Entre 1989 e 2014, a política brasileira foi dominada pelo embate entre neoliberais e petistas. Nas eleições presidenciais de 1989, a bandeira do neoliberalismo foi defendida por Fernando Collor de Melo. Mas nas eleições de 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, a bandeira do neoliberalismo foi defendida pelo Partido da Social Democracia Brasileira (o PSDB). Do outro lado, de 1989 até 2014, sempre esteve o Partido dos Trabalhadores.
Em 2014, o segundo turno das eleições presidenciais foi decidido por poucos votos, em meio a uma batalha épica. Os derrotados não aceitaram o resultado, chegando a questionar inclusive a composição social da votação obtida pela presidenta Dilma Rousseff (ou seja, dizendo que como seus eleitores eram pobres e beneficiários das políticas sociais do governo, seu voto não valia tanto quanto o voto supostamente ilustrado dos setores que haviam votado no candidato do PSDB).
Logo após o segundo turno de 2014, os derrotados deixaram claro, de forma absolutamente compreensível e explícita, que estavam dispostos a apelar para o golpe de Estado e que não repetiriam o erro cometido por Geraldo Alckmin em 2005, quando em meio a chamada “crise do mensalão”, decidiu não pedir o impeachment de Lula, por acreditar que o PT e Lula “sangrariam” até serem derrotados em 2006.
Pós segundo turno de 2014, diferente do que fizera Alckmin de 2006, o PSDB e a oligarquia sabiam que, se Dilma Rousseff havia conseguido vencer naquele ano, Lula teria imensas chances de vencer nas eleições presidenciais de 2018. Portanto, para impedir a continuidade do PT na presidência da República, a única saída era o golpe de Estado.
E os vencedores de 2014? O que fizeram os petistas? Estes, na maioria dos casos, não entenderam o que estava acontecendo e cometeram um dos maiores erros de nossa história. A presidenta Dilma Rousseff, numa decisão apoiada integralmente por Lula e por 55% do PT, decidiu trocar de ministro da Fazendo, substituído Guido Mantega por Joaquim Levy. Levy era alto executivo do Banco Bradesco, um dos gigantes do sistema financeiro brasileiro. Levy, um ministro da Fazenda alinhado com as teses do PSDB, executou um ajuste econômico ortodoxo que prejudicou o Brasil, a classe trabalhadora e o governo.
Porque Dilma, Lula e a maioria do PT escolheram este caminho? Porque acreditavam que, adotando a política econômica proposta pelos derrotados de 2014, estes se dividiriam. Ou seja, Dilma, Lula e a maioria do PT acreditavam que o grande empresariado se acomodaria, o que isolaria os setores golpistas da oposição. Mas não foi isso o que aconteceu. A verdade, como dizia 45% do Partido, era que a opção pelo golpismo não era apenas de Aécio Neves e de uma quadrilha, a opção pelo golpismo era da maior parte da classe dominante brasileira.
Esta opção golpista se devia, entre outros motivos, à mudança no cenário internacional: depois da crise de 2008 e especialmente depois que os Estados Unidos iniciaram uma desvalorização competitiva do dólar, reduzindo a lucratividade das exportações brasileiras, a classe dominante passou a apostar todas as suas fichas numa operação que em síntese era a seguinte: recuperar as taxas de lucro destruindo os direitos, os empregos e os salários da classe trabalhadora. E para fazer isso, era preciso tirar o PT da Presidência da República.
O restante da história é conhecido: primeiro veio o golpe parlamentar-judicial de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff; depois veio a condenação e prisão do presidente Lula; em seguida veio a interdição da candidatura presidencial de Lula e eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018. E aqui reside a novidade, que faz com que a história político-eleitoral do Brasil entre 2018 e 2025 seja diferente da história do Brasil entre 1994 e 2014. Desde 2018, a disputa política passou a ter três polos: o PT, a direita tradicional e a extrema-direita.
Acontece que o PSDB e seus aliados que compõem a direita tradicional, quando praticaram o golpe de 2016 contra Dilma e o golpe de 2018 contra Lula, o fizeram na expectativa de vencer as eleições presidenciais de 2018 com um candidato da direita tradicional, programaticamente neoliberal, mas supostamente “democrática”.
Acontece que, como diz um ditado antigo, “quem planta vento colhe tempestade”. Durante anos o PSDB vinha guinando à direita, vinha estimulando a extrema-direita a vir para as ruas combater a esquerda. E, muito antes disso, essa mesma direita tradicional não quisera condenar e punir os crimes da ditadura militar brasileira (1964-1985). A direita tradicional optara por manter as forças armadas intocadas; e essas forças armadas seguiram ensinando aos novos oficiais e soldados que, em 1964, ocorrera um “movimento democrático”, não um golpe militar. Por outro lado, esta direita tradicional neoliberal era e continua sendo profundamente antipopular, o que ficou evidente durante o governo golpista de Michel Temer (2016-2018).
Tudo isso junto e misturado explique por que motivos, nas eleições presidenciais de 2018, Jair Bolsonaro apareceu como grande favorito, numa operação conduzida pelo alto comando das forças armadas, especialmente pelo general Vilas Boas, o mesmo que era tratado como aliado por setores do governo Dilma e por setores da esquerda brasileira, Aliás, é bom lembrar que setores insuspeitos da esquerda brasileira chegaram a fazer circular um abaixo-assinado em favor de Vilas Boas, demonstrando total incapacidade de perceber o que estava ocorrendo.
No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, a maior parte da direita tradicional não titubeou: preferiu votar em Jair Bolsonaro para derrotar Fernando Haddad, apesar deste ser, nas palavras de Lula, o mais tucano dos petistas. Em seguida vieram quatro anos de governo da extrema-direita, durante os quais a direita tradicional buscou conciliar o quanto pode, tendo como motivo principal para fazer isso o fato de Bolsonaro aplicar um programa neoliberal e atacar duramente a esquerda.
Mas a recíproca não era verdadeira: assim como a ditadura proscreveu os direitos políticos não só da esquerda, mas também de parte da direita que apoiou o golpe de 1964, Bolsonaro também pretendia limitar os direitos de parte da direita que apoiou sua vitória em 2018. O Supremo Tribunal Federal (STF) e a Rede Globo de Televisão estavam na lista de alvos de Jair Bolsonaro. É por isso que o STF e a Globo foram protagonistas de uma reviravolta política: a libertação e o direito de Lula concorrer às eleições de 2018.
Durante décadas, desde 1980, a liderança de Lula fora projetada e apoiada pelo Partido dos Trabalhadores, Foi graças ao apoio do PT e da militância de esquerda que Lula preservou um “capital eleitoral” que o tornava o único capaz de derrotar Bolsonaro em 2022. Parte da direita tradicional, percebendo isso, capitulou à realidade e aceitou que Lula voltasse à cena, para impedir a reeleição de Bolsonaro.
Evidentemente, a direita tradicional tomou suas precauções e estava confiante de que um Congresso Nacional que adotara um parlamentarismo de fato, um Supremo Tribunal empoderado pela judicialização da política e um Banco Central com imensa autonomia manteriam Lula sob controle.
Os planos da direita tradicional foram relativamente bem-sucedidos. Lula foi eleito, ainda que por pequena diferença. E tão logo eleito, adotou uma política fiscal extremamente ortodoxa, que previa a obtenção de “déficit zero”, quimera cuja tradução em linguagem corrente é: mais dinheiro para os donos da dívida pública.
Mas há três fatos que prejudicaram os planos da direita tradicional, que pretendia manter Lula sob controle. O primeiro fato foi a intentona golpista da extrema-direita, cujo ápice foi o quebra-quebra de 8 de janeiro de 2023. A intentona gerou repercussões que mantêm a política nacional polarizada até hoje, impedindo a “pacificação neoliberal” que a direita tradicional tentou e segue tentando. O segundo fato é a situação internacional, marcada pela ofensiva do governo Trump, por guerras, massacres e crises, que empurram o governo Lula e tomar medidas que se chocam com o receituário da direita tradicional. O terceiro fato é a postura do capital financeiro e do empresariado primário-exportador do Brasil: eles são incapazes de fazer mínimas concessões.
Estes três fatos estão empurrando o governo Lula e o PT para uma postura mais radical do que a admitida no script desejado pela direita tradicional. E, graças a esta postura um pouco mais radical, o governo Lula e o PT vem recuperando pontos nas pesquisas de opinião e se posicionando melhor para a disputa das eleições presidenciais de 2026.
O que vai acontecer nos próximos meses ainda é algo em aberto. A extrema-direita segue muito forte e dispõe de uma candidatura (a do atual governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freiras) que tem o potencial de atrair amplos setores da direita tradicional. Tudo aponta, portanto, para uma disputa política muito intensa, de resultado incerto, embora o mais provável seja a vitória de Lula.
Seja como for, é importante perceber que a sociedade brasileira se politizou imensamente, sendo evidente o conflito entre visões políticas antagônicas e excludentes. Como noutros momentos da história, a sociedade brasileira está diante de alternativas opostas. Soberania ou colônia? Democracia popular ou coronelismo? Bem-estar social ou trabalho análogo à escravidão? Industrialização ou primário-exportação? Sendo esta a situação, é natural que a política reflita estas contradições agudas. Sendo assim as coisas, a alternativa que resta para a esquerda brasileira é se preparar para vencer a guerra. E, mais do que isso, criar as condições para que o próximo mandato de Lula seja melhor do que o atual, marcado por muitas concessões à direita tradicional. Se teremos êxito ou não, só o futuro dirá.
Valter Pomar é professor da Universidade Federal do ABC e diretor de cooperação internacional da Fundação Perseu Abramo
Lula é o enigma não?
ResponderExcluirEle tem um plano?
Mas o povão ainda tem uma memória de seus governos muito afetiva.
Quando a família se reunia no final de ano pro churrasco e a Ceia.
Não é apenas a quantidade de refeições, ou seja as três que Lula prometeu e talvez cumpriu.
Era um tempo e um espírito (zeitgeist) sem tantas divisões.
Lula lll tenta fazer a mesma que antes, conseguirá?
Tem que enfrentar a questão da casta militar e da reforma agrária.
Lula foi convencido por Graziano que a questão agrária foi ultrapassada, mas esse é o ponto. O rentismo da terra, o rentismo financeiro bloqueiam o desenvolvimento da História.
Qual é o plano?