(contribuição ao primeiro simpósio de pós-graduandes em economia política mundial da UFABC. Valter Pomar, 8 de novembro de 2023)
1/
O “campo da economia política mundial” é profundamente político. Os temas que debatemos e as posições que expressamos são parte integrante de um conflito em grande escala, sobre os destinos da humanidade, do nosso continente, da nossa sociedade, dos diferentes setores sociais e políticos que a compõem. O desfecho deste conflito não está definido. Depende do que está ocorrendo e do que ainda vai ocorrer no Brasil, na região e no mundo, nos próximos anos e décadas. Depende do desfecho da luta que se trava entre diferentes forças, a começar pelas classes e Estados, em todos os terrenos, inclusive no âmbito do chamado “pensamento acadêmico”. Por tudo que foi dito, o “campo” da economia política mundial é espaço de conflito entre diferentes interpretações e propostas, que se vinculam, de maneira explícita ou não, com as diferentes forças em luta. Enfim, é inescapável a dimensão política da economia política. Esta dimensão política inclui a ação e a análise, entre muitas forças e temas, do imperialismo, de sua relação com os países das periferias do mundo, dasatitudes desses países. Inclui a dimensão explicitamente militar, mas também as guerras econômicas, políticas e ideológicas. Inclui as articulações e movimentos políticos sociais de dimensão internacional. Inclui a análise comparada das transições hegemônicas. Inclui o papel e o funcionamento das diversas instituições internacionais etc. A rigor, nada do que é político pode nos ser estranho.
2/
Ademais, mesmo que não se queira, é inevitável tomar partido. Não apenas ou principalmente no sentido de fazer “escolhas metodológicas” por esta ou aquela abordagem teórica. É inevitável tomar partido no sentido amplo da palavra. Para quem pretenda expressar o ponto de vista dos setores conscientes da classe trabalhadora – portanto latino-americanista, anticapitalista, anti-imperialista, antipatriarcal, antiracista, antisistêmico, revolucionário, comunista - uma das questões fundamentais da “economia política mundial” consiste em identificar as tendências de desenvolvimento do capitalismo mundial, entendendo o capitalismo não como “sistema econômico”, mas como modo de produção e reprodução que atravessa e determina, senão todas, certamente as principais dinâmicas da vida e da morte em nosso planeta. Identificar as tendências do desenvolvimento exige uma análise multidimensional, histórica, social, econômica e política.
3/
Identificar as tendências implica ir além da descrição do estado da arte, implica a identificação dos desdobramentos possíveis. Por exemplo: a destruição generalizada da civilização humana, o permanente estado de exceção, a “blocalização” substituindo a globalização, bem como as perspectivas que falam de um hipotético welfare state planetário e das possibilidades de um novo ciclo de transições socialistas.
4/
Parte destes desdobramentos possíveis depende do conflito entre Estados Unidos e China. Este conflito é multidimensional: Sul versus Norte, Oriente versus Ocidente, capitalismo de Estado versus capitalismo neoliberal, socialismo versus capitalismo. Não está dado como evoluirá este conflito, quem, quando e como vencerá. Acompanhar o conflito EUA versus China é, de toda forma, outra questão fundamental da economia política mundial.
5/
Caso o conflito termine com a vitória dos Estados Unidos, a tendência é se aprofundar a subordinação primário-exportadora do conjunto da América Latina e Caribe. Nesse sentido, interessa ao Brasil que os EUA sejam derrotados. E, mais do que isso, que sejam derrotados de forma tal que se impeça que eles concentrem, por sobre o subcontinente, as forças que estão hoje espalhadas pelo mundo.
6/
Caso o conflito termine com a vitória da China, não está dado quais das suas dimensões – Sul, Oriente, capitalismo de Estado, socialismo - predominará. Por isso mesmo, a vitória da China também pode resultar no aprofundamento da subordinação primário-exportadora da América Latina e Caribe.
7/
Superar nossa condição primário-exportadora depende essencialmente da luta entre as diferentes forças sociais e políticas no interior de cada país da região, bem como da relação que se estabeleça entre os integrantes da região e dela com o mundo. Embora nenhum dos países tenha condição de, sozinho, mudar seu lugar no mundo, alguns têm muito mais condições que outros. É o caso do Brasil.
8/
O Brasil vive, neste ano de 2023, dilemas similares aos dos anos vinte do século vinte. Mas a atual classe dominante brasileira não possui, no seu interior, uma fração semelhante àquela dirigida por Getúlio Vargas. Por isso, não haverá soberania nacional, bem-estar social, liberdades democráticas e desenvolvimento enquanto a classe trabalhadora brasileira não controlar as principais alavancas do poder (político, cultural, econômico, militar) e usar estas alavancas para mudar estruturalmente nossa sociedade.
9/
Nas condições históricas atuais, transformar estruturalmente o Brasil passa pela constituição de uma nova América Latina e Caribe, seja para nos defender de agressões, seja para aproveitar as potencialidades. Deste ponto de vista, é necessário dar continuidade à elaboração de uma “economia política mundial latino-americana e caribenha”.
10/
Também nas condições históricas atuais, transformar estruturalmente o Brasil e a região passa por derrotar a classe dominante brasileira e ir muito além dos experimentos desenvolvimentistas de tipo capitalista. Deste ponto de vista, é necessário dar continuidade à elaboração de uma “economia política da transição socialista na América Latina e Caribe”.
11/
O capitalismo é uma realidade. O comunismo é um projeto. O socialismo é transição, em parte realidade, em parte projeto. Desta “dupla face” decorrem problemas metodológicos importantes, no estudo e no debate da economia política da transição socialista. Problemas complicados pela natureza assumidamente “chinesa” e de “mercado” da principal experiência socialista contemporânea, a chinesa.
12/
Hipoteticamente, a transição socialista ao comunismo envolve três eixos combinados: a socialização da produção, a socialização do poder e a neutralização do capitalismo mundial. Estes três eixos se condicionam mutuamente. Enquanto existir hegemonia capitalista em escala mundial, isso imporá limites à transição socialista realmente existente. Foi assim com a URSS, é assim com Cuba e China. Aceitas estas premissas, não é possível impugnar o socialismo chinês por nele existir capitalismo. Assim como tampouco é possível atribuir ao socialismo chinês tarefas e êxitos que dependem da ocorrência de um novo ciclo de tentativas de construção do socialismo, um novo ciclo que tenha uma potência capaz de abalar a hegemonia capitalista mundial. Da URSS não veio nem viria, da China não virá, aquilo que só novas grandes revoluções poderão fazer.
13/
Em resumo: do ponto de vista explicado no início, decorrem quatro ênfases: a política da economia política, os futuros possíveis do capitalismo, a dimensão regional e a transição socialista. Em nenhuma destas questões se parte do zero. O conhecimento acumulado é matéria prima imprescindível. Precisamos reconhecer que nossa cultura coletiva é ainda muito pobre. Precisamos ampliar o conhecimento acerca do que se produziu e se produz a respeito, especialmente fora das “metrópoles ocidentais”. Mas a referência e o diálogo com o conhecimento acumulado não podem ocupar o lugar principal em nossas pesquisas, dissertações e teses. A prioridade deve ser a análise concreta da realidade concreta, o debate sobre as possibilidades futuras. E para isso se faz imprescindível mais criatividade política e originalidade teórica. Partir do futuro, não do passado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário