segunda-feira, 18 de março de 2019

A "estratégia" segundo Valério

Um conhecido filiado ao PSOL, cujo nome não vou citar para não arrumar mais confusão, disse uma vez que “estilo é tudo”.

E ninguém pode negar que Valério Arcary tenha estilo.

No PT, no PSTU ou no PSOL, o estilo continua basicamente o mesmo.

Há quem goste, há quem não goste. Eu acho muito divertido.

Me diverte, por exemplo, o texto que reproduzo na íntegra ao final, que começa assim: “há duas estratégias em disputa na oposição a Bolsonaro”, sendo que uma “é defendida pelo PSOL e a outra por Ciro Gomes”, estando o PT “dividido entre as duas”.

A partir desta afirmação, seguem alguns parágrafos de argumentação, que terminam assim: “O PT terá que decidir qual será a sua estratégia. Esse deverá ser a questão de fundo do 7º Congresso do PT”.

Como a última frase parece verdadeira, há quem termine a leitura com a impressão de que Valério acertou na mosca. 

Pode até ser, quem sabe.

Mas na minha opinião, esta impressão é causada pelo estilo de Valério, que neste caso sistematizo por minha conta e risco assim: se causares boa impressão no começo e no fim, o recheio passará desapercebido.

E qual o recheio, neste caso?

Primeiro: Valério chama de estratégia a definição sobre como a esquerda deve se comportar frente ao governo Bolsonaro.

Diz ele: “Uma estratégia é uma orientação de médio ou longo prazo que escolhe um fim a ser atingido. Ao longo de um período de defesa de uma mesma estratégia decorrem, todavia, variadas e diferentes táticas, de acordo com as circunstâncias. As táticas mudam, a estratégia permanece a mesma. Mas as táticas revelam qual é a estratégia”.

Se a estratégia é uma orientação que define um fim, pergunto: qual é o “fim a ser atingido”?

Neste texto, Valério não responde diretamente, mas sim indiretamente.

Diz ele: “há duas estratégias em disputa na oposição a Bolsonaro. A primeira tem como projeto acumular força na resistência, em cada luta, para tentar impedir o governo Bolsonaro de governar. Ou seja, lutar para impedir que a derrota eleitoral se transforme em derrota social ou derrota histórica. Lutar sem trégua para enfrentar o perigo autoritário de que o regime degenere em bonapartismo militar. Preparar, portanto, as condições para derrotar Bolsonaro e a coligação reacionária que lhe oferece sustentação nas instituições. Não aceitar o horizonte das próximas eleições em 2022 como referência estratégica para medir forças”.

Ou seja: “o fim a ser atingido” é derrotar Bolsonaro.

O que pode ser lido assim: o “fim a ser atingido” é recompor o regime democrático-liberal.

Pergunto: será esta a "estratégia", será este "o fim a ser atingido" pela esquerda socialista? 

Sigamos: qual seria a outra estratégia?

Segundo Valério, a outra estratégia seria a de Ciro Gomes, com “a maioria do PDT e do PSB”, que teria como objetivo “se posicionar como alternativa eleitoral de centro-esquerda hegemônica no campo da oposição, deslocando o PT, para as eleições de 2022”.

Tomo nota da cautelosa falta de opinião, por parte de Valério, acerca de qual seria a posição do PCdoB.

Sigamos: só faz sentido contrapor a “estratégia” do PSOL e a de Ciro Gomes, se por “estratégia” se compreender apenas e tão somente como fazer oposição a Bolsonaro.

Trata-se de uma concepção restrita do que deva ser a estratégia. Ao menos, do que deva ser a estratégia de um partido socialista.

Para fazer uma analogia, foi um tipo similar de reducionismo que levou uma parte do PT a pensar a “estratégia” como caminho para o governo, não como caminho para o poder.

Foi também um reducionismo similar que fez uma parte da esquerda brasileira abandonar a alternativa democrática, popular e socialista, convertendo em objetivo estratégico realizar governos “progressistas”.

Ao reduzir a estratégia a isso -- qual política adotar na oposição ao governo Bolsonaro -- Valério escorrega para um segundo equívoco, que acho ser inevitável para quem comete o primeiro.

A saber: fazer da questão democrática a questão central da estratégia.

Claro que Valério não é um liberal. Portanto, para ele a questão democrática não se resume às regras institucionais, eleitorais, legais.

Mas vamos ler o que ele escreveu: “desta estratégia decorre a defesa de uma “Frente Única” das esquerdas “em defesa dos direitos da classe trabalhadora”; e também decorre, “em outra chave, a unidade de ação com todos os partidos que estejam dispostos a defender as liberdades democráticas”.

Note que há uma “frente” em defesa dos direitos e a “unidade de ação” em defesa das liberdades democráticas.

Não sou contra nada disso. Mas sou contra reduzir a estratégia da esquerda a isto.

Não sou contra apenas por razões de princípio, mas também por razões mais concretas: entendo que no período histórico em que estamos, tanto no plano internacional quanto nacional, não teremos sucesso na luta democrática, na luta nacional e na luta em defesa dos direitos, se não integrarmos estas três lutas entre si e se não integrarmos as três com a luta pelo socialismo.

Por isso, só vejo sentido falar em estratégia se o "fim a ser atingido" for o socialismo.

E falar em socialismo é falar em algo mais do que a “defesa dos direitos da classe trabalhadora”.

Pois, salvo engano, o que esta fórmula quer dizer é: defender os direitos econômicos, sociais e políticos conquistados no período anterior, que estão sendo atacados e revogados.

Não se trata, portanto, de lutar por ampliar estes direitos, muito menos refere-se a luta por uma ordem social distinta da capitalista.

Reafirmo portanto: o “fim a ser atingido” pela estratégia, tal como Valério apresenta o termo, resume-se a recompor o status quo ante.

Talvez por isso Valério não fale acerca de Ciro Gomes algo essencial a ser dito: o projeto estratégico de Ciro é o nacional-desenvolvimentismo autoritário. 

É fundamentalmente por isso que a política de Ciro frente ao governo Bolsonaro é totalmente diferente da política adotada pelo PT e pelo PSOL. 

O problema de Ciro não está em subestimar os riscos e ameaças do governo Bolsonaro; o problema dele é que seu objetivo estratégico é antagônico ao nosso. 

E o antagonismo não está apenas ou principalmente no terreno democrático, está no projeto de longo prazo.

Neste caso, a tática frente ao governo Bolsonaro é diferente, porque os objetivos estratégicos são diferentes.

O terceiro equívoco de Valério tem uma causa mais simples: por razões meio óbvias, ele quer apresentar o PSOL como polo e o PT como polarizado.

Talvez por conta deste ponto de partida um pouquinho sectário, Valério não perceba que a disputa existente no PT não diz respeito apenas a política frente ao governo Bolsonaro.

Existe um outro debate, este sim estratégico no sentido pleno e forte da palavra, ou seja: como lutar pelo socialismo.

O curioso é que, ao não colocar o socialismo sobre a mesa, ao enfatizar a questão democrática, ao resumir a estratégia a como enfrentar o governo Bolsonaro, Valério adota a mesma linha de argumentação de alguns setores do PT.

E onde está a parte divertida?

A diversão está em que, se Valério continuar nesta linha de argumentação e algum dia ele vier para o PT (quem sabe?), não estaríamos do mesmo lado.

Seria ótimo: terminarmos de novo juntos no mesmo Partido, o Partido dos Trabalhadores, com Valério na ala direita. 

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Há duas estratégias em disputa na oposição a Bolsonaro. Uma é defendida pelo Psol e a outra por Ciro Gomes. E o PT está dividido entre as duas. Toda intervenção política séria deve ser orientada por uma estratégia. Uma estratégia é uma orientação de médio ou longo prazo que escolhe um fim a ser atingido. Ao longo de um período de defesa de uma mesma estratégia decorrem, todavia, variadas e diferentes táticas, de acordo com as circunstâncias. As táticas mudam, a estratégia permanece a mesma. Mas as táticas revelam qual é a estratégia.
Só é possível atribuir sentido às diferenças táticas no interior da esquerda se elucidamos a divergência de estratégia: apoiar Rodrigo Maia ou Marcelo Freixo para a presidência da Câmara dos Deputados, por exemplo, foi uma divergência tática. Mas ela obedece a estratégias diferentes. Qualquer organização ou liderança que age sem estratégia, portanto, de acordo com as pressões do momento, não vai muito longe, porque é errática, como a biruta de aeroporto. Acompanha as flutuações dos ventos. Não é possível a representação política sem coerência. 
Há duas estratégias em disputa na oposição a Bolsonaro. A primeira tem como projeto acumular força na resistência, em cada luta, para tentar impedir o governo Bolsonaro de governar. Ou seja, lutar para impedir que a derrota eleitoral se transforme em derrota social ou derrota histórica. Lutar sem trégua para enfrentar o perigo autoritário de que o regime degenere em bonapartismo militar. Preparar, portanto, as condições para derrotar Bolsonaro e a coligação reacionária que lhe oferece sustentação nas instituições. Não aceitar o horizonte das próximas eleições em 2022 como referência estratégica para medir forças. Desta estratégia decorre a defesa de uma Frente Única do Psol com o PT, o PCdB, e todos os partidos de esquerda com as Centrais Sindicais e movimentos populares, feministas negros, de juventude e LGBT’s em defesa dos direitos da classe trabalhadora. E, também, em outra chave, a unidade de ação com todos os partidos que estejam dispostos a defender as liberdades democráticas: justiça para Marielle, Lula Livre, contra as arbitrariedades autoritárias que ameaçam as liberdades. 
A segunda, liderada por Ciro Gomes, unifica a maioria do PDT e do PSB e tem como objetivo se posicionar como alternativa eleitoral de centro-esquerda hegemônica no campo da oposição, deslocando o PT, para as eleições de 2022. Defendem que o governo Bolsonaro não é uma ameaça ao regime democrático-eleitoral. Bolsonaro e a sua coalizão seriam somente uma alternância “normal” entre governos de esquerda, centro ou direita. Desvalorizam a gravidade do ajuste estrutural que Paulo Guedes pretende realizar com a avalanche de reformas nas relações sociais de trabalho. Não considera real e iminente o perigo do governo de extrema-direita destruir, reacionariamente, o equilíbrio de poder entre as instituições; desvalorizam as ameaças autoritárias; silenciam sobre o tsunami de privatizações, e se calam sobre o espantoso peso dos militares nos ministérios. Por isso, insistem em se colocar como uma oposição que dialoga com o governo para negociar emendas a reformas como a da Previdência Social. 
Essas duas estratégias são irreconciliáveis. Elas não impedem que se possa fazer alguma unidade tática. Mas são, fundamentalmente, incompatíveis. 
O PT terá que decidir qual será a sua estratégia. Esse deverá ser a questão de fundo do 7º Congresso do PT.

Valério Arcary

Um comentário:

  1. Assim como a estratégia proposta por Valério pode ser lida como restrita, a que Pomar propõe é tão ampla, que se torna etérea. Boa sorte em ir aos sindicatos, aos bairros e as comunidades rurais convence-los em construir o socialismo.

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