SEM REVISÃO
O professor Luis Felipe Miguel publicou há alguns
dias na sua conta do facebook um comentário sobre Marighella (ver abaixo, na
íntegra) que merece ser lido.
LFM diz ter “admiração por Marighella - o homem,
evidentemente, não o filme”.
O que LFM admira em Marighella é “sua coragem, por
sua integridade pessoal, por seu espírito de sacrifício e sua dedicação à causa
em que acreditava”.
Mas LFM também afirma que “sua estratégia de enfrentamento à
ditadura nunca foi mais do que um enorme e trágico equívoco. Entre todos que
optaram pela luta armada, Marighella foi talvez o que expressou com maior
nitidez uma visão totalmente marcada pelo voluntarismo e por um vanguardismo
militarista”.
Em seguida LFM detona o “Minimanual do guerrilheiro
urbano” e termina afirmando que “para transformar o mundo, nos anos 1960 tanto
quanto hoje, é preciso, ao contrário, ver a realidade sem alimentar ilusões. Para
isto, Marighella é, na verdade, um contra-exemplo”.
Penso diferente. Não acho que Marighella seja um “exemplo”,
mas tampouco concordo que ele seja um “contra-exemplo”.
Não acho que seja “exemplo”, em primeiro lugar
porque não acredito em “modelos”, em segundo lugar porque as condições históricas
são diferentes, em terceiro lugar porque Marighella não pode ser medido por seus
últimos 5 anos de vida e, finalmente, porque sua linha política e organizativa não
teve êxito.
Mas não concordo que Marighella seja um “contra-exemplo”.
Não apenas pelas razões indicadas por LFM, quando explica porque admira a
pessoa de Marighella, mas também por dois outros motivos.
O primeiro motivo é: Marighella fez parte da
direção do Partido Comunista por muitos anos, creio que desde 1945 até 1967.
Nesse período, defendeu as diferentes linhas adotadas pelo PC, inclusive a
moderadíssima linha da Declaração de Março de 1958, que está na base das
ilusões que desarmaram o PC frente ao golpe de 1964. Depois do golpe, o PC se
dividiu entre os que radicalizaram na linha derrotada e os que propunham mudar
de linha. Marighella esteve neste segundo grupo. Ele pode ter errado na estratégia
adotada, mas devemos valorizar a postura: frente a uma derrota estratégica, é preciso
mudar de estratégia. Esta postura ajudaria a esquerda brasileira a enfrentar os
problemas atuais.
(Antes que alguém pergunte: a mudança de estratégia
que defendo, no caso do PT, é retomar a linha do 5º Encontro Nacional de 1987,
nos termos que começaram a ser estabelecidos pelas resoluções do 6º Congresso
Nacional de 2017.)
O segundo motivo é: a esquerda brasileira foi
derrotada em 1964 e derrotada com pouquíssimo combate. A resistência que se
seguiu – parte dela através da luta armada – foi travada em péssimas condições.
Houve muitos erros e muitas ilusões. Entretanto, apesar da derrota, a luta armada
foi moralmente legítima e deu sua dose de contribuição (mesmo que pequena) para
a futura derrota da ditadura. Além disso, num país em que a elite estimula a
passividade e o conformismo, qualquer forma de resistência é melhor do que o quietismo.
É também por isso que a figura de Marighella gera tanta simpatia e respeito, não
apenas pessoal, mas político.
Nestes tempos de pragmatismo eleitoral, faz bem lembrar
que não se acumula forças jogando parado, não se acumula forças apenas em
partidas fáceis, não se acumula forças apenas nas vitórias. Lembrar, também,
que para quem está do lado certo, as derrotas não são definitivas.
LFM faz críticas procedentes ao voluntarismo, ao
vanguardismo e ao militarismo. Mas não se pode reduzir toda e qualquer
estratégia de luta armada ao vanguardismo militarista. E, apesar de todos os
erros, me parece forçar a barra dizer que foi tudo “um enorme e trágico equívoco”.
Não custa lembrar que durante os anos 1960 e 1970 dezenas de milhares de
pessoas, em dezenas de países, especialmente nas Américas, África e Ásia, adotaram
alguma modalidade de luta armada. Isto é mais que um “equívoco”.
Aqui vale a pena salientar o seguinte: eu iniciei
minha militância no PCdoB, mais exatamente num setor do PCdoB que fazia uma
crítica à estratégia adotada na Guerrilha do Araguaia. Ou seja: não estou entre
os defensores da estratégia adotada naquela época, mas há diferentes maneiras
de fazer a crítica das diferentes opções feitas então.
Isto posto, talvez minha principal diferença com LFM
esteja aqui: “para transformar o mundo (...)é preciso (...) ver a realidade sem
alimentar ilusões”.
Certamente, para interpretar o mundo é preciso fazer
uma análise realista da situação tal qual ela é. Formular política com base em
ilusões – do tipo acreditar que o imperialismo, a burguesia e a direita têm
algum compromisso com a democracia – é a receita certa para a derrota.
Mas nosso realismo na análise não busca apenas constatar
como “as coisas são”, busca também caminhos para mudar as coisas. Ou seja, nossa
análise busca localizar as contradições existentes na realidade e as possibilidades
de mudanças abertas por estas contradições. E aí está o nó: analisando de
maneira “realista”, as nossas possibilidades de êxito são tanto maiores quanto
menores forem as mudanças que pretendemos fazer.
Por isso os que desejam fazer mudanças profundas,
os que são revolucionários, precisam de uma “vontade” que seja “otimista” (para
citar o sardo). Mas de onde os revolucionários extraem o seu otimismo, se a razão
precisa ser “pessimista” (ou seja, realista, entender as coisas como elas são)?
Os religiosos resolvem este problema do jeito conhecido.
Mas e os materialistas, os adeptos do "socialismo científico"? Como manter a coerência entre o “pessimismo da razão” e
o “otimismo da vontade”, sem ter que apelar para uma variável externa (como um Deus)
ou para o acaso?
Do ponto de vista teórico, a solução está na
dialética das contradições. Mas resolver o problema do ponto de vista teórico
não o torna mais fácil de resolver do ponto de vista político: afinal, a vida
vem confirmando que as chances de derrotar e superar o capitalismo são historicamente
pequenas, as revoluções vitoriosas são fenômenos raros, a inércia histórica
favorece a classe dominante.
É por isto que – do ponto de vista político – não devemos
menosprezar o papel da “ilusão” na história. Não considero realista transformar
profundamente o mundo sem alguma dose de “ilusão”. Sem sacrifícios que parecem
impossíveis de suportar, sem sonhos generosos que parecem utópicos, sem metas
aparentemente inalcançáveis, sem objetivos aparentemente impossíveis, as
grandes mudanças não aconteceriam. Aliás, as revoluções também servem para “esticar
os limites” do possível; depois que passa o auge de uma revolução, muita coisa
retrocede, mas o saldo geral é um progresso histórico, transformando em realidade
uma das possibilidades contidas na realidade.
Sem base real, os sonhos não se convertem em realidade.
Sem um pouco de sonho, a realidade não se transformará radicalmente. Neste
sentido, “para transformar o mundo é preciso ver a realidade tal como ela é,
mas também é preciso “alimentar (um pouco de) ilusões”. Menos, é claro, as
ilusões nos inimigos. Em favor destes, nenhuma ilusão é possível nem é
perdoável.
Por último, mas não menos importante: o filme de
Wagner Moura tem mil defeitos. Mas também tem qualidades. Entre as quais ter
provocado a fúria do lado de lá. E estar provocando rebuliços do lado de cá. O
que já está de ótimo tamanho.
#
https://www.facebook.com/luisfelipemiguel.unb
Tenho admiração por Marighella - o homem,
evidentemente, não o filme.
Por sua coragem, por sua integridade pessoal, por
seu espírito de sacrifício e sua dedicação à causa em que acreditava.
Mas é necessário ter clareza, também, de que sua
estratégia de enfrentamento à ditadura nunca foi mais do que um enorme e
trágico equívoco.
Entre todos que optaram pela luta armada,
Marighella foi talvez o que expressou com maior nitidez uma visão totalmente
marcada pelo voluntarismo e por um vanguardismo militarista.
A divisa que resume sua estratégia é reveladora:
"transformar a situação política em situação militar".
A leitura de seu "Minimanual do guerrilheiro
urbano" chega a ser embaraçosa. Parece que somos jogados num mundo de
fantasia.
Marighella descreve com minúcias os talentos e
competências que o guerrilheiro deve necessariamente ter. É o retrato de um
herói da Marvel - ou, talvez, de um 007 comunista.
Vai de "nunca deixar pistas ou traços" a
ser "resistente à fadiga, fome, chuva e calor". De "conquistar a
arte de ter paciência ilimitada" a ser perito em "sobrevivência na
selva, escalar montanhas, remar, nadar, mergulhar, pescar, caçar pássaros, e
animais grandes e pequenos". De "manter-se calmo e tranquilo nas
piores condições e circunstâncias" a saber "dirigir, pilotar um
avião, manejar um pequeno bote, entender mecânica, rádio, telefone,
eletricidade, e ter algum conhecimento das técnicas eletrônicas".
E também "ter conhecimentos de informação
topográfica, poder localizar a posição através de instrumentos ou outros
recursos disponíveis, calcular distâncias, fazer mapas e planos, desenhar
escalas, calcular tempos, trabalhar com escalonamentos, compasso, etc."
E mais "um conhecimento de química e da
combinação de cores, a confecção de selos, o domínio da arte da caligrafia e de
copiar letras".
Sem esquecer de que precisa "ser doutor ou
entender de medicina, enfermaria, farmacologia, drogas, cirurgia elementar, e
primeiros socorros de emergência".
Embora, claro, "a questão básica na preparação
técnica do guerrilheiro urbano é o manejo de armas, tais como a metralhadora, o
revólver automático, FAL, vários tipos de escopetas, carabinas, morteiros,
bazucas etc." Incluindo "conhecimento de vários tipos de munições e
explosivos". E vai por aí afora.
Um mundo de faz-de-conta. Mas, para transformar o
mundo, nos anos 1960 tanto quanto hoje, é preciso, ao contrário, ver a
realidade sem alimentar ilusões.
Para isto, Marighella é, na verdade, um
contra-exemplo.
Li em uma biografia de Karl Marx que uma vez sua filha, quando criança, pediu ao pai que respondesse a um daqueles questionários contendo várias perguntas sobre a opinião do entrevistado em torno de vários temas (gostos, predileções, medos, etc.). Uma das questões era mais ou menos o seguinte: "Dentre os defeitos observados em algumas pessoas, qual aquele que você mais releva?"A resposta do velho barbudo teria sido "a credulidade".
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