quinta-feira, 6 de junho de 2024

Carlos Vainer e a velha toupeira

Recomendo a leitura do texto publicado recentemente pelo professor Carlos Vainer no Brasil 247.

Intitulado “A velha toupeira morreu?”, o texto pode ser lido aqui: https://www.brasil247.com/blog/a-velha-toupeira-morreu

Neste texto, logo de saída, Vainer lembra existir uma diferença entre os termos utilizados por ele e os termos utilizados por Rudá Ricci.

Vainer usa os termos “esquerdas de estado” e “esquerdas sociais”, Rudá usa os termos “esquerda social” e “esquerda institucional”.

Quem quiser ler acerca da posição de Rudá, pode buscar aqui: https://valterpomar.blogspot.com/2024/05/ruda-ricci-e-teoria-que-nao-e-de.html

Segundo  Vainer, as “esquerdas de estado” tenderiam a “olhar, conceber e pensar a sociedade a partir do Estado; em consequência, seus horizontes têm este limite e suas práticas conferem prioridade ou exclusividade às disputas de posições no interior das instâncias estatais. De seu lado, de maneira inversa, as ‘esquerdas sociais’, de maneira mais ou menos radical, mais ou menos setorial ou localizada, concebem, olham e confrontam o Estado a partir da sociedade”.

Minha (VP, para usar a sigla adotada por Vainer) opinião acerca desta descrição feita por Vainer é a seguinte: ela é, em boa medida, verdadeira; mas é insuficiente, especialmente em um aspecto que considero decisivo.

Naquilo que é verdadeira, é por razões que considero evidentes. É insuficiente, porque muitas destas “esquerdas” (que Rudá chama de “institucional” e “social”) aceitam os mesmos limites estratégicos e, por isto, fazem parte de um conjunto maior, que vou chamar aqui de “esquerda reformista”, ou seja, aquela que tem como limite estratégico melhorar a vida do povo, nos marcos do capitalismo. 

Aliás, é também por isto que vemos com tanta frequência aquele aguerrido lutador social de ontem, se metamorfosear no combativo mandatário de hoje e, nalguns casos rapidamente, noutros casos mais demoradamente, se converter num “responsável” (e conservador) gestor da máquina pública.

Para complicar ainda mais a coisa, além de poderem fazer parte de um conjunto maior, em muitos países da América Latina ambas esquerdas citadas (e também as demais) enfrentam hoje um cenário de tipo “chileno”, ou seja, um cenário onde uma estratégia de transformação revolucionária precisa incluir não apenas a destruição - “a partir de fora” - do Estado da classe dominante, mas também precisa incluir a ocupação de parcelas do aparelho de Estado.

Por este segundo motivo, não acho adequado utilizar a contraposição “Estado x social”. Pois uma estratégia revolucionária, no Brasil do século XXI, pelo menos nas atuais condições históricas, não pode colocar a questão do “Estado” como algo a ser tratado a partir de “fora”.

Ou seja, concordo com o que Vainer fala acerca das diferenças entre a situação atual e situações passadas; e, exatamente por isso, não concordo com a “oposição” proposta por ele (Estado x social) e nem com a proposta por Rudá (institucional x social).

Quando falei, noutro texto, que este tipo de “oposição” não é nova, é porque no texto de Rudá aparece, na minha opinião, o mesmo tipo de embocadura que existia naqueles que – noutros momentos – argumentavam que a ação da classe trabalhadora, para ser virtuosa, deveria se manter longe do Estado. Isso já era um erro no passado; e é um erro ainda maior nos dias atuais.

Agora, para que fique claro, não acho que este seja o problema principal da esquerda brasileira, hoje. O problema principal, hoje, é exatamente o contrário: é a grande quantidade dos que acreditam que o atual Estado possa ser um instrumento de transformação. Meu ponto, entretanto, é que não se combate esta posição, confrontando a ela uma posição igualmente incorreta. Aliás, isto já foi feito recentemente, por parte dos que romperam com o PT desde 2003. E o que vimos? Vimos que é possível repetir todos os defeitos, em menor espaço de tempo e sem ter as virtudes.

Vainer não concorda com o que falei acerca dos “economicistas”. Como Vainer, não quero transformar esta polêmica num torneio de citações. Assim, vou resumir com minhas palavras o que considero o fulcro do problema: os “economicistas” hard core deixavam a luta política a cargo dos liberais e se concentravam naquilo que consideravam essencial, a “luta direta contra o capital”, ou seja, a chamada luta econômica. 

Contra a posição dos “economicistas”, Lenin - ao mesmo tempo que destacava a centralidade da luta política (por isso seu ideal era o de um tribuno do povo, não de um sindicalista) - considerava essencial a luta econômica, entre outras razões porque ela servia de “escola” para a classe. 

Desta e de outras polêmicas e análises, concluo não ser correta nenhuma estratégia que não estabeleça o correto vínculo entre a luta política e a luta econômica, como parte da ação da classe trabalhadora. Por isso, também, não estou de acordo com “fórmulas polares” do tipo estado/sociedade, institucional/social etc.

Agora, atenção: não estou dizendo que devemos aceitar o Estado da burguesia, nem estou falando que devemos minimizar a importância da mobilização social. Aliás, esse tipo de crítica - “ou isso, ou aquilo” - muitas vezes pressupõe como verdadeira a dicotomia que eu repilo. 

O que estou lembrando é que toda a ação da classe trabalhadora, dentro e fora do Estado burguês, na luta social e na luta institucional, tem como objetivo central construir e conquistar o poder para a classe trabalhadora.

Fazer isso, no Brasil de 2024, implica construir poder fora do Estado e, simultaneamente, usar nossa presença no aparato de Estado para desmontar os aparatos de poder da classe dominante e ajudar a construir (dentro e fora) aparatos de poder para a classe trabalhadora.

Por isso, concordo com a crítica que Vainer faz ao que ele chama de "esquerdas de Estado”, ou seja, a de que elas “tendem a estabelecer a sinonímia entre Política/Luta Política com Estado/Ação do/no/a partir do Estado”, assim como concordo que “reduzir a esfera da política à esfera estatal é desconhecer a infinidade de dispositivos de poder que operam na sociedade”.

Entretanto, acho que os setores que fazem isso não devem ser chamados de “esquerdas de Estado”, por dois motivos combinados. 

O primeiro é que –  como demonstra a experiência dos governos Lula e Dilma – este tipo de política não se sustenta por muito tempo, terminando ou cooptada, ou expurgada. Motivo pelo qual nossa crítica àquelas que Vainer chama de “esquerdas de Estado” é, exatamente, a de que elas nem disputam o Estado, nem ajudam a construir um Estado alternativo. Ou seja, na verdade elas deixam o Estado seguir nas mãos dos de sempre. Por tudo isso, chama-las de “esquerdas de estado” é dar-lhes um título que elas não merecem. E, mais importante, chama-las de “esquerdas de estado” contribui para deseducar a classe trabalhadora e as esquerdas acerca da centralidade do Estado, em qualquer política revolucionária.

Dito de outra forma: por não serem contra-hegemônicas, aquelas esquerdas que Vainer critica (e quanto às críticas em si, em grande medida concordo com ele) contribuem para perpetuar o Estado que temos aí: capitalista, conservador etc.

Noutra passagem do seu texto, Vainer critica quem pretende reduzir “a luta social à luta econômica, pretendendo que a luta concreta no tecido social é sempre, necessária e exclusivamente, econômica”. 

Sobre isso, é preciso explicitar acerca do que estamos tratando: se é a descrição da realidade ou se é a formulação de uma estratégia.

No plano da descrição de uma realidade, vamos sempre constatar que toda manifestação da luta de classes tem alguma dimensão política. Ou seja: não existe luta “econômica” que não tenha, em alguma medida, um componente político. Mas, como é óbvio, este componente político pode ser maior ou menor, pode estar implícito ou explícito, pode ser “em si” ou “para si”. Então, quando descrevemos uma luta concreta, podemos dizer que se trata de uma “luta econômica” ou de uma “luta política”, mas o que estamos fazendo, ao dar este ou aquele nome, é destacar qual é o peso daqueles componentes em cada luta concreta.

No plano da formulação de uma estratégia, a questão é a seguinte: se nosso objetivo é transformar a classe trabalhadora em classe dominante, então devemos apontar por quais caminhos a maior parte da classe pode adquirir poder. E adquirir poder inclui ter alto nível de consciência dos nossos interesses coletivos, inclui ter instrumentos organizativos em todos os terrenos da vida social, inclui ter uma orientação estratégica predominante na classe, se não em toda a classe, mas pelo menos em setores fundamentais dela.

Também por isso, longe de mim qualquer “desprezo pelas lutas concretas”. O que digo é que estas lutas concretas, localizadas ou não, segmentadas ou não, só contribuirão para o processo no qual a classe trabalhadora se converta em classe dominante, se forem fortemente concatenadas com outras, transcendendo seus próprios limites. Ou seja, se contribuírem para que a classe se enxergue como classe, em disputa com outras. E isso significa política. E política, no sentido forte da palavra, significa disputa do poder de Estado.

Portanto, quem separa e trata como estanques a luta econômica e a luta política, é a socialdemocracia reformista, que aceita como limites intransponíveis o capitalismo e o Estado capitalista. 

Os debates sobre a “greve geral revolucionária”, debates travados na socialdemocracia alemã sob o impacto da Revolução Russa de 1905, refletiram aquela visão dicotomia estanque. Agora, se é uma dicotomia, devemos então recusá-la, mesmo que ela apareça sob outras formas, por exemplo “institucional/Estados versus social” etc.

Então, meu ponto, ao contrário do que Vainer parece ter entendido, é o seguinte: se quisermos que a luta social & política da classe tenha êxito, precisamos não de uma esquerda “social”, mas sim de uma esquerda política e social; precisamos de uma esquerda que seja capaz de travar lutas políticas e sociais “a partir de fora do Estado” e, ao mesmo tempo, combinar estas lutas com a ação “a partir de dentro do Estado”. Isso a preços de hoje. Se amanhã a extrema-direita vencer e fechar todas as portas de acesso ao Estado, a estratégia terá que mudar.

Quanto aos iskristas, Vainer faz a seguinte afirmação: “em nenhum momento o que os ‘iskristas’ concebiam como luta ‘política’, indispensável ao avanço revolucionário, poderia ser confundido com o que se está chamando de luta ‘institucional’, luta no horizonte e interior do estado”.

De fato, eles não teriam “confundido” focinho de porco com tomada. Nem eu. O que eu disse, ou quis dizer, são duas coisas diferentes. 

Uma, que já expliquei, tem que ver com a crítica do Iskra aos economicistas, a saber, a de que eles (os economicistas) colocavam a luta econômica no pedestal, deixando a luta política para os liberais. 

Outra diz respeito à participação no Estado do inimigo. Quero lembrar que a Revolução Russa de 1905 incluiu a convocação de eleições; que houve várias eleições; que a esquerda russa estava dividida sobre a tática a adotar frente a estas eleições; que o próprio Lenin propôs políticas diferentes, adaptadas a cada situação; que dentro do próprio bolchevismo e do menchevismo (alas oriundas do Iskra) havia posições diferentes a respeito. É por conta destes fatos históricos que disse e repito que, tanto no passado quanto no presente, a “politização inclui, em maior ou menor medida, alguma relação com ou participação no Estado do inimigo, ou seja, envolve a chamada “institucionalidade”.

O próprio Vainer, embora recomende ir devagar com o andor, reconhece que toda esfera da vida social envolve alguma relação com o Estado. 

Ele emenda em seguida: “uma coisa é relação com o estado, outra coisa é relação de confronto/enfrentamento, crítica teórica e crítica prática … e uma terceira coisa é  ‘participação no Estado’.”

Os bolcheviques elegeram deputados para a Duma, em plena monarquia. Gramsci foi deputado, na véspera da ascensão do fascismo. Isso era ou não era “participação no Estado”?

Do meu ponto de vista, “participar” é uma das possibilidades (por isso falei “relação com ou participação”). Mas “participar” do Estado inimigo não é problema algum, o problema é participar para servir ao inimigo. Que é o que muita gente faz, mesmo achando que está fazendo o contrário.

Então, o problema para mim não está em saber “se temos ou não um campo de pensamento e de práticas que se move e pensa com prioridade a partir e no Estado”. Isto é óbvio que existe. O problema está em como desenvolver uma teoria e uma prática que nos possibilite agir, dentro e fora do Estado, contra a classe dominante. 

Minha divergência com a fórmula que Vainer e também Rudá adotam, de formas diferentes, é que ela não dialoga com a necessidade -urgente urgentíssima - de formularmos uma política que nos permita utilizar, de maneira revolucionária, a enorme força institucional que acumulamos.

Se a conclusão for a de que isto é impossível, então estaremos concluindo que teriam razão os amigos moderados espalhados em inúmeros partidos de esquerda, que acham que a única coisa possível a fazer, a partir do governo, é “governar”. Ou seja, gerir o status quo. Ou seja, estar a serviço do Estado burguês. Eu não acho que eles têm razão, eu não acho que a capitulação seja a única alternativa. Algumas experiências recentes na América Latina, aliás, confirmam isso.

Vainer faz outras afirmações críticas a meu texto, que partem de um pressuposto errado acerca do que seria minha opinião. Meu ponto não está na descrição do que está ou não acontecendo. Meu ponto está na formulação de uma estratégia alternativa ao que está acontecendo. E os exemplos que dei visam exatamente demonstrar que, neste plano da formulação estratégia, não ajuda muito trabalhar com os “pares” Estado/social (ou institucional/social).

Aliás, sobre a metamorfose, sugiro ler o texto que escrevi em 2006 e que está disponível aqui: https://pagina13.org.br/download/a-metamorfose-por-valter-pomar-ed-2016/

No seu texto, Vainer faz uma crítica meio despropositada a algo que eu escrevi. Ele afirma o seguinte:

“O mais importante, a meu ver, é que V.P. acaba por reconhecer que, após a Constituição de 1988, vivemos uma situação em que “não há como obter vitórias sem combinar os dois movimentos, ‘dentro’ e ‘fora’”. Mas para que esse reconhecimento fosse mais abrangente, teria que superar a visão, típica de quem olha a sociedade e as lutas sociais a partir do Estado, de que não há como explorar as conquistas alcançadas nas lutas institucionais ‘sem que tenhamos força social organizada fora das instituições’ (ênfase no original). Quem são os sujeitos ocultos de verbo ‘tenhamos’? Aqueles  que estão ‘dentro’ da ‘institucionalidade’.”

Vainer está equivocado. O sujeito oculto da minha frase acima é “nós trabalhadores”. Estou falando da classe, não de nenhum partido, muito menos de quem está dentro da institucionalidade.

A confusão de Vainer, quero crer, tem que ver com a visão que ele expressa na frase seguinte de seu texto, a saber: “Parece estarmos bem longe do tempos da fundação do Partido dos Trabalhadores, quando prometíamos e esperávamos colocar mandatos parlamentares e posições conquistadas na institucionalidade a serviço da luta e organização sociais”.

De fato estamos longe. E, de fato, esta visão que Vainer cita era, no passado, muito forte no PT. E, embora possa parecer paradoxal, a força daquela ideia explica, em parte, porque tanta gente do PT (e de outros setores da esquerda) foi cooptada pelo Estado. 

Acontece que “colocar os mandatos a serviço da luta social” é diferente de “uma estratégia que disputa o poder, a partir de dentro e de fora”. Parecem coisas iguais, mas não são. Uma coisa é usar os mandatos para ajudar os movimentos a terem conquistas; outra coisa é construir uma estratégia de acúmulo de forças para disputar o poder. Uma coisa está vinculada a outra, mas não são a mesma coisa.

Vainer tem razão quando diz que hoje existe quem proponha colocar as lutas sociais “a serviço da ação institucional e institucionalizada”. Obviamente eu não defendo isto. O que eu disse é que se iludem aqueles que acham possível explorar as conquistas alcançadas nas lutas institucionais “sem que tenhamos força social organizada fora das instituições”. Esta ilusão é que permite a muita gente achar que segue fiel a uma política de esquerda, mesmo tendo se conformado em ser gestor do Estado. Agora, a alternativa a esta ilusão não é colocar o Estado “a serviço das lutas”. A alternativa é ter uma estratégia que combine luta fora do Estado, com ação dentro do Estado, em favor de derrotar a classe dominante.

Mais detalhes a respeito, estão em um texto publicado aqui: https://fpabramo.org.br/cooperacao-internacional/livro-viva-chile-beluce-bellucci-e-valter-pomar/

Assim sendo, declino do “elogio” segundo o qual minha posição seria “a que predomina e confere identidade a diversos segmentos, concepções, partidos, organizações e práticas” que Vainer designa de “esquerdas de estado”. Aliás, basta perguntar a qualquer amigo do setor moderado do PT, que este amigo vai confirmar que Vainer está “atirando” no inimigo errado.

O ponto central da divergência que tenho com Vainer, acho, é a seguinte: ele considera que “a revolução, sejam alterações expressivas na atual correlação de forças, sejam conquistas expressivas nas condições de vida da imensa maioria da população, terão como origem e motor nas práticas conflituosas de luta e organização no tecido social, fora e contra o poder exercido pelo estado em favor, com raríssimas exceções, do capital e das classes dominantes”.

Eu acho que isto é verdade, mas na atual situação latino-americana, é preciso incluir na equação a presença e a atuação da esquerda dentro do e contra o Estado burguês. Aliás, as experiências de transformação mais avançadas na região foram as que fizeram este tipo de combinação. 

Repito: isso pode mudar, aliás em certa medida já está mudando, devido à ação da extrema direita e devido aos tambores da guerra. Mas, enquanto não muda, cabe perceber que a “velha toupeira” da revolução também frequenta alguns palácios e precisa frequentar outros, inclusive o do Planalto.

 

SEGUE O TEXTO CRITICADO

A velha toupeira morreu?

A velha toupeira trabalha no subsolo, sob a superfície do tecido social, e não frequenta os corredores dos palácios e gabinetes parlamentares

04 de junho de 2024, 19:36 h

Tenho acompanhado com atenção a polêmica provocada pelo texto de Rudá Ricci intitulado “A Esquerda que não é Esquerda”, discussão enriquecida pela resposta de Valter Pomar “Rudá Ricci e a teoria da esquerda que não é esquerda” (Rudá Ricci e a teoria que não é de esquerda | Página 13 (pagina13.org.br). Meu interesse se deve a que considero este um debate necessário e ao fato de que R.R. me cita ao fazer referência à ideia de que seria possível reconhecer nas esquerdas brasileiras o que tenho designado de “esquerdas de estado” e “esquerdas sociais” (ele usa o singular e ao invés de “esquerdas de estado” fala de “esquerda institucional”, o que não é exatamente a mesma coisa). Acho que o fato de ter sido citado me confere, por assim dizer, o direito de fala.

 Deixando a brincadeira de lado, em primeiro lugar gostaria de insistir na relevância da reflexão e discussão sobre a trajetória e realidade de nossas esquerdas, uma vez que isso pode contribuir para orientar a construção de caminhos a trilhar no presente e de perspectivas futuras. Esse debate é tanto mais relevante quanto assistimos muitas vezes a esforços para criar em torno das esquerdas uma espécie de “silêncio obsequioso”, com o argumento de que eventuais críticas acabariam fazendo o jogo da direita, fortalecendo por conseguinte o bolsonarismo – ou o fascismo ou neofascismo, como preferem alguns. Ninguém pretende, nem faria sentido, criar um tribunal da história para sentenciar culpados e incensar inocentes, mas, num contexto como o que vivemos, penso que, antes de mais nada, temos de saudar o engajamento polêmico de R.R. e V.P.

 Com relação ao texto do primeiro, gostaria de insistir na diferença entre “esquerdas de estado” e “esquerda institucional”. Mais além de escolher o uso do plural para chamar a atenção para a multiplicidade e diversidade das concepções e práticas que caracterizam cada campo, penso que o qualificativo “institucional” reduz o sentido que procuro conferir à ideia de “esquerdas de estado”. Em ocasiões anteriores tenho tentado esclarecer que não se trata de construir uma muralha da China a separar os dois campos, mesmo porque eles convivem lado a lado, se interpenetram e interagem, conforme as conjunturas. Isso não obstante, estamos falando de distintas perspectivas – teóricas e/ou práticas. As “esquerdas de estado” tendem a olhar, conceber e pensar a sociedade a partir do Estado; em consequência, seus horizontes têm este limite e suas práticas conferem prioridade ou exclusividade às disputas de posições no interior das instâncias estatais. De seu lado, de maneira inversa, as “esquerdas sociais”, de maneira mais ou menos radical, mais ou menos setorial ou localizada, concebem, olham e confrontam o Estado a partir da sociedade. Aceite-se que, como toda classificação binária, esta também simplifica de alguma maneira as realidades, contribuindo, no entanto, para realçar algumas diferenças não desprezíveis. Aceite-se, também, que ao reconhecer estes campos, não se pretende atribuir a um todos os pecados e ao outro todas as virtudes. Se temos concentrado nossas reflexões sobre as “esquerdas de estado” é porque elas têm tido maior capacidade de influir nas agendas e pautas na esfera pública; isto, porém, não impede de identificar e discutir as limitações das “esquerdas sociais”, entre outras: tendências à fragmentação, ao localismo e/ou ao isolacionismo, pouco contato com experiências vitoriosas ou fracassadas das lutas revolucionárias, escasso conhecimento do acúmulo teórico do pensamento crítico...

 V.P. lembra que a oposição entre “esquerda institucional” x “esquerda social” não é nova. Em certa medida tem razão. Como teria razão se afirmasse que a oposição entre reforma x revolução não é nova. Penso, no entanto, ser necessário não esquecer que estas oposições se dão em contextos históricos determinados, assumindo formas e consequências diversas. Se o pensamento crítico e as experiências revolucionárias dos séculos XIX e XX nos legaram conceitos e categorias que continuam a nos inspirar, esta herança não é suficiente para pensar e enfrentar o capitalismo e o Estado contemporâneos. Certamente, ainda e sempre estamos confrontados ao capitalismo e ao Estado burguês, mas, como diria o Conselheiro Acácio, não são os mesmos de 50, 100, 200 anos atrás. E, cabe destacar, entre outras coisas, não são os mesmos porque se redefiniram e reconfiguraram as relações do estado com a sociedade e com a economia, assim como as formas de exploração, dominação e opressão, para não falar das novas condições e posições dos trabalhadores. 

 Penso que V.P. comete um equívoco ao pretender estabelecer uma analogia entre as oposições “esquerda institucional” x “esquerda social” e política x social. Nesta abordagem, a diferenciação entre “esquerdas de estado” e “esquerdas sociais” apenas reproduziria a oposição entre os “iskristas”, liderados por Lenin, e os “economicistas”, fulminados pelo primeiro em seu famoso “Que Fazer”, de 1903. São várias, a meu ver, as confusões. Em primeiro lugar porque a ideia de “esquerdas sociais” contempla, mas não se limita ao que se considera “lutas econômicas”.

 Em segundo lugar, porque os que ainda hoje leem as lutas sociais com as lentes do Lenin no Que Fazer?, parecem esquecer ou desconhecer incontáveis textos em que o líder bolchevique chamou a atenção para a importância das lutas econômicas. Sem pretender fazer deste pequeno texto uma coletânea de citações que viriam comprovar as teses do autor (afinal, sempre é possível encontrar a “boa” citação para usar como argumento de autoridade), parece válido lembrar texto em que Lenin cita Marx:

A grande indústria concentra num só lugar uma multidão de pessoas desconhecidas umas das outras. A concorrência divide seus interesses. Mas a defesa dos salários, interesse comum frente ao patrão, une-as numa ideia comum de resistência, de coalizão... As coalizões, a princípio isoladas, organizam-se em grupos, e, diante do capital sempre unido, manter essa associação vem a ser para eles mais importante que a defesa dos salários... Nessa luta — verdadeira guerra civil — reúnem-se e desenvolvem-se todos os elementos necessários para a batalha futura. Ao chegar a esse ponto, a coalizão adquire caráter político.” (Marx, Karl. A Miséria da Filosofofia. Apud Lenin, V. I. A Tática da Luta de Classe do Proletariado (1914). In: Lenin. V. I.. Obras, t. XXI, págs. 58/62. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/livros/sindicato/01.htm. Acesso em 03/06/2024).

 Uma das marcas das "esquerdas de Estado” é que elas tendem a estabelecer a sinonímia entre Política/Luta Política com Estado/Ação do/no/a partir do Estado. Reduzir a esfera da política à esfera estatal é desconhecer a infinidade de dispositivos de poder que operam na sociedade. Sobretudo, ao confundir POLÍTICA com INSTITUCIONALIDADE (estatalidade), se acaba restringido a ação política à esfera e limites deste mesmo estado... inviabilizando qualquer perspectiva contra-hegemônica. Desta forma também se reduz a luta social à luta econômica, pretendendo que a luta concreta no tecido social é sempre, necessária e exclusivamente, econômica. Por outro lado, reproduz uma arrogância dos que, vendo-se como “vanguardas", mostram desprezo pelas lutas concretas de explorados e oprimidos, muitas delas localizadas e segmentadas. 

 Mas, para além do desprezo ou reconhecimento da relevância das lutas econômicas, sindicatos e movimentos fora ou à revelia de partidos e organizações das “esquerdas de estado”, seria necessário perguntar se e até que ponto essa separação entre luta econômica x luta política não seria ela mesma questionável. Afinal, é o próprio Marx quem politiza a relação econômica, ao falar de “despotismo do capital” no chão da fábrica, e “economiza a luta política”, ao mostrar o papel do Estado na acumulação primitiva ou na regulação da jornada de trabalho. E se não se pode, de modo geral, na sociedade capitalista, separar economia e política, as esferas das relações de poder e das relações (econômicas) de compra e venda da força de trabalho, menos ainda isso é aceitável no capitalismo contemporâneo em que, sob a égide do capital financeiro e da financeirização, estado e capital quase se fundem. E não se trata aqui apenas de afirmações teóricas, pois todo militante sabe que lutas que parecem estritamente econômicas e/ou reivindicatórias rapidamente se “politizam” pela intervenção do Estado que, como vem sendo repetidamente denunciado, criminaliza a pobreza e a luta social. E como qualificar as lutas contra o racismo e suas manifestações quotidianas na violência policial contra a juventude negra, as lutas das mulheres contra desigualdade de remunerações ou pelo controle de seu próprio corpo, as lutas contra remoções de bairros populares para atender a demandas do capital financeiro-imobiliário? Eis evidências de que a oposição entre economia e política, entre lutas econômicas e lutas políticas não mais é capaz de contemplar, descrever e entender a complexidade e diversidade dos conflitos sociais contemporâneos.

 Em terceiro lugar, ao contrário do que deixa entender V.P., em nenhum momento o que os “iskristas” concebiam como luta “política”, indispensável ao avanço revolucionário, poderia ser confundido com o que se está chamando de luta “institucional”, luta no horizonte e interior do estado. Tampouco acredito que os “iskristas” se reconheceriam na seguinte afirmação: a “politização inclui, em maior ou menor medida, alguma relação com ou participação no Estado do inimigo, ou seja, envolve a chamada “institucionalidade”. Devagar com o andor que o santo é de barro! Relação com o estado? Que esfera da vida social hoje não “envolve alguma relação com o Estado”? Mas uma coisa é relação com o estado, outra coisa é relação de confronto/enfrentamento, crítica teórica e crítica prática … e uma terceira coisa é  “participação no Estado”. Afinal, ninguém propõe que se desconheça que a luta política tem foco no Estado, mas o que se está discutindo é se temos ou não um campo de pensamento e de práticas que se move e pensa com prioridade a partir e no Estado … que V.P. faz questão de lembrar que é o “Estado do inimigo”. 

 Ademais, não há por que supor que os dois campos estariam, condenados, sempre, desde sempre e para sempre, a atuarem desta ou daquela forma. Não existe nenhuma lei que afirme serem as “esquerdas sociais” mais ou menos radicais; tampouco pode-se fazer qualquer associação automática entre estas esquerdas e a tal de sociedade civil, em oposição aos partidos, que seriam inexoravelmente condenados a encerrarem-se nas “esquerdas de estado”. Assim como há nos partidos políticos institucionalizados segmentos de base que, por suas práticas e relações com o tecido social, fazem parte do campo das “esquerdas sociais”, são muitas as organizações e movimentos que, seja qual for sua origem, caberia colocar no campo das “esquerdas de estado”. Sem falar que as esquerdas sociais, em sua diversidade e multiplicidade, também avançam ou recuam, passam por descensos e ascensos, vivem períodos de maior ou menos isolamento no próprio tecido social.

 Parece-me irrisória a tentativa de reduzir o debate, afirmando que “parte da esquerda ‘social’ é acomodada” ou que “outra parte tem muito de retórica e pouco de ‘social’”. Irrisória igualmente a tentativa de apontar o dedo para psolistas e outros, acusando-os de “institucionalismo”. O que é importante e merece destaque é  que V.P. assume a necessidade de “entender como se opera a metamorfose que transforma líderes da esquerda ‘social’ em expoentes da esquerda ‘institucional’”, processo que atinge militantes de várias origens e filiações a partidos e movimentos diversos. Ao invés de adotar postura defensiva ao apontar o dedo, aliás com razão, para os “psolistas e outros expoentes comunistas” que também perderam-se na institucionalidade, bem mais rico seria seguir a proposta de buscar entender estas metamorfoses ... que certamente não serão entendidas a partir de juízos pretensamente morais.

 No caso histórico de parte expressiva da social-democracia europeia, a burocratização e a institucionalização, de alguma maneira, expressaram a formação do que Marx chamou de “aristocracia operária”, sócia do colonialismo e do imperialismo, e, sobretudo após a 2ª Guerra Mundial, os pactos sociais que reconheceram direitos e incorporaram parcela expressiva da classe operária à sociedade de consumo de massa e à vida política. No Brasil, a história é diversa, sendo, portanto, necessárias ainda muitas pesquisas e discussões para desvendar processos em que lutas sociais formam lideranças que, não raro, acabam lançadas e absorvidas pela prática política institucional, desfalcando as organizações e lutas pela base e, às vezes, virando às costas às experiências e ao mundo no qual se formaram.

 O mais importante, a meu ver, é que V.P. acaba por reconhecer que, após a Constituição de 1988, vivemos uma situação em que “não há como obter vitórias sem combinar os dois movimentos, ‘dentro’ e ‘fora’”. Mas para que esse reconhecimento fosse mais abrangente, teria que superar a visão, típica de quem olha a sociedade e as lutas sociais a partir do Estado, de que não há como explorar as conquistas alcançadas nas lutas institucionais “sem que tenhamos força social organizada fora das instituições” (ênfase no original). Quem são os sujeitos ocultos de verbo “tenhamos”? Aqueles  que estão “dentro” da institucionalidade. Parece estarmos bem longe do tempos da fundação do Partido dos Trabalhadores, quando prometíamos e esperávamos colocar mandatos parlamentares e posições conquistadas na institucionalidade a serviço da luta e organização sociais; agora, o que se propõe é colocar estas últimas a serviço da ação institucional e institucionalizada. V.P. explicita, de maneira clara, o que lhe parece principal. E acredito não haver dúvidas de que esta visão é a que predomina e confere identidade a diversos segmentos, concepções, partidos, organizações e práticas que designo de “esquerdas de estado”.

 Assim, não proponho, nem acredito que R.R. o faça, abdicar de toda e qualquer ação institucional, isto é, nos marcos e limites do Estado. Esta é uma contingência e circunstância determinada pelo estado atual das lutas de classes em nosso país e, de modo mais geral, no mundo. E as “esquerdas de Estado” ocupam  um lugar na conformação atual do Estado brasileiro e podem, a partir das posições ocupadas, contribuir mais ou menos para o avanço de algumas reivindicações, mais ou menos para fortalecer as “esquerdas sociais” e sua dinâmica. Mas o que parece, a esta altura, fundamental afirmar é que seja a revolução, sejam alterações expressivas na atual correlação de forças, sejam conquistas expressivas nas condições de vida da imensa maioria da população, terão como origem e motor nas práticas conflituosas de luta e organização no tecido social, fora e contra o poder exercido pelo estado em favor, com raríssimas exceções, do capital e das classes dominantes.

 Num discurso proferido em 1856, em reunião com militantes do Cartismo, Marx comentou como segue a surpresa com que as classes dominantes receberam a explosão reovolucionária de 1848:

 “Nos sinais que desorientam a classe média, a aristocracia e os pobres profetas da regressão, reconhecemos o nosso bom amigo, Robin Goodfellow, a velha toupeira que sabe trabalhar a terra tão rapidamente, esse digno sapador — a Revolução (Discurso no Aniversário de "The People's Paper", a 14 de Abril de 1856[N270]. https://www.marxists.org/portugues/marx/1856/04/14.htm#r1)

 

A velha toupeira trabalha no subsolo, sob a superfície do tecido social, e não frequenta os corredores dos palácios e gabinetes parlamentares. Será que a velha toupeira morreu? Ou será que, como sugere Chomsky, ela “está escavando lá em baixo e isso pode tomar diversos caminhos” (Noam Chomsky, “A velha toupeira de Marx está mesmo abaixo da superfície”. In Esquerda, 24/05/2021. Disponível em https://www.esquerda.net/artigo/chomsky-velha-toupeira-de-marx-esta-mesmo-abaixo-da-superficie/74527. Acesso em 03/06/2024).

 (sem revisão)

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