quinta-feira, 28 de março de 2019

A desordem do dia

No dia 27 de março de 2019, o Ministério da Defesa publicou a “ordem do dia” que deve ser lida, no dia 31 de março, nas instituições militares em todo o Brasil.

O texto está disponível no endereço 
https://www.defesa.gov.br/noticias/54245-ordem-do-dia-alusiva-ao-31-de-marco-de-1964

Traz as assinaturas de Fernando Azevedo e Silva, Ministro de Estado da Defesa; de Ilques Barbosa Júnior, Almirante de Esquadra e Comandante da Marinha; de Edson Leal Pujol, general e Comandante do Exército; de Antônio Bermudez, tenente brigadeiro e Comandante da Aeronáutica.

Reproduzo ao final a íntegra da ordem do dia.

Sem qualquer expectativa de que alguma autoridade tome as devidas providências, faço os seguintes comentários:

1/o texto omite qualquer comentário ou descrição sobre o que ocorreu no país entre 1964 e 1979.

Não fala nada das prisões, torturas, assassinatos, desaparecimentos e ocultação de cadáveres.

Nem fala do fechamento dos partidos e do Congresso, cassações, aposentadorias compulsórias, exílios forçados.

Por quê será? 

Hipótese: talvez porquê os atuais comandantes militares não apenas respaldem o que foi feito, como considerem que podem ter que fazer de novo.

2/o texto passa a impressão de que a ditadura terminou em 1979.

Por quê será? 

Hipótese: talvez porquê os atuais comandantes militares achem que presidente militar, tutela militar, intervenção militar e um pouquinho de terrorismo de extrema-direita, desde que acompanhadas de um pouquinho de liberdades democráticas, não constituam propriamente uma ditadura.

E quem não concordar, bem, lembre-mo-nos da memorável frase do General João Baptista de Oliveira Figueiredo, em 15/10/1978: "É para abrir mesmo. E quem quiser que não abra, eu prendo. Arrebento. Não tenha dúvidas"

3/o texto sustenta a tese de que os militares agiram, em 1964, sob pressão dos civis. Distorce e omite fatos, subverte a cronologia, propõe explicações ficcionais. Por quê será? 

Talvez porquê os atuais comandantes militares desejem, mais do que reescrever a história do golpe militar de 1964, confundir as muitas digitais que deixaram nos golpes dados entre 2016 e 2018. 

Nem antes, nem agora, a cúpula das forças armadas foi polo passivo. 

4/o texto afirma que o “31 de Março de 1964” deu “ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do Presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15”.

Nesta sequência ficcional, omite-se que no 31 de março começou um golpe militar contra o presidente constitucional do país.

Omite-se que a maioria do Congresso Nacional e do STF foi cúmplice do golpe.

Omite-se que o presidente João Goulart estava em território nacional, quando o cargo foi declarado vago.

Omite-se que a eleição indireta de Castello Branco foi a primeira de muitas, pois só em 1989 o povo brasileiro voltaria a eleger diretamente seu presidente da República.

Etc.

4/o texto defende ser importante a “capacidade de aprender”, mas apresenta uma “perspectiva histórica” saída dos manuais da Guerra Fria made in USA, segundo os quais tanto o “comunismo quanto o nazifascismo” passaram a constituir “as principais ameaças à liberdade e à democracia”, contra os quais “o povo brasileiro teve que defender a democracia com seus cidadãos fardados”. 

Para não cair em absoluta e ridícula contradição, o texto omite de que lado estiveram os fascistas e a ditadura, em 1935. 

Omite de que lado estiveram a URSS e os comunistas, na Segunda Guerra. 

E omite a diferença de tratamento dado aos militares fascistas e aos militares comunistas, depois de 1964: uns promovidos, outros degolados.

5/o texto apresenta o golpe de 1964 como produto do “ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no País. As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo”.

A “escalada em direção ao totalitarismo” é produto do mesmíssimo delírio que faz o presidente Bolsonaro afirmar que o Brasil estaria caminhando para o socialismo e o comunismo, por conta de petistas ocuparem a presidência da República.

Mas o mais importante é: atribui-se a intervenção militar de 1964 “ao clamor da ampla maioria da população”. Com que provas? Aliás, se era a “ampla maioria”, porque as eleições diretas para presidente foram suspensas por décadas??

6/o texto afirma que em 1979, “um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia”. 

Esta tese, esposada por muita gente, é absolutamente falsa.

Não houve pacto. Houve imposição de uma lei para proteger criminosos, torturadores e ocultadores de cadáver.

Não houve pacificação. Alias, a impunidade dos criminosos da ditadura tem relação direta com o envolvimento de militares no crime e com as violências praticadas cotidianamente pelas forças de “segurança pública” contra parcelas importantes da população brasileira.

7/o texto conclui dizendo que, “cinquenta e cinco anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da Nação Brasileira. Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da história”.

Ou seja: fizemos bem feito e se for necessário voltaremos a fazer de novo.

Num país que prezasse as liberdades democráticas, os autores desta ordem do dia deveriam ser imediatamente demitidos e submetidos a julgamento.

E ainda há quem acredite que estes senhores seriam “os adultos na sala”, que Mourão seria “sensato” e que Bolsonaro é um ponto fora da curva.

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Eis a ordem do dia:

As Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de Presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do Presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15.

Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano - a capacidade de aprender.

Desde o início da formação da nacionalidade, ainda no período colonial, passando pelos processos de independência, de afirmação da soberania e de consolidação territorial, até a adoção do modelo republicano, o País vivenciou, com maior ou menor nível de conflitos, evolução civilizatória que o trouxe até o alvorecer do Século XX.

O início do século passado representou para a sociedade brasileira o despertar para os fenômenos da industrialização, da urbanização e da modernização, que haviam produzido desequilíbrios de poder, notadamente no continente europeu.

Como resultado do impacto político, econômico e social, a humanidade se viu envolvida na Primeira Guerra Mundial e assistiu ao avanço de ideologias totalitárias, em ambos os extremos do espectro ideológico. Como faces de uma mesma moeda, tanto o comunismo quanto o nazifascismo passaram a constituir as principais ameaças à liberdade e à democracia.

Contra esses radicalismos, o povo brasileiro teve que defender a democracia com seus cidadãos fardados. Em 1935, foram desarticulados os amotinados da Intentona Comunista. Na Segunda Guerra Mundial, foram derrotadas as forças do Eixo, com a participação da Marinha do Brasil, no patrulhamento do Atlântico Sul e Caribe; do Exército Brasileiro, com a Força Expedicionária Brasileira, nos campos de batalha da Itália; e da Força Aérea Brasileira, nos céus europeus.

A geração que empreendeu essa defesa dos ideais de liberdade, com o sacrifício de muitos brasileiros, voltaria a ser testada no pós-guerra. A polarização provocada pela Guerra Fria, entre as democracias e o bloco comunista, afetou todas as regiões do globo, provocando conflitos de natureza revolucionária no continente americano, a partir da década de 1950.

O 31 de março de 1964 estava inserido no ambiente da Guerra Fria, que se refletia pelo mundo e penetrava no País. As famílias no Brasil estavam alarmadas e colocaram-se em marcha. Diante de um cenário de graves convulsões, foi interrompida a escalada em direção ao totalitarismo. As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo.

Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis. As lições aprendidas com a História foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações. Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços.

As Forças Armadas, como instituições brasileiras, acompanharam essas mudanças. Em estrita observância ao regramento democrático, vêm mantendo o foco na sua missão constitucional e subordinadas ao poder constitucional, com o propósito de manter a paz e a estabilidade, para que as pessoas possam construir suas vidas.

Cinquenta e cinco anos passados, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da Nação Brasileira. Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História.

Um comentário:

  1. Nunca imaginei que fosse viver para ter conhecimento de homenagens públicas a um tempo tão vergonhoso, antidemocrático, antipopular, criminoso, da historia do Brasil . Tristeza, raiva, asco e desesperança.������

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