Todo final de ano, a tendência petista Articulação de Esquerda lança uma Agenda dedicada a um tema. Já tivemos agendas dedicadas ao aniversário do PT, da revolução russa, da revolução chinesa, da unificação do Vietnã, dos 100 anos do comunismo no Brasil, assim como agendas dedicadas à Rosa Luxemburgo, ao Che e a outras lideranças da luta pelo socialismo.
As vezes a
escolha do tema não é óbvia e dá certo trabalho. Mas para 2026, não havia
dúvida: dedicamos esta Agenda ao centenário de Fidel Castro.
Falar de
Fidel é falar de Cuba, ilha situada no mar do Caribe, com 110.922 km2 de
extensão e uma população que gira ao redor de 11 milhões de habitantes, ¾ deles
morando nas cidades.
O principal
fato político da história cubana foi e segue sendo a luta pela independência.
Nesta luta, há pelo menos três marcos: a guerra de 1868-1878 (derrotada); a
guerra de 1895-1902 (parcialmente vitoriosa); e a revolução de 1953-1959
(vitoriosa).
Na guerra de
1895-1902, quando os revolucionários estavam para vencer a guerra de
independência, os Estados Unidos invadiram Cuba a pretexto de “ajudar” os
cubanos na luta contra a Espanha. Por isto, quando é proclamada, em 20 de maio
de 1902, a República de Cuba nasce constitucionalmente atrelada aos Estados
Unidos. A chamada Emenda Platt legalizava o direito dos EUA intervirem em Cuba.
A história
de Cuba, de 1902 até 1959, girou ao redor da luta de independência contra os
Estados Unidos. Esta luta passa por diversas etapas, a última das quais se combinavam
com a a luta contra a ditadura surgida a partir de março de 1952, quando ocorre
um golpe encabeçado pelo sargento Fulgencio Batista.
Uma das
reações a este golpe é o ataque ao Quartel Moncada, ataque liderado por Fidel
Castro, jovem advogado ligado ao Partido Ortodoxo, partido que provavelmente
venceria as eleições canceladas devido ao golpe.
Fidel nasceu
no Oriente cubano, região de forte tradição revolucionária. Seu pai era
proprietário de uma finca de 10 mil hectares. Fidel fez parte de seus
estudos numa escola jesuíta, depois formou-se advogado. Na universidade,
participou ativamente do movimento estudantil e da política cubana, como
militante da ala esquerda do Partido Ortodoxo, num período histórico rico em
influências: Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial, a ascensão da URSS
à condição de potência, o início da “Guerra Fria”, o Bogotazo na Colômbia, o
golpe na Guatemala.
Mas o que
parece ter empurrado Fidel para uma militância revolucionária foi o duplo
impacto do suicídio (em 5 de agosto de 1951) de Eduardo Chibás, líder do
Partido Ortodoxo; e também do golpe de Batista (10 de março de 1952). Os dois
acontecimentos deixaram pouca margem para a oposição democrática cubana.
Na época, Fidel
era então um nacionalista e um democrata radical. Sua referência principal era José
Martí, que ele chamará de “autor intelectual” do assalto ao Quartel Moncada.
O ataque ao
Moncada, realizado no dia 26 de julho de 1953, fracassa totalmente. Os poucos
sobreviventes, entre eles Fidel, são condenados à prisão. No julgamento, Fidel
faz sua própria defesa, que é posteriormente publicada num livro cujo título é
profético: A história me absolverá!
Anistiados
em 1955, os líderes do assalto ao Moncada fundam o Movimento 26 de julho (M26),
vão para o exílio e desencadeiam um plano político-militar que os levaria ao
poder, em 1 de janeiro de 1959.
O M26 era
uma organização político-militar, com forte base urbana, especialmente entre os
setores médios. Existiam outras forças com muita presença de massa, como o
Diretório Revolucionário e o Partido Popular Socialista (nome assumido pelo
partido comunista em Cuba), além de um forte movimento estudantil e sindical.
É o M26 de
julho que organiza a expedição que chegará em Cuba, trazendo cerca de 80
revolucionários, a maioria dos quais morre em combate logo após o desembarque.
Os sobreviventes, liderados por Fidel, organizam a guerrilha em Sierra Maestra
e – com forte apoio político e material nas cidades – desencadeiam uma guerra
de guerrilhas que os levará ao triunfo.
Quanto
comandou o assalto ao Quartel Moncada, o programa de Fidel, delineado no
discurso A história me absolverá, é o de uma revolução
democrática e nacional. A derrota do assalto ao Quartel Moncada, a prisão, o
julgamento, o exílio, o regresso e a guerrilha na Sierra Maestra provocam uma
radicalização nesse programa, entre outros motivos porque a principal base
social da guerra transita dos setores médios urbanos para os trabalhadores
rurais.
Quando
conquistam o poder, no dia 1 de janeiro de 1959, os revolucionários –
especialmente aqueles vinculados ao Movimento 26 de julho – começam a
implementar um programa não apenas nacional, mas nitidamente anti-imperalista;
não apenas democrático, mas democrático-popular. O principal sinal disso é a
reforma agrária.
A burguesia
cubana, parte dos setores médios e o imperialismo estadounidense resistem e
contra-atacam, seja indo para fora do país, seja com intensa pressão ideológica
e política, estimulando dissidências no governo e nos grupos revolucionários,
fazendo sabotagem econômica e atentados e estimulando a intervenção dos Estados
Unidos. O ponto alto deste contra-ataque é o desembarque gusano-yankee em
Praia Girón.
É esse
momento que vai marcar a conversão de uma revolução democrático-popular em uma
revolução socialista. O anúncio foi o discurso feito por Fidel Castro, dia 15
de abril de 1961, na véspera da invasão da Praia Girón, episódio também
conhecido como Baia dos Porcos. Se tudo o que queremos fazer em Cuba é
socialismo, então a revolução é socialista...
Mas que tipo
de socialismo? E qual relação Cuba manteria com o “campo socialista” liderado
então pela União Soviética?
Vale lembrar
que a revolução cubana desmoralizou muitos dos dogmas do “marxismo-leninismo”
hegemônico no movimento comunista da época. Segundo aquele doutrina, os
Partidos Comunistas tinham por definição um papel de vanguarda nas
revoluções socialistas. Acontece que em Cuba o Partido Socialista Popular
cumpriu um papel secundário, e muitas vezes oposto às necessidades
revolucionárias.
Segundo a
doutrina já citada, a revolução em países atrasados como Cuba devia percorrer
primeiro uma etapa democrática-nacional-capitalista, e só depois a socialista,
sendo ambas separadas por um certo período histórico. Mas em Cuba as “etapas”
se confundiram num fluxo contínuo.
Para o
senso-comum de boa parte dos “marxistas-leninistas” da época, seria impossível
fazer uma revolução contra o Exército e nas barbas dos Estados Unidos. Mas em
Cuba ocorreram ambas as coisas.
Essas e
outras questões empurraram os revolucionários cubanos, sob a liderança de
Fidel, a buscar um caminho próprio. Nos dois casos, Che Guevara cumpriu um
papel destacado, tanto na tentativa de construir uma dinâmica econômica
diferente do modelo soviético, quanto na tentativa de estimular outros
revoluções que contribuíssem para reduzir o cerco dos EUA contra a revolução
cubana. O assassinato de Guevara, em outubro de 1967, simboliza a derrota
destas tentativas.
Na prática,
Cuba foi forçada a alinhar-se com a União Soviética, com seu modelo econômico,
com sua política internacional e com a doutrina “marxista-leninista”. Mas as
diferenças continuaram existindo, como demonstram o apoio cubano às guerrilhas
latino-americanas, para o desespero da linha “pacífica” predominante nos
partidos comunistas.
Fidel nunca
foi o “marxista-leninista” que as academias soviéticas (e norte-americanas)
desejariam. Vale lembrar, a esse respeito, o esforço feito para emprestar a
José Martí a mesma estatura de Lenin. Segundo os cubanos, Martí teria se
antecipado ao revolucionário russo, em duas questões fundamentais: na análise
do imperialismo e na teoria do Partido.
Mas apesar
das muitas e importantes diferenças, o fato principal é que o modelo econômico
adotado por Cuba a tornou altamente dependente do bloco dirigido pela URSS.
Entre o
Primeiro Congresso do PCC (1975) e a debacle do “campo socialista”
(1991), passaram-se pouco mais de quinze anos.
O desmanche
do bloco soviético impactou a economia cubana, atingindo fortemente um dos
pilares da hegemonia comunista na ilha: a relativa igualdade social. Quando aquele
bloco e a própria União Soviética deixaram de existir, Cuba perdeu,
simultaneamente, o comprador de seus produtos de exportação e o fornecedor de
suas importações. Entre 1989 e 1991, entre a dissolução dos regimes socialistas
no Leste Europeu e o fim da URSS, as exportações cubanas se reduziram em 62% e
as importações caíram pela metade.
Ao mesmo
tempo, os Estados Unidos ampliaram o bloqueio e todo tipo de sabotagem contra a
Ilha, na expectativa de que Cuba tivesse o mesmo destino dos regimes dirigidos
pelos partidos comunistas do Leste Europeu.
Nessas
circunstâncias, Cuba teve que gerar divisas (para importar) e substituir
importações (para não precisar mais importar). Isso, vale lembrar, sob a
pressão do bloqueio norte-americano. E também sob outra restrição fundamental:
a carência de algumas riquezas materiais, o que torna Cuba necessariamente
dependente do comércio internacional, salvo um cavalar avanço tecnológico, que
possibilitasse uma enorme substituição de matérias-primas.
Cuba entrou
então no “período especial”, marcado por imensas restrições materiais. Na
época, um dos caminhos adotados para enfrentar a situação foi o de abrir o país
ao turismo e às inversões estrangeiras. O resultado acabou sendo a criação de
uma dupla economia: a economia do peso cubana e a economia do dólar
estadounidense. Socialmente, isso significou cavar um fosso entre os que tinham
e os que não tinham moeda estrangeira.
Algumas das
decorrências disso, segundo palavras de Raúl Castro, irmão de Fidel e seu
sucessor, foram a corrupção, a prostituição, a mão de obra especializada
recebendo em pesos muito menos do que mão de obra não especializada que recebe
em dólar etc.
Durante esta
etapa, marcada pelo unilateralismo, neoliberalismo e colapso do socialismo
soviético, há um forte debate sobre como sobreviver, como seguir independente e
como prosseguir socialista.
Antes mesmo
do fim da URSS, Fidel tomou distância dos soviéticos, demarcou suas diferenças
com as reformas de Gorbachev e reforçou o componente nacional de sua ideologia.
Num discurso proferido em 1986, ele dirá que o marxismo-leninismo é
profundamente internacionalista e, por sua vez, profundamente patriótico.
Com todas as
dificuldades possíveis e inimagináveis, Cuba resistiu até que a situação na
América Latina e Caribe mudou, com a eleição de Chavez na Venezuela (1998),
Lula no Brasil (2002), Kirchner na Argentina (2003) e Tabaré Vazques no Uruguai
(2004).
Nesse
período, muita gente imaginava que o governo cubano, sob liderança de Fidel,
adotasse medidas denominadas de liberalizantes, ou seja, que estimulasse os
investimentos estrangeiros, as empresas privadas cubanas e o trabalho por conta
própria. Mas tais medidas só começaram a ser implementadas depois que, em 31 de
julho de 2006, por razões de saúde, Fidel Castro teve que se afastar do comando
do Estado e do Partido cubanos.
A linha
geral dessas medidas está descrita num documento chamado "Lineamientos
para la Política Económica y Social del Partido y la Revolución", um
conjunto de orientações aprovadas pelo Sexto Congresso do Partido Comunista de
Cuba, realizado em 2011.
Tendo como
objetivo construir um “socialismo próspero y sostenible”, os “Lineamientos”
reafirmam a propriedade social dos meios de produção fundamentais e falam em
“atualização do modelo”. Mas as ações práticas decorrentes não constituem uma
mera “atualização”, mas sim o abandono de um determinado “modelo” de construção
do socialismo, baseado na quase exclusiva propriedade estatal dos meios de
produção, em favor de outro caminho que, em nome de desenvolver as forças
produtivas indispensáveis ao socialismo, apela para diferentes formas de
propriedade privada e relações de mercado.
Este outro
caminho, na medida em que busca dar uso produtivo para a capacidade de trabalho
de amplos setores da população cubana, também implica em legalizar e em alguns
casos ampliar a desigualdade social.
As reformas
(termo mais adequado que “atualização do modelo”) geram polêmicas. A direita
não gosta da reafirmação do socialismo, nem da manutenção do Partido Comunista
no comando do Estado cubano: Raul Castro deixou claro que não foi eleito para
fazer Cuba voltar a ser capitalista.
Por outro
lado, setores de esquerda não apreciam as “concessões ao capitalismo”, além dos
que defendem que as reformas sejam acompanhadas de mais debate e democracia
popular, inclusive para tratar das citadas desigualdades.
Para além
destas polêmicas, há que se levar em conta a conjuntura internacional e
latinoamericana. A aprovação dos Lineamentos coincide com um período de
contraofensiva dos EUA e da oligarquia regional, contra os setores
progressistas e de esquerda. Em muitos países, a esquerda perdeu os governos. E
onde conseguiu manter as dificuldades aumentaram muito. De conjunto, o apoio a
Cuba ficou menor.
Um dos
marcos dessa contraofensiva foi o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff,
consumado no final de agosto de 2016. Poucos meses depois, em 25 de novembro de
2016, Fidel morreu aos 90 anos de idade.
Ao longo de
muitas décadas, Fidel combinou as características de chefe de partido, chefe de
Estado e líder de massas. Ele não foi um teórico ao estilo de Lênin e de Mao. Apesar
disso, é muito provável que seus textos, entrevistas e discursos continuem a
ser estudados por muito tempo. Isto porque a trajetória de Fidel é a expressão
individual e concentrada da história recente cubana. E Cuba foi o mais longe
que uma nação atrasada pode ir: transformou suas aspirações nacionais, sociais
e democráticas em força motriz de uma revolução anti-imperialista e
anti-capitalista. Da mesma forma, Fidel foi o mais longe que um democrata e
nacionalista radical poderia ir, nas condições do seu tempo –tornou-se um
comunista.
Um bom
exemplo destas múltiplas facetas de Fidel são suas declarações no dia 21 de
janeiro de 1988, por ocasião da visita à Cuba do Papa João Paulo II. Terminemos
pois este texto dando a palavra ao Comandante Fidel Castro.
[Vossa
Santidade] não encontrará aqui aqueles pacíficos e bondosos habitantes que a
povoavam quando os primeiros europeus chegaram a esta ilha. Os homens foram
exterminados quase todos pela exploração e pelo trabalho escravo...; as
mulheres, convertidas em objeto do prazer ou escravas domésticas. Houve também
os que morreram sob o fio de espadas homicidas, ou vítimas de enfermidades
desconhecidas importadas pelos conquistadores... No correr de séculos, mais de
um milhão de africanos cruelmente arrancados de suas distantes terras ocuparam
o lugar dos escravos índios já extintos... A conquista e colonização de todo o
hemisfério se estima que custou a vida de 70 milhões de índios e a escravização
de 12 milhões de africanos...
Cuba, em
condições extremadamente difíceis, chegou a construir uma nação. Lutou só com
insuperável heroísmo por sua independência. Sofreu por isso, faz exatamente 100
anos, um verdadeiro holocausto nos campos de concentração, onde morreu parte
considerável de sua população, fundamentalmente anciões e crianças...
Hoje de
novo se tenta o genocídio, pretendendo render através da fome, enfermidade e
asfixia econômica total a um povo que se nega a submeter-se aos ditames e ao
império da mais poderosa potência econômica, política e militar da história,
muito mais poderosa que a antiga Roma... Como aqueles cristãos atrozmente
caluniados, nós, tão caluniados como eles, preferimos mil vezes a morte que
renunciar a nossas convicções.
Excelente.
ResponderExcluirSó acho que a data mais relevante da relação Estado Igreja aconteceu com a visita do papa polonês pouco antes da ascensão de Chaves na Venezuela.
Lembre que esse mesmo líder dos católicos se alinhou com o imperialismo para mobilizar a classe operária contra a burocracia soviética.
Essa visita mobilizou milhões na Ilha com fortes críticas do próprio pontífice ao mundo de consumo capitalista.
Fidel dizia, repetindo Che, que a tarefa mais importante da Revolução é criar o novo homem, um outro ser humano não?
Guajira Guantanamera....