terça-feira, 7 de novembro de 2023

Robinson, o maniqueísta

Não recomendo a leitura de um texto intitulado O insuportável maniqueísmo da esquerda “anti-imperialista”.

Escrito por William I. Robinson, o texto critica uma esquerda auto-declarada “anti-imperialista” que condena a exploração e a repressão capitalista em todo o mundo quando praticada pelos EUA e outras potências ocidentais ou pelos governos que eles apoiam mas fecha os olhos ou até mesmo defende Estados repressivos, autoritários e ditatoriais simplesmente porque esses Estados enfrentam a hostilidade de Washington.

Quem teve a oportunidade de ver ou estudar o que ocorre com os Estados que enfrentam a hostilidade de Washington sabe que “simplesmente” é uma palavra que simplesmente não se aplica ao caso. Iraque, Libia, Síria, Afeganistão, Irã e Cuba que o digam.

E quem teve a oportunidade de acompanhar a retórica dos EUA contra seus inimigos sabe que ela, a retórica, é organizada em torno da luta contra o totalitarismo.

Levando isto em consideração, é um desafio e tanto construir uma posição crítica aos inimigos dos EUA, sem converter-se em aliado dos EUA. Robinson não teve êxito nesta tarefa.

Seu primeiro alvo é a China. Lá, segundo Robinson, teria sido “o desenvolvimento capitalista” quem “tirou milhões da pobreza extrema e trouxe uma rápida industrialização, progresso tecnológico e infraestrutura avançada”.

Segundo Robinson, esses progressos teriam ocorrido, também “nos países centrais da América do Norte e da Europa Ocidental”, entre o “final do século XIX até meados do século XX”. Confesso que não consigo entender esta periodização.

E menos ainda consigo entender uma comparação “plana”, sem mediações, entre o desenvolvimento nas metrópoles imperialistas e o desenvolvimento na periferia colonial ou semicolonial.

Robinson diz que a “esquerda nunca viu esse desenvolvimento capitalista no Ocidente como uma vitória para a classe trabalhadora nem perdeu de vista o vínculo entre esse desenvolvimento e a lei da acumulação combinada e desigual no sistema capitalista mundial”. Isto não é exatamente verdade.

O que se pode dizer é que um setor da esquerda sempre apontou a natureza contraditória do desenvolvimento capitalista. E, especialmente nos países submetidos a dominação colonial e exploração imperialista, muitos setores da esquerda se apoiavam nesta natureza contraditória, para defender que o desenvolvimento (mesmo capitalista) seria um avanço em relação ao passado feudal, colonial e semicolonial de vários países.

Robinson, crítico do maniqueísmo dos outros, não dá muita atenção para estas nuances, digamos assim. Para ele, a China “pode ser um modelo de desenvolvimento capitalista distinto da variante neoliberal ocidental, mas obedece ainda às leis da acumulação de capital”. Isto em parte é verdade, mas não é toda a verdade. Que há capitalismo na China, nem os comunistas chineses duvidam. Mas é difícil enquadrar como “capitalista” uma sociedade produto de uma revolução, onde a propriedade da terra não é privada, onde o setor financeiro está sob controle estatal, onde há um planejamento global extremamente exitoso, onde a burguesia foi primeiro expropriada e depois recriada de cima para baixo. Sem falar do sistema político.

Robinson tem razão quando aponta, com outras palavras, que o desenvolvimento chinês chegou ao ponto da exportação de capitais – exatamente aquilo que caracteriza o imperialismo, segundo Lenin e outros autores que o PC chinês tanto elogia. O curioso é que ele reclama do “surto de investimento direto” chinês, num tom muito parecido com as reclamações vindas de parte do establishment gringo.

Sem dúvida que o capital chinês, quando chega em qualquer lugar do mundo, seja no centro, seja na periferia, age como capital. Motivo pelo qual os governos progressistas e de esquerda, os partidos e movimentos democráticos e populares, precisam criticar e impor limites. Mas o que seria melhor? Os capitalistas de outras nacionalidades? Ou capitalista nenhum?

Robinson diz que “a questão não é que o capital chinês seja pior ou melhor do que o capital originário de outros países. O capital é capital independentemente da identidade nacional ou etnia dos seus portadores”.

Sua reclamação é a seguinte: quando um Estado capitalista ocidental e um Estado capitalista no Sul Global cooperam, isso é condenado como exploração pelo imperialismo e pelas classes dominantes locais. Já quando dois Estados capitalistas do Sul Global cooperam para os mesmos mega-projetos e exploração corporativa, isso é elogiado como “cooperação Sul-Sul” progressista e anti-imperialista e que “traz desenvolvimento”.

Certamente deve haver quem trate os chineses da mesma forma como outros tratavam, no passado, os soviéticos. Mas se os gatos são todos capitalistas, melhor caçar com os que são inimigos de nossos inimigos. Ou isso não faz diferença?

Robinson reconhece que “a ascensão pacífica do socialismo com características chinesas” oferece “uma alternativa ao imperialismo ocidental”.

Sua reclamação é que a ascensão dos chineses não “oferece uma alternativa à expropriação e exploração capitalista. O desenvolvimento capitalista não é um processo neutro em termos de classes. É por definição um projeto de classe da burguesia.”

A primeira parte do argumento é verdadeira, mas isto é óbvio, salvo para quem acredite que a libertação do capitalismo será obra e graça de alguma potência estrangeira.

A segunda parte do argumento não é verdadeira. O desenvolvimento capitalista em curso na China não é apenas um “projeto de classe da burguesia”. A velha burguesia chinesa foi expropriada e a nova está - pelo menos até agora - submetida a imperativos externos, vindos do Estado-Partido chinês.

Do que foi dito antes decorre o seguinte: os países periféricos, se quiserem se libertar do imperialismo e do capitalismo, terão que em alguma medida ampliar seu desenvolvimento e isso exigirá algum nível de capitalismo, em confronto com o imperialismo neoliberal comandado pelos Estados Unidos (e não pelos chineses, sempre é bom lembrar). Deste ponto de vista, a relação com os chineses é – nas condições dadas – progressiva, quando contrastada com a relação com os Estados Unidos.

Por outro lado, se o caminho chinês (desenvolvimento capitalista sob controle de um Estado socialista) for impugnado, então não existe caminho alternativo e a conclusão será “fukuyamica”.

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Sobre a Nicarágua, Robinson omite dois detalhes importantes: a disputa acerca do canal transoceânico e a ruptura da aliança entre a FSLN e uma parte da oligarquia local. Sem estes dois detalhes, não dá para entender o que está ocorrendo naquele país.

Mas Robinson não parece muito interessado nos detalhes do que está ocorrendo agora, pois na verdade ele impugna tudo o que ocorreu desde 2007, além de minimizar as pressões que os EUA fazem contra a Nicarágua (seria apenas “retórica de Washington”).

O que Robinson argumenta acerca da Nicarágua me lembra o que certas figuras da esquerda disseram sobre os governos Kadafi, Sadam Hussein e quetais. Aqueles governos eram pintados com as cores mais terríveis – e uma parte do que se dizia era mesmo verdade. E assim se criou o ambiente para a derrubada daqueles governos. E o que veio em seguida?

Robinson critica a “conceção de soberania” dos que ele chama de “esquerda antiimperialista”. Segundo Robinson, esta concepção não levaria em conta o “povo” ou “as classes trabalhadoras”, mas sim os “governantes dos países que defendem”. E agrega o seguinte: “As lutas anticoloniais e anti-imperialistas do século XX defendiam a soberania nacional – e não estatal – face à interferência das potências imperiais”.

Isso não é exatamente verdade. Basta pensar na relação entre a URSS e vários governos que estavam em choque com o imperialismo. Há situações em que a defesa da soberania nacional é inseparável da defesa de um governo que, do ponto de vista da luta social, não é dos mais defensáveis. É uma questão contraditória, que não admite solução simplista, mesmo que essa solução seja baseada na defesa do “internacionalismo proletário”.

Acontece que Robinson tem outro ponto de vista. Segundo ele, “nós, na esquerda, não temos escrúpulos em “violar a soberania nacional” para condenar os abusos dos direitos humanos cometidos por regimes pró-ocidentais e nem os devemos ter na defesa dos direitos humanos naqueles regimes não favorecidos por Washington”.

Notem o detalhe sutil: tem os regimes “pró-ocidentais” e tem os outros. Pois bem: a questão é que Washington manipula o tema dos “direitos humanos” para encobrir algumas de suas intervenções. A questão é: a falta de escrúpulos desta “esquerda pró-direitos humanos em toda parte” muitas vezes está à serviço – e algumas vezes bem paga – da legitimação destas intervenções.

Dizendo de outro jeito: calar diante de um abuso não é uma opção, nunca. Mas a ingenuidade – do tipo que condena como simétricas a violência do opressor e a violência do oprimido - tampouco é uma opção. Vide o que ocorreu em Gaza. Não foram poucos os integrantes da esquerda-sem-escrúpulos que não deram a mínima bola para diferenciar a violência praticada pelos colonizados. Com isso, ajudaram objetivamente a campanha de violência terrorista praticada pelos colonizadores.

O internacionalismo proletário proclamado por Robinson é, nesse sentido, uma declaração de princípios, não uma política.

A saber: “O internacionalismo proletário convoca as classes trabalhadoras e oprimidas de um país a estender a solidariedade não aos Estados mas às lutas das classes trabalhadoras e oprimidas de outros países. Os Estados merecem o apoio da esquerda na medida – e apenas na medida – em que avancem nas lutas emancipatórias das classes populares e trabalhadoras, que façam avançar ou sejam forçados a fazer avançar políticas que favoreçam estas classes”.

Acontece que na vida real, os Estados expressam as relações contraditórias existentes na sociedade. E, portanto, não existe um Estado que sempre faça avançar, que sempre favoreça, que sempre esteja do lado certo e nunca cometa nada errado, do ponto de vista das classes populares e trabalhadoras. Aliás, se fosse tão perfeito, Estado não seria.

O melhor exemplo de que a postura de Robinson é, na prática, uma linha auxiliar do discurso do departamento de Estado, é sua crítica aos BRICS.

Segundo ele, os “anti-imperialistas” aplaudem(link is external) os BRICS como um desafio do Sul ao capitalismo global, uma opção progressista ou até anti-imperialista para a humanidade. Só podem fazer tal afirmação reduzindo o capitalismo e o imperialismo à supremacia ocidental no sistema internacional.

O problema é que hoje, aliás desde o final do século 19, o imperialismo e o capitalismo global estão vinculados a que Robinson chama de “supremacia ocidental”. Frente a isso, os BRICS são sim um ponto de apoio importante.

Aplaudir iniciativas como a dos BRICS não implica em trocar uma perspectiva socialista por uma nacionalista. Mas não estimular iniciativas como as dos BRICS significa, na prática, dar uma mãozinha (esquerda) ao imperialismo.

Há riscos no antiimperialismo? Corre-se o risco de “obscurecer! as contradições internas de classe? Sim, certamente.

Mas muito mais perigoso é não perceber o pântano aonde nos conduz a postura de lamentar a perda de espaço por parte dos capitalistas metropolitanos. Exemplo deste pântano: “não está claro o que seria anti-imperialista, muito menos anti-capitalista, nos safaris corporativos africanos de Lula e, por extensão, na agenda de “cooperação Sul-Sul” que simboliza, ou por que a esquerda devesse aplaudir a expansão do capital baseado no Brasil para África, do capital baseado na China para a América Latina, do capital baseado na Rússia para a Ásia Central ou capital baseado na Índia para o Reino Unido”.

Digo que é um pântano, porque é óbvio que a expansão capitalista não é anticapitalista. E também está óbvio que a expansão de capitais vindos da periferia é expansão de capitais. Mas a pergunta é: para nós, é indiferente se o capital veio da gringolândia ou da China? Da Rússia ou da Alemanha?

Na cabeça de Robinson, o imperialismo parece uma abstração, um capital sem pátria a rondar o mundo. Mas, na vida real, o imperialismo tem Estados por detrás. Neste sentido, é importante Robinson reconhecer que os BRICS “efetivamente sinalizam uma mudança para um sistema interestatal mais multipolar e equilibrado dentro da ordem capitalista global”. Mas ele em seguida diz que “este sistema interestatal multipolar continua a ser parte de um mundo capitalista global brutal e explorador, no qual os capitalistas e os Estados do BRICS estão tão comprometidos com o controlo e a exploração das classes populares e trabalhadoras globais quanto as suas contrapartes do Norte”.

Ou seja: é importante, mas não faz diferença. Temo pelo passo seguinte, que se bobear será algo do tipo: melhor o mal conhecido (os EUA) do que o mal desconhecido (o perigoso Oriente).

Aliás, é nestas bases que Robinson apresenta o mundo que vem por aí. Cito: “Na China, o hiper-nacionalismo combina-se com a obediência confuciana à autoridade, a supremacia étnica Han e uma nova Longa Marcha para recuperar o estatuto de grande potência. Para Putin, são os dias de glória de um império “grão-russo” ancorado na Eurásia, politicamente sustentado pelo conservadorismo patriarcal extremo que Putin chama(link is external) de “valores espirituais e morais tradicionais” que incorporam a “essência espiritual da nação russa sobre o Ocidente decadente”.

Segundo ele, de um lado e de outro, teríamos movimentos simétricos: “Tornemos a América grande outra vez! Tornemos a China grande outra vez! Tornemos a Rússia grande outra vez!”

Mesmo reconhecendo que “os Estados Unidos podem ser o criminoso mais perigoso”, Robinson diz que afirmar que existe um “único inimigo”, os EUA e os seus aliados, seria a “história maniqueísta de “o Ocidente e o resto".

O problema é o seguinte: mesmo que não fossem o "único inimigo", os Estados Unidos e seus aliados são inimigos diferenciados. Desconhecer isso é, na prática, contribuir para desorganizar o bloco de forças que pode derrotar a hegemonia estadounidense. 

O curioso nessa história toda é que não é a esquerda antimperialista que é "maniqueista", mas sim Robinson. Pois no fundo ele não admite que do nosso lado da história possam estar não apenas os bons, mas também estejam muitos brutti, sporchi e cattivi.

  

Segue o texto comentado

O insuportável maniqueísmo da esquerda “anti-imperialista” | Esquerda

O insuportável maniqueísmo da esquerda “anti-imperialista”

William I. Robinson examina criticamente a “lógica retorcida” e a “política regressiva” de alguma esquerda dita “anti-imperialista” contemporânea que “se opõe à exploração capitalista pelo Ocidente, mas fecha os olhos à repressão dos Estados não ocidentais que se opõem a Washington”.

13 de Agosto, 2023 - 11:55h

 

O socialista alemão August Bebel comentou em dado momento que o anti-semitismo é o “socialismo dos tolos” porque os anti-semitas reconheciam a exploração capitalista apenas se o explorador fosse judeu mas que fechavam os olhos à exploração que emanava de outros quadrantes. Mais de um século depois, esse socialismo dos tolos foi ressuscitado por uma esquerda auto-declarada “anti-imperialista” que condena a exploração e a repressão capitalista em todo o mundo quando praticada pelos EUA e outras potências ocidentais ou pelos governos que eles apoiam mas fecha os olhos ou até mesmo defende Estados repressivos, autoritários e ditatoriais simplesmente porque esses Estados enfrentam a hostilidade de Washington. Discutirei os casos da China, da Nicarágua, dos BRICS e da multipolaridade, pois eles trazem à tona a lógica complicada e a política retrógrada desta esquerda “anti-imperialista”.

As políticas de exploração capitalista e do controlo social em todo o mundo são fundamentalmente moldadas pela contradição entre uma economia globalmente integrada e um sistema de dominação política baseado no Estado-nação. A globalização económica e a integração transnacional dos capitais fornecem um impulso centrípeto ao capitalismo global, enquanto a fragmentação política fornece um poderoso contra-impulso centrípeto que está a redundar numa escalada do conflito geopolítico. Está a aumentar rapidamente a brecha entre a unidade económica do capital global e a competição política entre grupos dominantes que têm de procurar legitimar-se e evitar que a ordem social interna de suas respetivas nações se fratures face à crise crescente do capitalismo global. Esta conjuntura global é o pano de fundo do “socialismo dos tolos” contemporâneo. Discutirei aqui os casos da China, da Nicarágua, sos BRICS e da multipolaridade, pois eles trazem à tona a lógica retorcida e a política retrógrada da esquerda “anti-imperialista”.

A China e o desenvolvimento capitalista

O capitalismo com características chinesas envolveu a ascensão de poderosos capitalistas transnacionais chineses fundidos com uma elite partidária do Estado dependente da reprodução do capital e do alto consumo das camadas médias, alimentado por uma onda devastadora de acumulação primitiva no campo e pela exploração(link is external) de centenas de milhões de trabalhadores chineses. A China é hoje um dos países mais desiguais do mundo(link is external). Greves e sindicatos independentes não são legais na China. O Partido Comunista Chinês há muito abandonou qualquer conversa sobre luta de classes ou poder dos trabalhadores. À medida que as lutas laborais continuam a escalar no país também aumenta a repressão estatal(link is external) contra elas. É verdade que o desenvolvimento capitalista tirou milhões da pobreza extrema e trouxe uma rápida industrialização, progresso tecnológico e infraestrutura avançada. É igualmente verdade que os países centrais da América do Norte e da Europa Ocidental experienciaram esses feitos durante os seus períodos de rápido desenvolvimento capitalista do final do século XIX até meados do século XX. A esquerda nunca viu esse desenvolvimento capitalista no Ocidente como uma vitória para a classe trabalhadora nem perdeu de vista o vínculo entre esse desenvolvimento e a lei da acumulação combinada e desigual no sistema capitalista mundial. A China está agora a “recuperar o atraso”.

O modelo chinês assenta num complexo de empresas estatais-privadas em que o capital privado responde(link is external) por três quintos da produção e quatro quintos do emprego urbano. A China não seguiu o caminho neoliberal para a integração capitalista transnacional. O Estado desempenha um papel chave no sistema financeiro, na regulação do capital privado, nos maciços gastos públicos, especialmente em infraestrutura, e no planeamento. Este pode ser um modelo de desenvolvimento capitalista distinto da variante neoliberal ocidental mas obedece ainda às leis da acumulação de capital. Após a abertura ao capitalismo global na década de 1980, a China tornou-se um mercado para corporações transnacionais e um vazadouro para o capital excedente acumulado capaz de tirar proveito de uma vasta oferta de mão-de-obra barata controlada por um Estado de vigilância repressivo e omnipresente. Mas, na viragem do século, estavam a aumentar as pressões para encontrar saídas no exterior para o excedente de capital chinês acumulado durante anos de desenvolvimento capitalista de estufa.

A manutenção deste desenvolvimento passou a depender da exportação de capitais para o estrangeiro. Nas duas primeiras décadas do século XXI, a China conduziu o mundo a um surto de investimento direto estrangeiro em países do Sul e do Norte Global, aprofundando a integração transnacional de capitais e acelerando a transformação capitalista nos países em que investe. Entre 1991 e 2003, o investimento direto estrangeiro da China aumentou(link is external) 10 vezes, e depois aumentou 13,7 vezes entre 2004 e 2013, de 45 mil milhões de dólares para 613 mil milhões de dólares. Em 2015, a China tinha-se tornado o terceiro maior(link is external) investidor estrangeiro do mundo. O seu Investimento Direto Exterior de saída começou a exceder o IDE de entrada e o país tornou-se um credor líquido. O que acontece quando este IDE chinês chega ao antigo Terceiro Mundo?

Deslocamento e Extração tornam-se “cooperação Sul-Sul”

As comunidades indígenas da província peruana de Apurímac travaram lutas sangrentas(link is external) nos últimos anos contra a mina de cobre a céu aberto Las Bambas, de propriedade e operação chinesa, uma das maiores do mundo, que deixou dezenas de mortos e feridos. De facto, o estado peruano vende legalmente serviços de policiamento às empresas mineiras, permitindo que a MMG da China compre força física da polícia para promover a extração de cobre por meios violentos. Enquanto este espaço extrativo sino-peruano e outros semelhantes são anunciados pelos “anti-imperialistas” como um modelo de cooperação Sul-Sul e modernização pós-ocidental, observadores atentos reconhecerão imediatamente a estrutura clássica da extração imperialista, segundo a qual o capital transnacional desloca comunidades e se apropria de recursos sob a proteção política e militar de Estados locais encarregados da repressão violenta da resistência à expulsão e exploração.

O padrão é o mesmo em toda a América Latina. Os bancos chineses concederam mais de 137 mil milhões de dólares em empréstimos para financiar projetos de infraestrutura, energia e mineração. Um estudo de uma coligação de grupos ambientais e de direitos humanos examinou 26 projetos na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru e Venezuela. Encontrou violações generalizadas dos direitos humanos, deslocamento de comunidades locais, devastação ambiental e conflitos violentos onde quer que ocorressem investimentos chineses em minas e mega-projetos. Os defensores das práticas de empréstimo da China afirmam que estes empréstimos são diferentes daqueles vindos do Ocidente porque não impõem condicionalidades da mesma forma que os credores ocidentais. Isso não é inteiramente verdade(link is external). Mas mesmo que fosse, que diferença isso faria para os trabalhadores, camponeses e comunidades indígenas que resistem à exploração, repressão e destruição ambiental associada ao capital chinês em colaboração com investidores transnacionais de outros lugares e dos Estados capitalistas locais?

A questão não é que o capital chinês seja pior ou melhor do que o capital originário de outros países. O capital é capital independentemente da identidade nacional ou etnia dos seus portadores. No entanto, quando um Estado capitalista ocidental e um Estado capitalista no Sul Global cooperam para impor mega-projetos às comunidades locais ou para facilitar a pilhagem corporativa transnacional na extração ou na indústria, isso é condenado como exploração pelo imperialismo e pelas classes dominantes locais. Quando dois Estados capitalistas do Sul Global cooperam para os mesmos mega-projetos e exploração corporativa, isso é elogiado como “cooperação Sul-Sul” progressista e anti-imperialista e que “traz desenvolvimento”.

Grupos como a “Tricontinental”, liderada por Vijay Prashad, elogiam(link is external) esse papel chinês no antigo Terceiro Mundo como “mutuamente benéfico”, “ajudando o desenvolvimento” e um sistema “ganha-ganha(link is external)” para a China e para os países em que as suas corporações investem. Devemos realmente acreditar que os investidores chineses estão a expandir as zonas de processamento de exportação e a realocar a produção industrial de trabalho intensivo da China para zonas de salários mais baixos na Etiópia, Vietname e outros lugares, não para obter lucro, mas para “ajudar esses países a desenvolverem-se”? Não é o mesmo discurso legitimador do Banco Mundial? Papagueando o discurso legitimador da elite partidária chinesa, a Tricontinental também insistiu(link is external) que “a ascensão pacífica do socialismo com características chinesas” oferece uma alternativa ao imperialismo ocidental. Bem, oferece. Mas não oferece uma alternativa à expropriação e exploração capitalista. O desenvolvimento capitalista não é um processo neutro em termos de classes. É por definição um projeto de classe da burguesia. No desenvolvimento capitalista, seja do Ocidente ou do Oriente, trata-se de expandir as fronteiras da acumulação.

O mau uso da soberania e da solidariedade

Esta esquerda “anti-imperialista” condena legitimamente a propaganda ocidental, mas parece incapaz de denunciar ou mesmo reconhecer a propaganda não-ocidental em todo o mundo, ou pior ainda, repetem essa mesma propaganda. A Nicarágua fornece-nos um caso (link is external)de manual(link is external). O regime de Ortega provou ser hábil em usar uma linguagem que soa radical e uma retórica anti-imperialista para obter um coro automático de apoio entre a esquerda internacional. Ortega voltou ao poder em 2007 através de um pacto com a oligarquia tradicional de direita do país, os ex-membros da contra-revolução armada, a hierarquia conservadora da Igreja Católica e as seitas evangélicas. Prometendo respeito absoluto pela propriedade privada e liberdade irrestrita para o capital, passou a co-governar até 2018 com a classe capitalista, concedendo ao capital transnacional dez anos de isenção de impostos, desregulamentação, liberdade irrestrita para repatriar lucros e repressão dos trabalhadores grevista. Noventa e seis por cento das propriedades do país permanecem nas mãos do setor privado. A ditadura reprimiu todos os dissidentes e fechou mais de 3.500 organizações da sociedade civil desde 2018 – isso num país de apenas seis milhões de habitantes – porque considera qualquer vida cívica fora de si uma ameaça.

Muitos progressistas podem estar verdadeiramente confusos devido ao apoio bem merecido que a revolução sandinista de 1979-1990 congregou em todo o mundo e à história da intervenção brutal dos EUA contra o país. Essa revolução morreu em 1990 e o que chegou ao poder em 2007 com Ortega foi tudo menos uma revolução. No entanto, a esquerda “anti-imperialista” optou por abraçar calorosamente a ditadura, justificada pelas alegadas tentativas dos EUA de desestabilizar o regime e em nome da “soberania”. Mas as provas não apoiam a afirmação feita por estes detratores de que os Estados Unidos estão a promover uma “mudança de regime contra-revolucionária” contra Ortega, apesar da retórica de Washington. A Nicarágua não está sujeita a sanções comerciais ou de investimento. Os Estados Unidos são o principal parceiro comercial do país – o comércio bilateral(link is external) ultrapassou os 8,3 mil milhões de dólares em 2022 – e o investimento das empresas transnacionais continua a afluir, tal como os empréstimos multilaterais ao Banco Central. Não há intervenção militar ou paramilitar dos EUA. No entanto, nenhum destes factos impediu a organização norte-americana Code Pink, entre outras, de alegar(link is external) que o governo de Ortega é um “governo socialista” sob pressão de “sanções devastadoras” e que enfrenta “violentas tentativas de golpe de Estado”.

Washington realiza campanhas de desestabilização de larga escala, não contra Ortega, mas contra o Irão, a Venezuela e outros países. Tais crimes devem ser veementemente condenados por qualquer pessoa de esquerda digna desse nome. Mas isso não exime a esquerda do compromisso com o internacionalismo e a solidariedade com os oprimidos só porque resistimos às pretensões imperiais dos EUA em todo o mundo. A esquerda “anti-imperialista”, porém, dir-vos-á o contrário. Prestem atenção ao alerta da jornalista Caitlin Johnstone(link is external): se morares num país ocidental “simplesmente não é possível dares sua voz à causa dos manifestantes em nações visadas pelo império sem facilitar as campanhas de propaganda do império sobre esses protestos. Ou tens uma relação responsável com essa realidade ou uma relação irresponsável”. Tão simples quanto isto. Proletários de apenas alguns países, uni-vos!

Os “anti-imperialistas” voltam-se para uma conceção de soberania, não do povo ou das classes trabalhadoras, mas dos governantes dos países que defendem. As lutas anticoloniais e anti-imperialistas do século XX defendiam a soberania nacional – e não estatal – face à interferência das potências imperiais. Os Estados capitalistas usam essa reivindicação de soberania como um “direito” de explorar e oprimir dentro das fronteiras nacionais livres de interferência externa. Nós, na esquerda, não temos escrúpulos em “violar a soberania nacional” para condenar os abusos dos direitos humanos cometidos por regimes pró-ocidentais e nem os devemos ter na defesa dos direitos humanos naqueles regimes não favorecidos por Washington.

O internacionalismo proletário convoca as classes trabalhadoras e oprimidas de um país a estender a solidariedade não aos Estados mas às lutas das classes trabalhadoras e oprimidas de outros países. Os Estados merecem o apoio da esquerda na medida – e apenas na medida – em que avancem nas lutas emancipatórias das classes populares e trabalhadoras, que façam avançar ou sejam forçados a fazer avançar políticas que favoreçam estas classes. Os “anti-imperialistas” confundem Estado com nação, país e povo, geralmente sem qualquer conceção teórica destas categorias e preferindo uma orientação populista a uma orientação política de classe. Nós, da esquerda, condenámos a invasão e ocupação do Iraque pelos Estados Unidos no início deste século. Não o fizemos porque apoiavamos o regime de Saddam Hussein – só um tolo o poderia apoiar – mas porque nos solidarizámos com o povo iraquiano e porque todo o projeto imperial para o Médio Oriente equivalia a um ataque aos pobres e oprimidos de todo o mundo.

BRICS: Substituir a Contradição Capital-Trabalho por uma Contradição Norte-Sul

Os “anti-imperialistas” aplaudem(link is external) os BRICS como um desafio do Sul ao capitalismo global, uma opção progressista ou até anti-imperialista para a humanidade. Só podem fazer tal afirmação reduzindo o capitalismo e o imperialismo à supremacia ocidental no sistema internacional. No auge do colonialismo e no período subsequente as classes dominantes locais eram, na melhor das hipóteses, anti-imperialistas, mas não anti-capitalistas. O seu nacionalismo obliterou a classe ao proclamar uma identidade de interesses entre os cidadãos de um determinado país. Este nacionalismo tinha uma vantagem progressista e às vezes até radical, na medida em que todos os membros do país em questão eram oprimidos pela dominação colonial, pelos sistemas de castas que ela impunha e pela supressão do capital indígena. Os “anti-imperialistas” de hoje entusiasmam-se com os BRICS como um renascido “projeto do Terceiro Mundo”, nas palavras de Prashad, uma nostalgia antiquada por aquele momento anticolonial de meados do século XX que obscurece as contradições internas de classe junto com a rede de relações de classe transnacionais nas quais estão enredados. Duas referências serão suficientes para ilustrar como tal pensamento está desfasado da realidade do século XXI.

Há vários anos atrás, tive a oportunidade de dar uma palestra em Manila para um grupo de ativistas revolucionários filipinos. Uma mulher presente, originária da Índia, opôs-se à minha análise da ascensão de uma classe capitalista transnacional que incorpora contingentes poderosos do antigo Terceiro Mundo. Ela disse-se que na Índia “lutamos contra o imperialismo e pela libertação nacional”. Eu perguntei-lhe o que ela queria dizer com isso. Os capitalistas do centro estavam a explorar os trabalhadores indianos e a transferir o excedente de volta para os países imperialistas em linha com o que Lenine analisara, respondeu-me. Foi por pura coincidência que na mesma semana de minha palestra, o conglomerado corporativo global com sede na Índia, Tata Group, que opera em mais de 100 países em seis continentes, tinha adquirido uma série de empresas icónicas do seu ex-mestre colonial britânico, entre elas a Land Rover, Jaguar, Tetley Tea, British Steel e os supermercados Tesco, tornando a Tata o maior empregador individual dentro do Reino Unido. Assim, os capitalistas baseados na Índia tinham-se tornado o maior explorador individual dos trabalhadores britânicos. De acordo com a lógica ultrapassada dela, o Reino Unido seria agora vítima do imperialismo indiano!

Logo após a sua primeira tomada de posse, em 2003, e novamente em 2010, durante o seu segundo mandato presidencial, o presidente brasileiro Lula encheu um avião do governo com executivos de empresas brasileiras e partiu para a África. A comitiva presidencial-empresarial foi fazer lóbi em Moçambique e noutros países africanos para se abrirem ao investimento nos abundantes recursos minerais do continente pela mineradora transnacional sediada no Brasil Vale, que também opera nos seis continentes, sob a retórica da “solidariedade Sul-Sul .” Não está claro o que seria anti-imperialista, muito menos anti-capitalista, nos safaris corporativos africanos de Lula e, por extensão, na agenda de “cooperação Sul-Sul” que simboliza, ou por que a esquerda devesse aplaudir a expansão do capital baseado no Brasil para África, do capital baseado na China para a América Latina, do capital baseado na Rússia para a Ásia Central ou capital baseado na Índia para o Reino Unido.

Podemos apoiar as políticas (moderadamente) redistributivas domésticas e a política externa dinâmica de governos como o de Lula. Nem todos os Estados capitalistas são iguais e importa muito quem está no governo. Mas um governo “progressista” não é um governo socialista e nem necessariamente um governo anti-imperialista. Para o míope, a expansão externa do capital chinês, indiano ou brasileiro é vista como uma espécie de libertação do imperialismo. O que fazer com a afirmação bizarra(link is external) do Geopolitical Economy Research Group, com sede no Canadá, e do International Manifesto Group que ele patrocina, para quem o compromisso ideológico supera os factos, de que os BRICS estão “entre os sucessos mais conhecidos” nos esforços para promover “desenvolvimento nacional autónomo e igualitário e industrialização para quebrar os grilhões imperialistas”?

Se os BRICS não representam uma alternativa ao capitalismo global e à dominação do capital transnacional, eles efetivamente sinalizam uma mudança para um sistema interestatal mais multipolar e equilibrado dentro da ordem capitalista global. Mas este sistema interestatal multipolar continua a ser parte de um mundo capitalista global brutal e explorador, no qual os capitalistas e os Estados do BRICS estão tão comprometidos com o controlo e a exploração das classes populares e trabalhadoras globais quanto as suas contrapartes do Norte. À medida que os membros dos BRICS se expandem, novos candidatos em 2023 para ingressar no bloco incluem estados magnificamente “autónomos e igualitários” que lutam contra os “grilhões imperialistas” como a Arábia Saudita, o Egito, o Bahrein, o Afeganistão, a Nigéria e o Cazaquistão.

Multipolaridade: o Novo Albatroz

A invasão russa da Ucrânia em 2022 e a resposta política, militar e económica radical do Ocidente a ela podem sinalizar o golpe de misericórdia de uma decadente ordem interestatal pós-Segunda Guerra Mundial. Um capitalismo global cada vez mais integrado é inconsistente com uma ordem política internacional e uma arquitetura financeira controladas pelos Estados Unidos e pelo Ocidente e com uma economia global exclusivamente denominada em dólares. Estamos no início de uma reconfiguração radical dos alinhamentos geopolíticos globais seguindo o ritmo da crescente turbulência económica e do caos político. No entanto, a crise de hegemonia na ordem internacional ocorre dentro dessa economia global única e integrada. O emergente pluralismo capitalista global pode oferecer maior espaço de manobra para lutas populares em todo o mundo mas um mundo politicamente multipolar não significa que os polos emergentes do capitalismo global sejam menos exploradores ou opressivos do que os centros estabelecidos.

Pelo contrário, o Ocidente estabelecido e os centros emergentes neste mundo policêntrico estão a convergir à volta de tropos notavelmente semelhantes da “Grande Potência”, especialmente o nacionalismo chauvinista – muitas vezes étnico – e da nostalgia de uma “civilização gloriosa” mitificada que agora deve ser recuperada. As narrativas spenglerianas diferem de um país para outro de acordo com as histórias e culturas particulares. Na China, o hiper-nacionalismo combina-se com a obediência confuciana à autoridade, a supremacia étnica Han e uma nova Longa Marcha para recuperar o estatuto de grande potência. Para Putin, são os dias de glória de um império “grão-russo” ancorado na Eurásia, politicamente sustentado pelo conservadorismo patriarcal extremo que Putin chama(link is external) de “valores espirituais e morais tradicionais” que incorporam a “essência espiritual da nação russa sobre o Ocidente decadente”. Nos EUA, é a bravata hiper-imperial de uma Pax Americana em declínio, legitimada pela doutrina do “excecionalismo dos EUA” e a bombástica “democracia e liberdade” nas margens da qual sempre esteve a supremacia branca, agora encarnada num movimento fascista em ascensão como “teoria da substituição”. A isso poderíamos acrescentar o pan-turquismo, o nacionalismo hindu e outras ideologias quase-fascistas neste mundo policêntrico em ascensão. Tornemos a América grande outra vez! Tornemos a China grande outra vez! Tornemos a Rússia grande outra vez!

Os Estados Unidos podem ser o cão de fila e o criminoso mais perigoso entre os cartéis concorrentes de Estados criminosos. Temos de condenar Washington por instigar uma nova Guerra Fria e por incitar a Rússia, através da expansão agressiva da NATO, a invadir a Ucrânia. No entanto, a esquerda “anti-imperialista” insiste que existe um único inimigo, os EUA e os seus aliados. Esta é a história maniqueísta de “o Ocidente e o resto". Esta narrativa metafísica da Guerra das Estrelas sobre a luta virtuosa contra o singular Império do Mal acaba por legitimar a invasão russa da Ucrânia. E, tal como na Guerra das Estrelas, torna-se difícil distinguir a tagarelice fantasiosa de um mundo de fantasia da tagarelice da esquerda “anti-imperialista”.


William I. Robinson é professor de Sociologia, Estudos Globais e Estudos Latino Americanos na Universidade da Califórnia. Entre os seus livros estão: Into the Tempest: Essays on the New Global Capitalism (2018); The Global Police State (2020) eGlobal Civil War: Capitalism Post-Pandemic (2022).

Texto publicado no Philosophical Salon(link is external) e republicado na página da Anticapitalist Resistance(link is external). Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

 

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