseguinte, criação de valor. E o possuidor de dinheiro
encontra no mercado uma tal mercadoria específica: a capacidade de trabalho, ou
força de trabalho.
Por força de trabalho ou
capacidade de trabalho entendemos o complexo [Inbegriff] das capacidades
físicas e mentais que existem na corporeidade [Leiblichkeit], na personalidade
viva de um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de
qualquer tipo.
No entanto, para que o
possuidor de dinheiro encontre a força de trabalho como mercadoria no mercado,
é preciso que diversas condições estejam dadas. A troca de mercadorias por si
só não implica quaisquer outras relações de dependência além daquelas que
resultam de sua própria natureza. Sob esse pressuposto, a força de trabalho só
pode aparecer como mercadoria no mercado na medida em que é colocada à venda ou
é vendida pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de
trabalho. Para vendê-la como mercadoria, seu possuidor tem de poder dispor
dela, portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua
pessoa39. Ele e o possuidor de dinheiro se encontram no mercado e estabelecem
uma relação mútua como iguais possuidores de mercadorias, com a única diferença
de que um é comprador e o outro, vendedor, sendo ambos, portanto, pessoas
juridicamente iguais. A continuidade dessa relação requer que o proprietário da
força de trabalho a venda apenas por um determinado período, pois, se ele a
vende inteiramente, de uma vez por todas, vende a si mesmo, transforma-se de um
homem livre num escravo, de um possuidor de mercadoria numa mercadoria. Como
pessoa, ele tem constantemente de se relacionar com sua força de trabalho como
sua propriedade e, assim, como sua própria mercadoria, e isso ele só pode fazer
na medida em que a coloca à disposição do comprador apenas transitoriamente,
oferecendo-a ao consumo por um período determinado, portanto, sem renunciar, no
momento em que vende sua força de trabalho, a seus direitos de propriedade
sobre ela.
(....ALUGANDO SERIA A EXPRESSÃO
MAIS EXATA...)
A segunda condição essencial
para que o possuidor de dinheiro encontre no mercado a força de trabalho como
mercadoria é que seu possuidor, em vez de poder vender mercadorias em que seu
trabalho se objetivou, tenha, antes, de oferecer como mercadoria à venda sua
própria força de trabalho, que existe apenas em sua corporeidade viva.
Para que alguém possa
vender mercadorias diferentes de sua força de trabalho, ele tem de possuir,
evidentemente, meios de produção, por exemplo, matérias-primas, instrumentos de
trabalho etc. Ele não pode fabricar botas sem couro. Necessita, além disso, de
meios de subsistência. Ninguém, nem mesmo um músico do futuro, pode viver de produtos
do futuro, tampouco, portanto, de valores de uso cuja produção ainda não esteja
acabada, e tal como nos primeiros dias de sua aparição sobre o palco da Terra,
o homem tem de consumir a cada dia, tanto antes como no decorrer de seu ato de
produção. Se os produtos são produzidos como mercadorias, eles têm de ser
vendidos depois de produzidos, e somente depois de sua venda eles podem
satisfazer as necessidades dos produtores. O tempo necessário para a sua venda
é adicionado ao tempo necessário para a sua produção.
Para transformar
dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar no
mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser
uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e
de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre
e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de
sua força de trabalho.
Por que razão esse
trabalhador livre se confronta com ele na esfera da circulação é algo que não
interessa ao possuidor de dinheiro, para o qual o mercado é uma seção
particular do mercado de mercadorias. No momento, essa questão tampouco tem
interesse para nós. Ocupamo-nos da questão teoricamente, assim como o possuidor
de dinheiro ocupa-se dela praticamente. Uma coisa, no entanto, é clara: a
natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e
simples possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é
uma relação histórico-natural [naturgeschichtliches], tampouco uma relação
social comum a todos os períodos históricos, mas é claramente o resultado de um
desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas,
da destruição de toda uma série de formas anteriores de produção social.
Também as categorias
econômicas que consideramos anteriormente trazem consigo as marcas da história.
Na existência do produto como mercadoria estão presentes determinadas condições
históricas, e para se tornar mercadoria, o produto não pode ser produzido como
meio imediato de subsistência para o próprio produtor. Se tivéssemos avançado
em nossa investigação e posto a questão “sob que circunstâncias todos os produtos
– ou apenas a maioria deles – assumem a forma da mercadoria?”, teríamos
descoberto que isso só ocorre sobre a base de um modo de produção específico, o
modo de produção capitalista. No entanto, tal investigação estaria distante da
análise da mercadoria. A produção e a circulação de mercadorias podem ocorrer
mesmo quando a maior parte dos produtos é destinada à satisfação das
necessidades imediatas de seus próprios produtores, quando não é transformada
em mercadoria e, portanto, quando o valor de troca ainda não dominou o processo
de produção em toda sua extensão e profundidade. A apresentação do produto como
mercadoria pressupõe uma divisão do trabalho tão desenvolvida na sociedade que
a separação entre valor de uso e valor de troca, que tem início no escambo, já
tem de estar realizada. No entanto, tal grau de desenvolvimento é comum às mais
diversas e historicamente variadas formações econômicas da sociedade.
Por outro lado, se
consideramos o dinheiro, vemos que ele pressupõe um estágio definido da troca
de mercadorias. As formas específicas do dinheiro, seja como mero equivalente
de mercadorias ou como meio de circulação, seja como meio de pagamento, tesouro
ou dinheiro mundial, remetem, de acordo com a extensão e a preponderância
relativa de uma ou outra função, a estágios muito distintos do processo social
de produção. No entanto, uma circulação de mercadorias relativamente pouco
desenvolvida é suficiente para a constituição de todas essas formas,
diferentemente do que ocorre com o capital. Suas condições históricas de
existência não estão de modo algum dadas com a circulação das mercadorias e do
dinheiro. Ele só surge quando o possuidor de meios de produção e de
subsistência encontra no mercado o trabalhador livre como vendedor de sua força
de trabalho, e essa condição histórica compreende toda uma história mundial. O capital
anuncia, portanto, desde seu primeiro surgimento, uma nova época no processo social
de produção.
(....ANTES ELE
ANALISOU O TRABALHO, COMO PRODUTOR DE VALOR DE USO E DE VALOR, MAS AGORA ELE
VAI ANALISAR A MERCADORIA FORÇA DE TRABALHO....)
Temos, agora, de analisar
mais de perto essa mercadoria peculiar, a força de trabalho. Como todas as
outras mercadorias, ela possui um valor. Como ele é determinado?
O valor da força de
trabalho, como o de todas as outras mercadorias, é determinado pelo tempo de
trabalho necessário para a produção – e, consequentemente, também para a
reprodução – desse artigo específico. Como valor, a força de trabalho
representa apenas uma quantidade determinada do trabalho social médio nela
objetivado. A força de trabalho existe apenas como disposição do indivíduo
vivo. A sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a existência
do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua própria
reprodução ou manutenção. Para sua manutenção, o indivíduo vivo necessita de
certa quantidade de meios de subsistência. Assim, o tempo de trabalho
necessário à produção da força de trabalho corresponde ao tempo de trabalho
necessário à produção desses meios de subsistência, ou, dito de outro modo, o
valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à
manutenção de seu possuidor. Porém, a força de trabalho só se atualiza [verwirklicht]
por meio de sua exteriorização, só se aciona por meio do trabalho. Por meio de
seu acionamento, o trabalho, gasta-se determinada quantidade de músculos,
nervos, cérebro etc. humanos que tem de ser reposta. Esse gasto aumentado
implica uma renda aumentada43. Se o proprietário da força de trabalho
trabalhou hoje, ele tem de poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as mesmas
condições no que diz respeito a sua saúde e força. A quantidade dos meios de
subsistência tem, portanto, de ser suficiente para manter o indivíduo
trabalhador como tal em sua condição normal de vida. As próprias necessidades
naturais, como alimentação, vestimenta, aquecimento, habitação etc., são
diferentes de acordo com o clima e outras peculiaridades naturais de um país.
Por outro lado, a extensão das assim chamadas necessidades imediatas, assim
como o modo de sua satisfação, é ela própria um produto histórico e, por isso,
depende em grande medida do grau de cultura de um país, mas também depende,
entre outros fatores, de sob quais condições e, por conseguinte, com quais
costumes e exigências de vida se formou a classe dos trabalhadores livres num
determinado local. Diferentemente das outras
mercadorias, a determinação do valor da força de trabalho contém um elemento
histórico e moral. No entanto, a quantidade média dos meios de
subsistência necessários ao trabalhador num determinado país e num determinado
período é algo dado.
O proprietário da força
de trabalho é mortal. Portanto, para que sua aparição no mercado de trabalho
seja contínua, como pressupõe a contínua transformação do dinheiro em capital,
é preciso que o vendedor de força de trabalho se perpetue, “como todo indivíduo
vivo se perpetua pela procriação”45. As forças de trabalho retiradas do mercado
por estarem gastas ou mortas têm de ser constantemente substituídas, no mínimo,
por uma quantidade igual de novas forças de trabalho. A quantidade dos meios de
subsistência necessários à produção da força de trabalho inclui, portanto, os
meios de subsistência dos substitutos dos trabalhadores, isto é, de seus
filhos, de modo que essa peculiar raça de possuidores de mercadorias possa se
perpetuar no mercado.
Para modificar a
natureza humana de modo que ela possa adquirir habilidade e aptidão num
determinado ramo do trabalho e se torne uma força de trabalho desenvolvida e
específica, faz-se necessária uma formação ou um treinamento determinados, que,
por sua vez, custam uma soma maior ou menor de equivalentes de mercadorias.
Esses custos de formação variam de acordo com o caráter mais ou menos complexo
da força de trabalho. Assim, os custos dessa educação, que são extremamente
pequenos no caso da força de trabalho comum, são incluídos no valor total gasto
em sua produção.
O valor da força de
trabalho se reduz ao valor de uma quantidade determinada de meios de
subsistência e varia, portanto, com o valor desses meios de subsistência, isto
é, de acordo com a magnitude do tempo de trabalho requerido para a sua produção.
Uma parte dos meios de
subsistência, por exemplo, a alimentação, o aquecimento etc., é consumida
diariamente e tem de ser reposta diariamente. Outros meios de subsistência,
como roupas, móveis etc., são consumidos em períodos mais longos e, por isso, só
precisam ser substituídos em intervalos maiores de tempo. Algumas mercadorias
têm de ser compradas ou pagas diariamente, outras semanalmente,
trimestralmente, e assim por diante. Porém, independentemente de como se divida
a soma desses gastos no período de, por exemplo, um ano, ela deve ser coberta
diariamente pela receita média. Se a quantidade de mercadorias requeridas para
a produção da força de trabalho por um dia = A, por uma semana = B e por um
trimestre = C, e assim por diante, então a média diária dessas mercadorias
seria = 365A + 52B + 4C + etc./365 . Supondo-se que nessa quantidade de
mercadorias necessárias à jornada média de trabalho estão incorporadas 6 horas
de trabalho social, então objetiva-se diariamente na força de trabalho meia
jornada de trabalho social médio, ou, dito de outro modo, meia jornada de trabalho é requerida para a produção diária
da força de trabalho. Essa quantidade de trabalho requerida para sua
produção diária forma o valor diário da força de trabalho ou o valor da força
de trabalho diariamente reproduzida. Se meia jornada de trabalho social média é
expressa numa quantidade de ouro de 3 xelins ou 1 táler, então 1 táler é o
preço correspondente ao valor diário da força de trabalho. Se o possuidor da
força de trabalho a coloca à venda pelo preço de 1 táler por dia, então seu
preço de venda é igual a seu valor e, de acordo com nosso pressuposto, o
possuidor de dinheiro, ávido por transformar seu táler em capital, paga esse
valor.
O limite último ou
mínimo do valor da força de trabalho é constituído pelo valor de uma quantidade
de mercadorias cujo fornecimento diário é imprescindível para que o portador da
força de trabalho, o homem, possa renovar seu processo de vida; tal limite é
constituído, portanto, pelo valor dos meios de subsistência fisicamente
indispensáveis. Se o preço da força de trabalho é reduzido a esse mínimo, ele
cai abaixo de seu valor, pois, em tais circunstâncias, a força de trabalho só
pode se manter e se desenvolver de forma precária. Mas o valor de toda mercadoria
é determinado 183 pelo tempo de trabalho requerido para fornecê-la com sua
qualidade normal.
É de um sentimentalismo
extraordinariamente barato afirmar que esse método de determinação do valor da
força de trabalho, que decorre da natureza da coisa, é um método brutal e, em
coro com Rossi, lamuriar-se:
“Captar a capacidade de
trabalho (puissance de travail), ao mesmo tempo que fazemos abstração dos meios
de subsistência do trabalho durante o processo de produção, significa captar
uma quimera mental (être de raison). Quem diz trabalho, ou capacidade de trabalho,
diz, ao mesmo tempo, trabalhador e meios de subsistência, trabalhador e
salário.” Dizer capacidade de trabalho não é o mesmo que dizer trabalho, assim
como dizer capacidade de digestão não é o mesmo que dizer digestão. Para a
realização do processo digestório é preciso mais do que um bom estômago. Quem
diz capacidade de trabalho não faz abstração dos meios necessários a sua subsistência.
O valor destes últimos é, antes, expresso no valor da primeira. Se não é
vendida, ela não serve de nada para o trabalhador, que passa a ver como uma
cruel necessidade natural o fato de que a produção de sua capacidade de
trabalho requer uma quantidade determinada de meios de subsistência, quantidade
que tem de ser sempre renovada para sua reprodução. Ele descobre, então, com
Sismondi: “A capacidade de trabalho [...] não é nada quando não é vendida”.
Da natureza peculiar
dessa mercadoria específica, a força de trabalho, resulta que, com a conclusão
do contrato entre comprador e vendedor, seu valor de uso ainda não tenha
passado efetivamente às mãos do comprador. Seu valor, como o de qualquer outra
mercadoria, estava fixado antes de ela entrar em circulação, pois uma
determinada quantidade de trabalho social foi gasta na produção da força de
trabalho, porém seu valor de uso consiste apenas na exteriorização posterior
dessa força. Por essa razão, a alienação da força e sua exteriorização efetiva,
isto é, sua existência como valor de uso, são separadas por um intervalo de
tempo. Mas em tais mercadorias, em que a alienação formal do valor de uso por
meio da venda e sua transferência efetiva ao comprador não são simultâneas, o
dinheiro do comprador funciona, na maioria das vezes, como meio de pagamento. Em
todos os países em que reina o modo de produção capitalista, a força de
trabalho só é paga depois de já ter funcionado pelo período fixado no contrato
de compra, por exemplo, ao final de uma semana. Desse modo, o trabalhador
adianta ao capitalista o valor de uso da força de trabalho; ele a entrega ao
consumo do comprador antes de receber o pagamento de seu preço e, com isso, dá
um crédito ao capitalista. Que esse crédito não é nenhuma alucinação vã é
demonstrado não apenas pela perda ocasional do salário quando da falência do
capitalista50, mas também por uma série de efeitos mais duradouros51. No
entanto, se o dinheiro funciona como meio de compra ou meio de pagamento, isso
é algo que não altera em nada a natureza da troca de mercadorias. O preço da
força de trabalho está fixado por contrato, embora ele só seja realizado
posteriormente, como o preço do aluguel de uma casa. A força de trabalho está
vendida, embora ela só seja paga posteriormente. Para uma clara compreensão da
relação entre as partes, pressuporemos, provisoriamente, que o possuidor da
força de trabalho, ao realizar sua venda, recebe
imediatamente o preço estipulado por contrato.
Sabemos, agora, como é
determinado o valor que o possuidor de dinheiro paga ao possuidor dessa
mercadoria peculiar, a força de trabalho. O valor de uso que o possuidor de dinheiro
recebe na troca mostra-se apenas na utilização efetiva, no processo de consumo
da força de trabalho. O possuidor de dinheiro compra no mercado todas as coisas
necessárias a esse processo, como matérias-primas etc., e por elas paga seu
preço integral. O processo de consumo da força de
trabalho é simultaneamente o processo de produção da mercadoria e do mais-valor.
O consumo da força de trabalho, assim como o consumo de qualquer outra
mercadoria, tem lugar fora do mercado ou da esfera da circulação. Deixemos,
portanto, essa esfera rumorosa, onde tudo se passa à luz do dia, ante os olhos
de todos, e acompanhemos os possuidores de dinheiro e de força de trabalho até
o terreno oculto da produção, em cuja entrada se lê: No admiĴance
except on business [Entrada permitida apenas para tratar de negócios]. Aqui se
revelará não só como o capital produz, mas como ele mesmo, o capital, é
produzido. O segredo da criação de mais-valor tem, enfim, de ser revelado.
A esfera da circulação
ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da
força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem.
Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de
Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por
exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles
contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o
resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as
partes. I gualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como
possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade,
pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente
para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua
utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é
justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa
com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das
coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em
conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral.
Ao
abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de
onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai noções, conceitos e parâmetros
para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos
perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisiognomia de nossas
dramatis personae [personagens teatrais]. O antigo possuidor de dinheiro se
apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu
trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por
negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria
pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da... despela.
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