segunda-feira, 18 de março de 2019

Roteiro de conjuntura


Roteiro de exposição feita em atividade da Fisenge, dia 15 de março de 2019.

O presidente Bolsonaro tomou posse no dia 1 de janeiro de 2019. Esta análise está sendo feita, portanto, antes de se completarem os primeiros 100 dias de governo. 

Neste curto espaço de tempo, o presidente se envolveu em inúmeras e desgastantes polêmicas, a mais recente das quais é sua intimidade com os assassinos da vereadora Marielle Franco (PSOL, RJ). 

São tantas as polêmicas e tamanho o desgaste, que há analistas que falam que o presidente não chega ao final do mandato e que seu governo estaria desmoronando.

Para evitar uma análise impressionista, marcada pelos acontecimentos conjunturais, é útil enquadrar o governo Bolsonaro em uma perspectiva histórica. 

Quando olhamos a trajetória através da qual se construiu a sociedade brasileira, percebemos quatro traços destacados: a dependência externa, a desigualdade social, o déficit democrático e o desenvolvimento conservador.

Estas quatro traços não se impuseram naturalmente, espontaneamente, sem luta. Sempre houve resistência, sempre houve luta por outros caminhos para o Brasil. Essa luta, do ponto de vista político-ideológico, foi travada a partir de quatro diferentes tradições: o desenvolvimentismo progressista, o nacionalismo popular, o democratismo radical e o socialismo. Cada uma destas tradições corresponde, por sua vez, a diferentes frações, classes e blocos sociais.

As tradições descritas e as correspondentes forças sociais nunca conseguiram impor uma derrota global às classes dominantes brasileiras. Ou seja, o poder de Estado no Brasil Republicano nunca passou às mãos da maioria do povo brasileiro.  O máximo que aquelas tradições e forças descritas conseguiram, ao longo de toda a nossa história republicana, foi conquistar pelo voto e controlar por breve período de tempo, o governo federal.

Isto ocorreu por três vezes: no governo Getúlio Vargas (1950-1954), no governo João Goulart (1961-1964) e nos governos Lula e Dilma (2003-2016). Nos três casos, foram governos marcados por contradições internas, insuficiências, concessões e alianças com setores das classes dominantes. Nos três casos, a experiência de governo de setores populares foi encerrada com um golpe de Estado. Demonstrando que não existe, ou é muito pequena, a margem de manobra para uma experiência reformista no Brasil.

Por golpe de Estado, nos referimos a uma ação do núcleo duro do aparato de Estado (constituído pelos militares e por outros setores da burocracia permanente de Estado) contra aqueles que ocupam através do voto o governo. No golpe de Estado, o núcleo duro do Estado age em nome dos interesses da classe dominante, que detém o poder efetivo, contra aqueles que detém temporariamente o governo.

Cada golpe tem sua história. No caso do golpe mais recente, ele foi realizado em três fases: o impeachment sem crime de responsabilidade, que afastou a presidenta Dilma em 2016; a condenação, prisão e interdição de Lula, ocorrida ao longo de 2018; e a eleição de Jair Bolsonaro, em outubro de 2018. A eleição de Bolsonaro não era inevitável: contra Lula, ele perderia; contra Haddad, ganhou graças a um tsunami de fake news; e mesmo assim, porque antes houve um derretimento das demais candidaturas conservadoras.

O golpe de 2016-2018, como os outros, foi possível graças a uma ampla frente anti-democrática, composta pelos políticos conservadores, pelos setores médios tradicionais, pela mídia oligopolista, pelo partido judiciário, pela cúpula militar, pelas empresas disfarçadas de igrejas, pelos governos dos EUA e de Israel, pelo grande capital. O clã familiar dos Bolsonaro foi um instrumento de uma operação mais ampla, não foi seu demiurgo, nem é seu arcabouço.

Visto desta perspectiva histórica, o golpe que desembocou na eleição de Bolsonaro e na constituição de seu governo não são, portanto, um ponto fora da curva. Mas há pelo menos duas novidades importantes, em relação aos golpes de 1954 e de 1964: a) pela primeira vez, assistimos a uma vitória eleitoral da extrema-direita; b)nunca antes em nossa história o crime organizado chegou tão perto da presidência da República.

Qual o programa do governo Bolsonaro (e da frente ampla golpista que o elegeu)? Este programa pode ser resumido em três ideias: aumentar a taxa de dependência, aumentar a taxa de exploração e aumentar a taxa de opressão política. 

Este programa vem sendo executado pelo governo, desde o primeiro dia. Submissão aos EUA, ao ponto de colocar o Brasil em pé de guerra contra a Venezuela. Adoção de medidas que aumentam o desemprego, reduzem o salário direto e indireto, destroem o sistema público de aposentadoria em benefício dos interesses do capital financeiro. Estímulo à violência e a militarização da vida cotidiana, ataque contra as liberdades civis e os direitos humanos, agressão contra os sindicatos e os partidos de esquerda, ataques contra o pensamento democrático e socialista.

Os impactos disto na sociedade brasileira são e serão tremendos, caso este programa não seja detido e o governo Bolsonaro não seja derrubado. Não apenas serão acentuados os quatro traços citados no início deste texto (dependência, desigualdade, déficit democrático e desenvolvimento conservador). Na prática, seremos levados de volta aos anos 1920, fazendo do Brasil um país periférico, uma fazenda e uma empresa de mineração. E a volta dos militares ao centro da político, mais as medidas que visam impedir que a esquerda volte ao governo federal empurram o Brasil para uma situação política de profunda instabilidade e crise, econômica, social e política.

O governo Bolsonaro não é, portanto, um governo “normal”. Ele encerra um ciclo inédito na história do Brasil Republicano. Em 130 anos de República (1889-2019), o Brasil viveu três situações: 81 anos em que apenas os partidos da classe dominante podiam disputar e vencer eleições; 36 anos de ditaduras assumidas, em que nem mesmo os partidos da classe dominante podiam disputar e vencer eleições para controlar o governo federal; e 13 anos em que partidos ligados à classe trabalhadora não apenas puderam disputar, mas também conseguiram vencer e governar o país. É este ciclo inédito de 13 anos que o governo Bolsonaro encerrou.

Isto não quer dizer que Bolsonaro chegará até o final de seu mandato. Nem quer dizer que o governo Bolsonaro vai conseguir executar seu programa. Quando falamos que o governo Bolsonaro encerra um ciclo, queremos dizer que sua chegada (em decorrência do golpe 2016-2018) e  sua existência significam que houve uma alteração profunda nas condições que nos permitiram vencer 4 eleições presidenciais seguidas e governar o país por 13 anos.

Dito de outra maneira: mudou a estratégia da classe dominante, mudaram as condições da luta de classes no Brasil, tem que mudar a estratégia das classes trabalhadoras, da esquerda e particularmente do PT.

O governo Bolsonaro chega até o final? Vai conseguir implementar seu programa? A que custo? Através de que meios?

A resposta a estas perguntas não está dada. Dependerá de três variáveis: a evolução da situação internacional, a manutenção (ou não) da unidade entre as forças que deram o golpe militar e a força (e sentido) da oposição ao governo Bolsonaro.

As forças de oposição ainda estão profundamente divididas, acerca de como avaliam o passado recente (os 13 anos de governos Lula e Dilma), as causas da derrota (especialmente o peso relativo dos erros do PT nessa derrota), o significado da derrota (foi uma derrota eleitoral, ou foi uma derrota estratégica?) e, derivando disto tudo, qual deve ser a tática e qual deve ser a estratégia de enfrentamento ao governo Bolsonaro.

Bolsonaro pode não chegar ao fim de seu mandato, como Fernando Collor e Jânio Quadros não chegaram. Mas isso não quer dizer que a frente ampla golpista e o governo resultante não consigam aplicar seu programa. Bolsonaro é descartável. O exoesqueleto do governo é composto por mais de 60 militares ocupando postos estratégicos no governo federal, inclusive a vice-presidência da República. 

Por outro lado, o objetivo da esquerda não é apenas resistir. O objetivo da esquerda é triplo: resistir, derrotar o governo Bolsonaro e a coalizão que o sustenta, voltar a governar o Brasil.

Tendo tudo isso em conta, a oposição deve se preparar para uma maratona, não para uma corrida de 100 metros. 

A maratona vai durar quanto tempo? O tempo necessário para que a esquerda recupere a influência perdida na classe trabalhadora. 

Nas eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro teve 57 milhões de votos, o candidato da esquerda teve 47 milhões e 31 milhões se abstiveram. Nos melhores momentos, em 2006, Lula chegou a ter mais de 57 milhões de votos. Em números, é disso que se trata. Mas politicamente falando, é muito mais do que isto. Trata-se de recuperar presença organizada e influência ideológica em amplos setores do povo.

Nos próximos dias, semanas e meses, haverá grandes batalhas no Brasil: contra a reforma da previdência, contra as medidas de (in)segurança propostas pelo governo, em defesa dos direitos sociais e humanos, em defesa das liberdades democráticas, em defesa da paz e da Venezuela, em defesa de Lula Livre e pela anulação de suas penas. 

Em todas e cada uma destas batalhas, poderemos derrotar o governo Bolsonaro. Se isto ocorrer, as forças que apoiam o governo Bolsonaro terão que decidir se recuam ou se dobram a aposta. Neste caso, pode haver um endurecimento ditatorial explícito. Também por isso é necessário investir na politização e na organização das classes trabalhadoras.

É neste contexto que deve ocorrer o Congresso do PT e a renovação das direções partidárias. Precisamos lutar para mudar as concepções que dominaram o Partido nos últimos anos. Precisamos de um partido militante e de combate, de direções capazes de contribuir para organizar a luta, de um programa de reformas estruturais articuladas com o socialismo, de uma oposição radical ao governo de extrema-direita, de disposição para lutar pelo poder. 


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