Uma das coisas mais bizarras das cortes é a arte da interpretação. Isso era assim nas cortes da realeza, mas continua sendo assim nas cortes mais ou menos republicanas, em que ministros, assessores, jornalistas e outros menos cotados se dedicam a interpretar as palavras do chefe (e, às vezes, dos familiares do chefe).
O bulício
dos áulicos incomoda aqueles que acreditam – caso deste que vos escreve – que
as vezes um charuto é apenas e tão somente um charuto. Mas, às vezes, aparece
um intérprete que nos faz pensar. É o caso de um amigo que, hoje, ficou preso
num elevador e, na falta de coisa melhor para fazer, especulou o que vem a
seguir.
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... numa
reunião com reitores, o presidente Lula fez uma crítica à turma do “tudo ou
nada”.
Naquele
momento, muita gente entendeu a crítica era dirigida ao movimento grevista dos
docentes e técnicos de universidades e institutos federais.
Acontece
que o presidente é uma pessoa bem-informada e certamente sabe que as
reivindicações do movimento grevista são modestas.
Portanto,
o presidente estava equivocado. O que, obviamente, é um total absurdo.
A verdade,
entretanto, está lá fora (do elevador) e seria a seguinte: o presidente, como
todo sabemos, é um mestre dos recados. E o recado, no caso, estaria sendo dado
não para os grevistas, mas para a direita.
Acontece
que o presidente previu, acertadamente, que a direita brasileira (tanto aquela
que finge ser civilizada, quanto a outra) desencadearia uma ofensiva em toda
linha.
Detalhes
desta ofensiva estão descritos aqui: https://revistaforum.com.br/opiniao/2024/6/12/maior-crise-do-governo-ate-agora-lula-numa-encruzilhada-por-mauro-lopes-160384.html
Nesta
ofensiva, há de tudo: o setor financeiro e o agronegócio atacando Haddad; o
presidente da CNA defendendo “dar um basta nesse governo”; o oligopólio da
comunicação transformando a maior parte do dinheiro da publicidade
governamental, em ataques contra o governo; a turma do Lira inaugurando nova
sessão de pautas bomba; o presidente do Banco Central fazendo campanha
presidencial.
Faz parte
desta ofensiva, também, a ministra Simone Tebet. Esta, mostrando a quem serve e
para o que serve, foi à público ditar os termos da capitulação: se o governo
quiser sobreviver, teria que fazer profundos cortes no orçamento, negociar os
pisos constitucionais da saúde e da educação, assim como desistir da vinculação
dos reajustes entre salário-mínimo e aposentadorias.
Na lista
dos termos da capitulação, tem ainda o apoio ao candidato de Lira à presidência
da Câmara de Deputados e a entrega, ao Centrão, de algumas vagas de ministro.
Por tudo
isto e por muito mais, ficaria claro, explícito, óbvio, que quando o presidente
Lula criticou a turma do “tudo ou nada”, a crítica não era dirigida aos
modestos pleitos dos grevistas, mas sim era um ataque de Lula contra a gula
infinita das elites, que querem tudo para elas e nada para o povaréu....
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A
especulação estava nesse ponto quando a porta do elevador se abriu e meu amigo
não chegou ao que de fato interessa: o que o presidente Lula fará a respeito? O
que o PT e a esquerda como um todo farão a respeito?
Inspirado
nesta especulação e saindo à busca do “que fazer”, deparamos com um texto do
ex-ministro José Dirceu, considerado por alguns “o grande comandante” e, por
outros, “um dos grandes responsáveis”.
O texto,
intitulado “Impasses e saídas para o momento político”, pode ser lido aqui: Impasses
e saídas para o momento político - Ultima Hora Online
A maior
parte do texto de Dirceu gira em torno de uma tese: não basta “arrumar a casa”
do governo, é preciso “retomar a aliança com a frente de partidos que elegeu”,
apresentando “um programa de desenvolvimento do país objetivo e factível, capaz
de mobilizar em torno dele os diferentes setores da sociedade: empresariado,
trabalhadores, academia e classes médias”.
Que o
governo precisa “arrumar a casa” e que a solução está no “desenvolvimento”,
creio que, a essa altura, ninguém duvida.
Mas será que
basta “retomar a aliança”? Esta aliança, vamos lembrar, deu em 2022 nesta
correlação de forças que está aí. Portanto, é necessário explicar como é que,
em 2024, “retomar a aliança” alteraria para melhor a correlação de forças que
está dada. E precisaria explicar, também, por qual motivo os que estão
abandonando a aliança, achariam melhor voltar para ela.
Lembramos
que, para que um programa de desenvolvimento seja “objetivo e factível”, é
preciso um imenso investimento público e privado, internacional e nacional. Quem
paga a conta, escolhe a música. Como o governo vai pagar a conta, se a política
monetária e a política fiscal são, ambas, restritivas? E como alterar estas
políticas, na atual correlação de forças?
Segundo entendi,
a resposta de Dirceu é a de que faltaria ao governo “foco e interlocutores”, inclusive
uma “efetiva articulação de agentes do governo com a indústria brasileira e
parte do agronegócio”, um “comando político subordinado diretamente ao
presidente”, comando este que “faça a interlocução com o empresariado, os
trabalhadores, a sociedade civil e os demais segmentos sociais”, colocando em
campo “todos os partidos e segmentos sociais que apoiaram sua candidatura no
segundo turno”, “da esquerda à direita liberal”.
Para quem
acredita nos dons da parola, este tipo de conversa cai como uma luva. Mas há
vários sinais de que a direita não estaria dando muita bola para isso.
Evidentemente,
tem coisa interessante e correta no texto de Dirceu, mas a solução por
ele proposta lembra a tentativa de colocar a pasta dental de volta no tubo.
Afinal, a
aliança de 2022 tinha como objetivo central derrotar Bolsonaro. Dentro daquela
aliança, conviviam dois programas diferentes, um da esquerda e outro social-liberal.
Hoje, a
esquerda está sendo atacada, a partir de dentro e a partir de fora do governo. Devido
ao enfraquecimento da esquerda, as várias direitas não têm nenhum motivo para
aceitar um acordo em torno do programa de 2022.
Portanto, mesmo
que nosso programa máximo fosse aquele de 2022, para voltar àqueles termos seria
necessário, primeiro, dar um freio de arrumação.
E este freio
de arrumação não depende principalmente de melhorar a “interlocução” com o lado
de lá. Depende de demonstrar a força do lado de cá. Isso exige ação combinada
do governo e do PT, junto com toda a esquerda; exige outra postura nas
instituições, a começar pelo Congresso nacional; exige uma verdadeira política
de comunicação de massas; e exige mobilização de rua.
Em resumo:
exige uma linha política diferente da que prevaleceu até agora.
Vamos
lembrar que no carnaval deste ano o cavernícola parecia estar nas cordas,
derrotado, prestes a ser preso. O que ele fez? Entre outras coisas, convocou aquele
ato de massas na Avenida Paulista, em fevereiro, e outros menores país afora. Isso
não resolveu todos os problemas dele e da extrema direita. Mas mostrar os
dentes e rosnar alto deu seus frutos. Funcionou como freio de arrumação.
Por analogia,
enquanto o governo e a esquerda não mostrarem seus dentes, vamos continuar na
defensiva. E quando se está na defensiva, “interlocução” só serve para uma
coisa: definir os termos da capitulação. Se entendi direito as notícias que me
chegam, é o que Haddad já estaria negociando. Se for isso mesmo, assistiremos à
mais uma vitória da verdadeira turma do “tudo ou nada”.
A única saída é a Sabedoria...
ResponderExcluirMercado interno
O Brasil quer ser Brasil
Impasse de fato é o termo que explica tudo e resolve nada.
Mais importante que a mensagem é o mensageiro.