Para quem deseja entender os argumentos da “esquerda
da esquerda”, recomendo a leitura do texto “Por que a esquerda socialista terá
poucos votos nas eleições de 2014?”, de Valério Arcary.
O principal defeito da “esquerda da esquerda” está
resumido na citação que abre o texto de Arcary: “se você não conhece nem o
inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas”. Vamos por partes.
Arcary antecipa que os “candidatos da esquerda
socialista, Zé Maria do PSTU, Luciana Genro do PSOL e Mauro Iasi do PCB, irão,
muito provavelmente, ter poucos votos nas eleições de outubro de 2014”. Não
sabemos por qual motivo o PCO não é incluído na lista.
Arcary reconhece que “já são doze anos desde a
eleição de Lula, um tempo grande o bastante, aparentemente, para que uma
experiência e balanço político possam ser feitos”. Mas não tira a conclusão
óbvia: a maior parte da classe trabalhadora faz um balanço desta experiência.
Os que a consideram negativa, optam majoritariamente por candidaturas da
oposição de direita. E os que a consideram positiva, optam majoritariamente por
votar em Dilma e no PT.
Arcary chega perto desta conclusão ao admitir que a
baixa votação da “esquerda da esquerda” se relaciona “com o crescimento
vertiginoso da candidatura de Marina Silva”, que na sua opinião “vem conseguindo
ocupar, simultaneamente, o espaço da oposição de direita e de esquerda ao
governo de coalizão liderado pelo PT, e representado por Dilma Roussef,
deslocando Aécio Neves, e bloqueando uma alternativa à esquerda”. Ou seja:
prestidigitação verbal à parte, ao menos neste momento, quem se decepciona
com o PT busca uma alternativa à direita do PT.
Arcary sabe que as consequências deste raciocínio
são letais para a “esquerda da esquerda”. Por isto, é obrigado a pegar leve com
o significado da candidatura Marina Silva, afirmando que “o discurso da
terceira via (...) encontra respaldo entre aqueles que esgotaram suas
expectativas em relação ao PT, mas não querem o retorno aos anos noventa com os
governos do PSDB”. Ou seja, Arcary discute os motivos de parte dos que votam, não a candidatura
em si de Marina Silva.
Arcary não denuncia como deveria a candidatura de
Marina Silva como instrumento da direita, do oligopólio e do capital
financeiro, como plano B do grande capital. Ele prefere apresentar esta candidatura como “mais uma
mediação. Mais uma posição intermediária. Mais uma armadilha. A terrível
pressão das ilusões na possibilidade de regulação de um capitalismo sem
corrupção, de um capitalismo sem exploração selvagem”. Ironicamente, as
posições de Arcary a respeito de Marina lembram as posições de alguns setores
do PT, como o senador Suplicy e o governador Jaques Wagner.
Arcary, quando chega perto de denunciar o caráter de
classe da candidatura Marina, o faz de maneira extremamente suave: “Uma
candidatura que captura para uma saída moderada, amigável para a Avenida
Paulista, o impulso de Junho. Uma nova versão do papel representado,
tragicamente, pelo “Lulinha paz e amor” , só que agora, talvez, em forma de
farsa. O feitiço se voltou contra o feiticeiro”. Não esperava que Arcay tivesse a mesma avaliação que nós, acerca dos riscos da candidatura Marina. Mas
fico surpreso com este nível de subestimação dos riscos envolvidos nesta
candidatura.
Arcary percebe que responsabilizar Marina pela baixa
votação da “esquerda da esquerda” conduz a um círculo vicioso. Aceita esta
explicação e outras do mesmo estilo, nunca a “esquerda da esquerda” sairá da
condição de força minoritária. Por isto, ele aponta que “este fator é muito
parcial. Embora, relativamente, verdadeira, esta abordagem não esgota o
problema. Permanece insuficiente”.
Arcary apresenta, então, quatro argumentos “para
explicar a dificuldade eleitoral da esquerda socialista brasileira”. Os dois
primeiros argumentos são universalmente válidos para qualquer
democracia burguesa: as eleições são diretas, mas não são livres; as
eleições são diretas, mas não são democráticas. O problema destes argumentos é
que eles ajudam a entender por qual motivo nem mesmo o PT tem 51% do universo
total de eleitores; mas não são suficientes para explicar porque os
trabalhadores e trabalhadoras conscientes não votam principalmente na “esquerda
da esquerda”.
Arcary introduz, então, o terceiro argumento, que
vale a pena transcrever na íntegra: “a percepção de que a sociedade está
dividida em interesses irreconciliáveis de classe, opondo o capital ao
trabalho, o classismo, deixou de ser uma referência importante, decisiva,
incontornável, para a nova geração proletária. A consciência de classe forjada
ao longo das lutas ao final dos anos setenta e durante os anos oitenta
regrediu. A direção do PT, que tinha sido a maior beneficiária desse avanço,
merece ser responsabilizada por essa deseducação. A transformação do petismo em
lulismo, a “fulanização” da luta política, o culto à personalidade do grande
líder teve consequências, com a desvalorização das organizações coletivas e
independentes, como os sindicatos e movimentos. Os trabalhadores
despolitizaram-se depois de doze anos de governos do PT. A defesa do socialismo
não é mais, tampouco, uma referência para a maioria dos trabalhadores. Em
outras palavras, os trabalhadores não confiam nas suas próprias forças, e não
estão organizados de forma independente para defender seus interesses. Por
isso, na hora da crise eleitoral do governo PT, quem cresce é uma candidatura
gerada no núcleo duro do aparelho do PT, mas que abre o espaço para que a
oposição de direita possa voltar para o Banco Central e para o Ministério da
Fazenda através de Marina. A ideologia, ou seja, uma visão de mundo, um
conjunto de critérios e valores que expressam as nossas preferências, parece
ter menos peso na definição de voto no Brasil, quando comparado com outros
países, a começar pelos vizinhos Argentina ou Uruguai. Essa facilidade de
atrair o eleitorado quer ele seja de esquerda ou de direita foi confirmada por
pesquisa de opinião, e não se restringe a Marina Silva”.
Arcary poderia ter resumido estes argumentos assim: “traição
petista”. E continuaria sem resposta o “que fazer?” frente a isto. Pois quem
considera que a traição petista é capaz de gerar tamanho dano, precisa
responder como sair desta enrascada. Como veremos mais adiante, a saída que Arcary
aponta é derrotar o PT.
Arcary, como é evidente, só vê o copo meio vazio.
Temo, aliás, que ele esteja começando a ceder ao “pessimismo” que
invariavelmente ataca quase todos os quadros de esquerda, depois de certo tempo de
caminhada.
Por exemplo: depois de tudo que o próprio Arcary
disse acerca das jornadas de junho de 2013, será 100% correto dizer que para a “nova
geração proletária” a “percepção de que a sociedade está dividida em interesses
irreconciliáveis de classe, opondo o capital ao trabalho, o classismo, deixou
de ser uma referência importante”?
Outro exemplo: como explicar o crescimento no número
de greves, nos últimos anos, se adotarmos o critério de que “os trabalhadores
não confiam nas suas próprias forças, e não estão organizados de forma
independente para defender seus interesses”.
Um terceiro exemplo: é indiferente, para a classe trabalhadora, o que ocorreu em termos de emprego e de salário desde 2003?
Arcary, entretanto, deixa escapar uma frase que
alimenta minhas esperanças. Refiro-me a dizer que Marina “abre o espaço para
que a oposição de direita possa voltar para o Banco Central e para o Ministério
da Fazenda”. Ou seja, admite que pode piorar (e que, portanto, pode ser melhor). Falo isto sem ironia: acredito que todos os fenômenos apontados
por Arcary existem, mas para cada tendência há uma contra-tendência que devemos
alimentar, fortalecer, organizar.
Por exemplo: a crise de 2005, as jornadas de junho
de 2013 e a candidatura Marina tem relação, direta ou indireta, com o que fez
ou com o que deixou de fazer o PT e os governos Lula e Dilma. O que fazer
diante disto? “Denunciar e destruir” o PT, como dizem setores da “esquerda da
esquerda”? Ou buscar maneiras de seguir em frente e avançar?
A reação à crise de 2005 nos permitiu um segundo mandato
Lula mais avançado. Apesar disto, grande parte da esquerda da esquerda não
votou em Lula, no segundo turno de 2006. A reação às jornadas de junho de 2013
desembocou na luta pela Constituinte exclusiva para fazer a reforma política.
Apesar disto, parte da esquerda da esquerda não apoia a campanha pelo
Plebiscito Popular. A reação à candidatura Marina está levando a campanha
Dilma à sintonizar com demandas mais avançadas. Apesar disso... bom, neste
caso, aguardemos, quem sabe, não é mesmo?
Arcary ainda dispõe de um quarto argumento, “para
explicar a dificuldade eleitoral da esquerda socialista brasileira”, a saber: “os
partidos que defendem os interesses dos trabalhadores enfrentam uma enorme
resistência pela defesa que fazem da legitimidade da luta de classes”.
Arcary, antevendo certamente as perigosas conclusões
que podem ser extraídas desta frase, explica: “a situação econômica e social,
embora deteriorada pela quase estagnação do crescimento, pelo aumento das
pressões inflacionárias até dois meses atrás, ainda não é grave o bastante para
que o mal-estar que se manifestou em Junho de 2013 tenha se deslocado à
esquerda. A parcela jovem da classe trabalhadora que foi às ruas ainda não se
vê representada pelas propostas da oposição de esquerda, que parece muito
radical. Radical porque conflituosa, defendendo a necessidade de enfrentamento
com o capital. Portanto, aos olhos desta corrente de opinião que Marina canaliza,
pelo menos por enquanto, também, perigosa”.
Arcary, em junho de 2013, tinha uma visão mais
otimista da situação. Estive com ele num debate na PUC São Paulo, no dia em que
Haddad e Alckmin anunciaram conjuntamente a revogação do aumento das tarifas. E
ouvi, com estes ouvidos que a terra ainda há de comer, Arcary especulando sobre
a possibilidade de um desenlace insurrecional para aquela situação política em que o país estava.
Arcary, agora, tem uma visão mais realista da situação.
Mas sua análise padece de um problema que vou tentar resumir, de maneira
esquemática, assim: a esquerda da esquerda fica parada, com suas posições corretas,
esperando que a massa aprenda a apreciar seu fino biscoito, quero dizer, seu justo
radicalismo. Penso eu que esta postura –na qual certamente Arcary não
vai se reconhecer, mas que do meu ponto de vista é a postura de amplos setores
da esquerda da esquerda— ajuda a entender por quais motivos a "esquerda da
esquerda" não conseguiu capitalizar 2013. Traduzindo noutros termos: a "esquerda
da esquerda" gostaria de ter transformado 2013 em alavanca contra Dilma e contra
o PT, e agora descobriu que a direita teve mais êxito nisto.
Arcary e boa parte da "esquerda da esquerda", é bom dizer, não
poderiam ter agido de outra forma, porque seu pensamento estratégico parece organizado em torno da ideia de derrotar o PT. Quem poderia ter agido de outra
forma? O próprio PT e o governo Dilma, que fizeram gestos neste sentido (com
destaque para o tema da Constituinte), mas tampouco foram consequentes,
tampouco fizeram tudo o que devia ter sido feito.
Arcary, além dos cinco argumentos listados (Marina,
falta de liberdade, falta de democracia, baixos teores de classismo e de
radicalidade), acrescenta como “questão central” a alienação, pois “sem a
alienação, a dominação do capital não seria possível. A forma política da
alienação é a desconfiança dos trabalhadores em relação à sua capacidade de se
unir e defenderem-se coletivamente. É o pé atrás, a suspeita, o receio, o
preconceito dos seus iguais. O sentimento manipulador mais poderoso do
pensamento mágico é o medo: a capitulação ao impulso do desejo que se confunde
em realidade”.
Arcary é, do ponto de vista pessoal, do ponto de
vista do que ele pretende ser, do ponto de vista de sua “razão de viver”, um
revolucionário sincero. Por isto, fico preocupadíssimo com esta sua linha de
argumentação. Explico: a alienação é um fenômeno tão genérico, que utilizá-lo
como explicação para uma situação histórico-concreta é sinal de desespero.
Arcary poderia evitar isto se fizesse a velha e boa “análise
concreta da situação concreta” Ou seja: admitisse que o voto no PT é, para
parte importante da classe trabalhadora brasileira, um voto nos seus reais
interesses de classe. E buscasse, a partir da situação política concreta,
descobrir por onde avançar. Mas como o seu método (e o método de boa parte da "esquerda da
esquerda") é olhar “de fora” o processo, é inevitável que a conclusão seja “culpar
os outros” (a teoria da traição) ou “culpar a classe” (caso em que o esquerdismo desemboca no niilismo e, “já que Deus não existe”, do niilismo muitos vão para a
direita).
Arcary, é bom dizer, aferra-se a primeira conclusão:
a “crise de direção do proletariado”, que ele vincula a “imaturidade objetiva e
a fragilidade subjetiva do proletariado como sujeito social independente na
luta anticapitalista”. Vincula, mas não tira as conclusões adequadas destas duas frases. Pois se existe uma situação histórica em que o proletariado
manifesta “imaturidade objetiva” e “fragilidade subjetiva”, não seria o caso dos
revolucionários adequarem cuidadosamente sua tática e suas formas de
organização?
Arcary, ao contrário disto, reafirma que “os
trotskistas consideram central a luta implacável contra o PT”. Segundo ele, por
uma “razão simples. Esta insegurança do proletariado só se mantém, se
reproduz, se perpetua porque há chefes burocráticos que dependem dela para se
manter no controle da representação dos trabalhadores”.
Arcary intui que esta simplificação joga fora a “imaturidade
objetiva” e converte a “fragilidade subjetiva” em assunto de romance policial. Motivo
pelo qual ele é obrigado a se defender da acusação segundo a qual “os trotskistas
são criticados porque supervalorizam o lugar da traição política na história”.
Arcary não pode, entretanto, num texto dedicado a
situação eleitoral de 2014, fugir do seguinte dilema: no segundo turno das
eleições de 2014, o que interessa à classe trabalhadora brasileira?
Arcary dedica a este “detalhe” uma nota de rodapé.
Nela é dito que “sob a pressão de uma eleição a cada dia mais apertada, a
direção do PT começou a abraçar, por desespero, um discurso catastrofista que
quer apresentar a disputa entre Marina e Dilma como um armagedon político.
Marina seria do mal, Dilma seria do bem. Uma análise marxista abraça um método
menos emocional: é uma interpretação das candidaturas orientada por um critério
de classe. Muitas vezes na história os governos dos partidos operários
reformistas foram mais úteis para a defesa da ordem que os partidos da própria
burguesia: protegiam o capitalismo dos capitalistas. Os socialistas, por
princípio, não diferenciam diante dos trabalhadores os carrascos mais cruéis
dos menos cruéis”.
Arcary, como se vê, anuncia um método, mas fica nos
devendo uma “interpretação das candidaturas orientadas por um critério de
classe”. Mas, com ou sem análise, a preços de hoje, a questão tende ao
seguinte: teremos um segundo turno entre Dilma e Marina. A favor de Marina
estará o grande capital, o oligopólio da mídia e a direita mais conservadora
deste país. Provavelmente a soma de votos entre Marina e Aécio superará a
votação de Dilma no primeiro turno. Logo, lavar as mãos e dizer que não há
diferença ajudará objetivamente Marina.
Arcary nos deve esta resposta: ele considera central
a luta implacável contra o PT, a ponto de não votar em Dilma no segundo turno?
Concluo meus comentários ao texto de Arcary, com a frase final do seu próprio texto: Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.
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Por que a esquerda socialista terá poucos votos nas
eleições de 2014? por Valério Arcary
Se você se conhece, mas não conhece o inimigo, para
cada vitória ganha, sofrerá também uma derrota.
Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não
precisa temer o resultado de cem batalhas.
Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo,
perderá todas as batalhas.
Sabedoria popular japonesa
Muitos militantes estão se interrogando por que os candidatos da
esquerda socialista, Zé Maria do PSTU, Luciana Genro do PSOL e Mauro Iasi do
PCB, irão, muito provavelmente, ter poucos votos nas eleições de outubro de
2014. Afinal, já são doze anos desde a eleição de Lula, um tempo grande o
bastante, aparentemente, para que uma experiência e balanço político possam ser
feitos. Afinal, o ano passado, tivemos as mobilizações de Junho, as maiores no
país desde o Fora Collor em 1992.
Admitamos que o tema é complexo. Ele se relaciona, por um lado, com o
crescimento vertiginoso da candidatura de Marina Silva. Ela vem conseguindo
ocupar, simultaneamente, o espaço da oposição de direita e de esquerda ao
governo de coalizão liderado pelo PT, e representado por Dilma Roussef,
deslocando Aécio Neves, e bloqueando uma alternativa à esquerda. O discurso da
terceira via, que já tinha sido ensaiado em 2002 por Ciro Gomes e Garotinho, e
em 2010 pela própria Marina Silva, encontra respaldo entre aqueles que
esgotaram suas expectativas em relação ao PT, mas não querem o retorno aos anos
noventa com os governos do PSDB.
Marina em 2014, nesse sentido, é mais uma mediação. Mais uma posição
intermediária. Mais uma armadilha. A terrível pressão das ilusões na
possibilidade de regulação de um capitalismo sem corrupção, de um capitalismo
sem exploração selvagem. Uma candidatura que captura para uma saída moderada,
amigável para a Avenida Paulista, o impulso de Junho. Uma nova versão do papel
representado, tragicamente, pelo “Lulinha paz e amor” , só que agora, talvez,
em forma de farsa. O feitiço se voltou contra o feiticeiro.[1]
Mas
este fator é muito parcial. Embora, relativamente, verdadeira, esta abordagem
não esgota o problema. Permanece insuficiente. Quatro argumentos principais
foram acumulados para explicar a dificuldade eleitoral da esquerda socialista
brasileira, e merecem não ser esquecidos. Primeiro, as eleições são diretas,
mas não são livres. Em inúmeras regiões do país, ainda predomina um clima de
medo, intimidação, ameaça, perseguição e represália que impede que a escolha
política-eleitoral se realize com liberdade. A atuação de milícias, do crime
organizado, de prefeitos que dominam como coronéis, mantém currais eleitorais
intactos. Invioláveis.
Segundo, as eleições são diretas, mas não são democráticas. A diferença
de orçamentos de campanha é abismal. E o dinheiro em campanha eleitoral conta.
É porque as somas excedem centenas de milhões que a eleição de um deputado para
o Congresso Nacional é quase impossível para os partidos que não aceitam
financiamento empresarial. Como a distribuição do tempo de TV e rádio é
proporcional às bancadas de deputados, estabelece-se uma partidocracia, uma
tirania dos partidos de confiança dos monopólios. Não fosse isso o bastante, o
acesso aos debates é restrito.
Terceiro, a percepção de que a sociedade está dividida em interesses
irreconciliáveis de classe, opondo o capital ao trabalho, o classismo, deixou
de ser uma referência importante, decisiva, incontornável, para a nova geração
proletária. A consciência de classe forjada ao longo das lutas ao final dos
anos setenta e durante os anos oitenta regrediu. A direção do PT, que tinha
sido a maior beneficiária desse avanço, merece ser responsabilizada por essa
deseducação. A transformação do petismo em lulismo, a “fulanização” da luta
política, o culto à personalidade do grande líder teve consequências, com a
desvalorização das organizações coletivas e independentes, como os sindicatos e
movimentos. Os trabalhadores despolitizaram-se depois de doze anos de governos
do PT. A defesa do socialismo não é mais, tampouco, uma referência para a
maioria dos trabalhadores.
Em
outras palavras, os trabalhadores não confiam nas suas próprias forças, e não
estão organizados de forma independente para defender seus interesses. Por
isso, na hora da crise eleitoral do governo PT, quem cresce é uma candidatura
gerada no núcleo duro do aparelho do PT, mas que abre o espaço para que a
oposição de direita possa voltar para o Banco Central e para o Ministério da
Fazenda através de Marina.
A
ideologia, ou seja, uma visão de mundo, um conjunto de critérios e valores que
expressam as nossas preferências, parece ter menos peso na definição de voto no
Brasil, quando comparado com outros países, a começar pelos vizinhos Argentina
ou Uruguai. Essa facilidade de atrair o eleitorado quer ele seja de esquerda ou
de direita foi confirmada por pesquisa de opinião, e não se restringe a Marina
Silva. [2]
Quarto, os partidos que defendem os interesses dos trabalhadores
enfrentam uma enorme resistência pela defesa que fazem da legitimidade da luta
de classes. A situação econômica e social, embora deteriorada pela quase
estagnação do crescimento, pelo aumento das pressões inflacionárias até dois
meses atrás, ainda não é grave o bastante para que o mal-estar que se
manifestou em Junho de 2013 tenha se deslocado à esquerda. A parcela jovem da
classe trabalhadora que foi às ruas ainda não se vê representada pelas
propostas da oposição de esquerda, que parece muito radical. Radical porque
conflituosa, defendendo a necessidade de enfrentamento com o capital. Portanto,
aos olhos desta corrente de opinião que Marina canaliza, pelo menos por
enquanto, também, perigosa.
Estes cinco argumentos são úteis para compreender porque a esquerda
socialista terá poucos votos. Mas ainda tangenciam a questão central. A questão
central permanece sendo a desumanização dos trabalhadores, a alienação.[3] Sem
a alienação, a dominação do capital não seria possível. A forma política da
alienação é a desconfiança dos trabalhadores em relação à sua capacidade de se
unir e defenderem-se coletivamente. É o pé atrás, a suspeita, o receio, o
preconceito dos seus iguais. O sentimento manipulador mais poderoso do
pensamento mágico é o medo: a capitulação ao impulso do desejo que se confunde
em realidade.
A
alienação política é um processo complexo em que o trabalhador não se reconhece
a si mesmo. Assimila ideias, projetos, valores e ideologias que não
correspondem aos seus interesses. Isolado, individualizado, separado de si
próprio e dos seus iguais, o trabalhador é vítima de uma brutalização tão
impiedosa que o leva a procurar identificação com os interesses de outras
classes.
Esta
dimensão da luta política tem as suas formas. Duas são as mais comuns: (a)
milhões de proletários não votam na esquerda porque não querem “perder” o seu
voto. Como a esquerda tem menos visibilidade, portanto, parece ter menos
chances eleitorais. É o seguidismo da maioria. Seguir o impulso das ondas
majoritárias de preferência de outras classes, para acompanhar o voto vencedor,
identificado como voto útil; (b) é muito comum que o voto não seja uma escolha
positiva, mas negativa, pelo critério do “menos pior”, ou seja, orientado pela
campanha que consegue insuflar o maior medo, o pavor de que tudo poderá ficar
ainda pior do que antes.
Na
tradição inspirada pela elaboração de Leon Trotsky, esse fenômeno deve ser
definido de forma mais rigorosa como a crise de direção do proletariado. A
crise de direção tem duas dimensões que podem estar desenvolvidas em proporções
distintas em cada processo histórico-concreto: a imaturidade objetiva e a
fragilidade subjetiva do proletariado como sujeito social independente na luta
anticapitalista.
O que
é menos compreendido é porque os trotskistas consideram central a luta
implacável contra o PT. A razão é simples. Esta insegurança do proletariado só
se mantém, se reproduz, se perpetua porque há chefes burocráticos que dependem
dela para se manter no controle da representação dos trabalhadores.
A
crítica mais comum do que se considera como exagerado nesta avaliação é aquela
que defende que as lideranças mantiveram influência majoritária porque suas
posições – e até ações – correspondiam, grosso modo, à vontade dos
representados. O argumento pode impressionar, mas é falso. O beabá da luta
política burguesa é a dissimulação, a máscara, a camuflagem, a vigarice.
As
massas populares podem agir contra os seus interesses, mas não indefinidamente.
As direções burocráticas podem agir contra os interesses de suas bases sociais
proletárias e, ainda assim, manter por algum tempo sua influência, porque as ilusões
nos dirigentes são grandes, e é necessária toda uma experiência, muitas vezes
até décadas, para que a massa dos trabalhadores perceba que foram traídos.
Os
trotskistas são criticados porque supervalorizam o lugar da traição política na
história. Admitamos que o tema pode ser simplificado e, portanto, muito mal
compreendido. Não é inusitado que seja interpretado como uma versão
conspirativa da história, em que o lugar da traição política desvaloriza todos
os outros fatores. Alguns desprezam esta diferenciação entre classe social e
sujeitos políticos. Rejeitam a ideia da traição. Consideram-na imprópria,
argumentando que as intenções humanas seriam inescrutáveis. Mas essa crítica
não é nem verdadeira, nem justa. As intenções dos líderes podem ser impossíveis
de esclarecer, mas os atos, não.
Apresentemos o problema: o fenômeno se manifesta quando a representação
do proletariado é feita por partidos e líderes que defendem os interesses de
outras classes – como foi o papel da socialdemocracia e do estalinismo nos
países centrais, e os nacionalismos pequeno-burgueses ou burgueses nos países
periféricos. Influir na representação das classes exploradas foi sempre
decisivo para a preservação dos interesses da ordem em todos os tempos. Alimentar
a desconfiança, dividir a direção da classe inimiga, atrair os líderes
moderados, isolar os radicais, promover a intriga, são o abecedário da luta
política. Eliminar da história o lugar da traição é um procedimento,
politicamente, ingênuo e teoricamente superficial. A luta de classes é um
combate tão sério que não se pode ignorar que todas as armas foram e
continuarão sendo usadas para colocar o inimigo em posição de inferioridade.
Diferentes tendências historiográficas já exaltaram o papel dos grandes
chefes políticos, cultuados até como heróis e, simetricamente, já argumentaram
que a qualidade maior ou menor das lideranças seria irrelevante nos curso dos
acontecimentos, anulada por outros fatores mais significativos. O lugar da
direção variou muito, é verdade, segundo as circunstâncias, da relativa
obscuridade à máxima exposição. Isto posto, anulados todos os outros elementos,
a superioridade dos líderes faz a diferença. São os soldados que lutam as
batalhas. Mas, quando em condições de relativa igualdade de forças, são as
decisões dos generais que decidem a possibilidade de vitória.
Quem
não sabe contra quem luta não pode vencer.
[1] Sob a pressão de uma eleição a cada dia mais
apertada, a direção do PT começou a abraçar, por desespero, um discurso
catastrofista que quer apresentar a disputa entre Marina e Dilma como um
armagedon político. Marina seria do mal, Dilma seria do bem. Uma análise
marxista abraça um método menos emocional: é uma interpretação das candidaturas
orientada por um critério de classe. Muitas vezes na história os governos dos
partidos operários reformistas foram mais úteis para a defesa da ordem que os
partidos da própria burguesia: protegiam o capitalismo dos capitalistas. Os
socialistas, por princípio, não diferenciam diante dos trabalhadores os
carrascos mais cruéis dos menos cruéis.
[2] Segundo a primeira pesquisa de âmbito nacional
realizada pelo DataFolha: “No Brasil, há uma quantidade bem maior de eleitores
identificados com valores de direita do que de esquerda. O primeiro grupo reúne
49% da população, enquanto os esquerdistas são 30%. Isso, porém, produz pouco
impacto nos índices de intenção de voto para presidente em 2014. Os dados são
do Datafolha, que na pesquisa eleitoral(…)também investigou a inclinação
ideológica do eleitorado. Conforme os dados do instituto, a presidente Dilma
Rousseff(…) tem praticamente o mesmo padrão de votação entre eleitores
identificados com valores de direita,centro-direita,centro e
centro-esquerda.(…)É a primeira vez também que os pesquisadores classificaram
os entrevistados numa escala da esquerda à direita. Antes, as denominações eram
diferentes. A escala ia de extremo liberal (o equivalente a esquerda agora) a
extremo conservador (direita)(…) Para identificar e fazer os agrupamentos
ideológicos dos eleitores, o Datafolha faz um conjunto de perguntas envolvendo
valores sociais, políticos e culturais.”
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/10/1356184-ideologia-interfere-pouco-na-decisao-de-voto-diz-datafolha.shtml
Consulta em 02/09/2014.
[3] Sobre o tema da consciência de classe, uma das
obras de referência no marxismo foi História e consciência de classe, hoje
muito desvalorizada pelo entusiasmo com que defende o protagonismo do
proletariado. Nesse texto, Lukács sistematiza de forma irretocável, algumas
conclusões teóricas sobre as contradições entre a existência enquanto classe, e
a formação da consciência de classe que permanecem até hoje, para o
fundamental, insuperáveis. Lukács insiste que nas condições de miséria material
e cultural em que está mergulhado, o proletariado sofre a mais abjeta brutalização
e desumanização, e que só pela ação coletiva e solidária pode apreender a sua
força social e forjar as armas de sua organização independente que lhe poderá
permitir uma negação da ordem e sua afirmação como classe para si. A seguir um
pequeno trecho de História e consciência de Classe, onde podemos encontrar, em
repetidas passagens, conclusões como a que transcrevemos: “o proletariado surge
como produto da ordem social capitalista (…) as suas formas de existência estão
constituídas de tal forma que a reificação tem, necessariamente, de se exprimir
nelas de forma mais flagrante e mais aguda, produzindo a mais profunda
desumanização. O proletariado compartilha, pois, a reificação de todas as
manifestações de vida com a burguesia.” (grifo nosso) (LUKÁCS, Georgy. História
e consciência de classe. Porto, Escorpião, 1974. p. 35)
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