quinta-feira, 29 de maio de 2014

Um partido militante

Texto escrito para o caderno de debates do II Congresso do PT, realizado em novembro de 1999.

As elites dominam este país há quase 500 anos. Há quase 500 anos, os de baixo (escravos, camponeses, trabalhadores) lutam contra a opressão e a dominação. Perdemos a maior parte das batalhas. Mas conquistamos este pouco de democracia e de políticas sociais que o neoliberalismo de FHC quer nos arrancar.
Nos anos 80, a luta dos de baixo adquiriu maior intensidade. Derrotamos a ditadura, criamos a CUT e o MST, refundamos a UNE, reconquistamos a liberdade de organização partidária, obtivemos importantes vitórias eleitorais.
Como resultado disto tudo, em 1989, pela primeira vez na história do Brasil, as esquerdas disputaram para valer e quase ganharam a presidência da República. Não mais votar num candidato das elites: os trabalhadores puderam votar num trabalhador, num socialista. Em 1994 e 1998, ainda que de maneira diferente, a polarização prosseguiu: de um lado, os conservadores; de outro, o campo democrático-popular e socialista.
O Partido dos Trabalhadores é criatura e criador desta polarização. Criatura, na medida em que ele foi o desaguadouro deste acúmulo de forças multifacetado, que ocorreu nos anos 80 e 90. Criador, porque foi sua estratégia de independência de classe, de recusa à conciliação das elites, de repúdio a qualquer aliança estratégica com setores da burguesia, que permitiu que aquele acúmulo de forças resultasse na polarização entre blocos históricos.
Hoje, quando realizamos o II Congresso do PT, aquela polarização corre risco. Setores importantes da burguesia disputam conosco o apoio popular. E setores importantes do PT querem fazer uma aliança estratégica com uma fração da burguesia brasileira, repetindo assim, nos anos 90, a fracassada política “nacional-democrática” do velho Partido Comunista.
Não temos dúvida: se o PT abandonar sua estratégia socialista, ele não sobreviverá. O Partido dos Trabalhadores é um instrumento daqueles que lutam pelo socialismo. Não é o único instrumento dos trabalhadores, que dispõem de uma rede de organizações culturais, estudantis, populares e sindicais. Nem é o único a lutar pelo socialismo: outras organizações, inclusive outros partidos, afirmam o socialismo como seu objetivo estratégico.
O Partido é um instrumento cuja tarefa específica é a luta pelo poder, a conquista do poder. Existem, ou deveriam existir, três diferenças básicas entre o PT e os demais partidos: 1)as táticas e a estratégia que desenvolvemos para conquistar o poder; 2)a maneira como iremos proceder uma vez no poder; 3)os objetivos que pretendemos alcançar através do poder.
Hoje existem enormes divergências no PT sobre sua estrutura, seu funcionamento. Estas divergências derivam principalmente das concepções diferentes que existem entre nós, sobre o que é o poder e qual a estratégia para conquistá-lo.
Um setor do PT confunde poder e governo, e acha que o poder pode ser conquistado através de eleições. A partir deste pressuposto, este setor decidiu transformar o PT num partido eleitoral: um partido cujo objetivo central é disputar e vencer eleições.
Devido à natureza do sistema eleitoral brasileiro, um partido eleitoral exige financiamento de campanha, presença permanente na mídia, figuras públicas capazes de dialogar com a “opinião pública”, lideranças autonomizadas em relação aos partidos. Exige, finalmente, cabos eleitorais.
Num partido eleitoral, o centro de poder está nos mandatos, nos governos. O programa se reduz às políticas públicas. Num partido eleitoral, não existe democracia interna: manda quem tem voto fora dele. Suas decisões são tomadas por conselhos de notáveis, de portadores de mandato.
Outro setor do PT não confunde poder e governo, e acha que a conquista do poder inclui mas não se limita a disputa eleitoral. E acredita que, para construir o socialismo, é preciso outro tipo de Estado, diferente deste que aí está. A partir destes pressupostos estratégicos, este setor trabalha para que o PT seja um partido militante.
Partido militante é aquele capaz de atuar e acumular força em todas as dimensões da luta de classes (sindical, popular, estudantil, cultural, econômica, política). Partido militante é aquele capaz de controlar seus dirigentes. Capaz de disputar eleições e controlar seus eleitos. Capaz de conquistar o poder por outros meios que não apenas o eleitoral.
Na história do movimento socialista, existiram partidos militantes de massa e partidos militantes só de lideranças. Nos anos 80, o PT foi um partido militante de massas. Fazia política para milhões; e fazia esta política de massas através de milhares de militantes e simpatizantes. O 5º Encontro Nacional do PT (1987) decidiu que o PT devia ser um partido de massas e de quadros (ou seja, um partido militante de massas).
Desde o início dos anos 90, a ala moderada do PT vem tentando alterar nossa concepção de partido. Começaram atacando o caráter dirigente do Partido, propondo o partido de “interlocução”. Simultaneamente, vem tentando transformar o PT num partido eleitoral de massas.
Isso se traduz na perda de importância dos militantes, no enfraquecimento das instâncias e na autonomização dos dirigentes. É fundamentalmente por isso que a formação política perde importância; que o presidente do PT é eleito “em separado”; que a presidência tenta se transformar numa instância acima da direção; que não conseguimos construir uma imprensa partidária etc.
Surge, também, a idéia de que os “com voto” devem mandar no partido. Essa teoria tem uma aparência simpática e democrática. Mas cabe perguntar, em primeiro lugar, quem conquista os votos dos que têm votos...
Em 1998, por exemplo, os deputados federais mais votados em São Paulo foram beneficiados por uma decisão do Partido, que os transformou em “puxadores de voto”, com muito tempo na programa eleitoral gratuito. Utilizar a votação recebida, por esforço de todos, em benefício de uma parte do PT, é enterrar qualquer chance de construirmos campanhas coletivas.
Em segundo lugar, cabe lembrar que os eleitores mandataram nossos parlamentares ou executivos para exercer funções públicas, não para ganhar espaço no interior do PT.
Vale lembrar, ainda, que parte dos nossos eleitores não são petistas. Qualquer privilégio aos “com voto” do PT, é equivalente a dizer que não-petistas passam a ter influência sobre as decisões do nosso partido, igual a dos petistas.
O Partido pode e deve ser permeável a influência política do conjunto da sociedade, em particular das classes trabalhadoras. Mas esta influência não pode nem deve ser igual a de nossos militantes, pelo simples motivo de que o Partido é uma parte da sociedade.
Um executivo ou parlamentar ganha, automaticamente, certa proeminência na vida partidária, certa autoridade política. O erro está em transformar essa autoridade política num atributo estatutário, num poder a mais, como acontece nos partidos em que os parlamentares têm voto qualificado. O fato dos líderes de bancada terem direito a voto em nossas executivas partidárias, por exemplo, é um exemplo desta lógica eleitoral no funcionamento interno do partido.
Um partido socialista sempre terá dificuldades em ser totalmente eleitoral. A “mística” da militância é um elemento importante na ideologia do movimento socialista. Mesmo que seja por hipocrisia, as lideranças são obrigadas a fazer juras de amor à militância.
Como manter algum laço com a tradição militante, ao mesmo tempo em que se impede a militância de mandar no Partido? A solução tem sido a filiação em massa de pessoas com pouca ou nenhuma tradição partidária, cujos vínculos são com um mandato, não com o PT.
Daí vermos, em alguns encontros partidários, o espetáculo vexaminoso de filiados serem transportados para votar, terem suas contribuições pagas em massa por “caciques” políticos, depositarem seu voto na urna e irem se embora, sem participar de nenhum debate político.
Os que sufocam a militância com o peso deste tipo de filiados argumentam que isso é coerente com o objetivo de construirmos um partido de massas. O que eles não dizem é que estas massas são de manobra. O partido de massas que eles querem construir é eleitoral, o nosso é militante.
Esperamos que o II Congresso derrote o partido eleitoral de massas e afirme o PT militante de massas. Um partido dirigente na sociedade, que orienta a ação de seus militantes. Um partido que faz política todo dia, presente no cotidiano do povo. Um partido de instâncias orgânicas, espaço de encontro, discussão e decisão.
Um partido com uma imprensa que forneça informação e orientação para os seus militantes, simpatizantes e para o conjunto do povo. Um partido que forma seus integrantes, para que todo trabalhador possa um dia dirigir o Estado brasileiro. Um partido democrático, não um partido de notáveis.
Na versão final da tese que apresentaremos ao II Congresso, defenderemos que o PT adote um conjunto de medidas organizativas compatíveis com esta concepção, tais como:
1.Jornal de massas, dirigido aos filiados e simpatizantes do PT, aos militantes dos movimentos sociais e aos companheiros dos partidos aliados.
2.Plano nacional de formação política, com atividades dirigidas aos filiados, aos dirigentes intermediários e aos dirigentes nacionais.
3.Campanhas anuais de filiação, para incorporar ao PT o que acumulamos em nossa atividade, sempre acompanhadas de processos formativos que impeçam as filiações “patrocinadas”.
4.Campanha de nucleação, para que os militantes e filiados de base tenham espaços permanentes de debate e deliberação, de encontro e de organização de sua atuação na sociedade.
5.Congressos bi-anuais, com eleição de delegados sempre após o debate.
6.Realização permanente de plebiscitos, prévias e referendos, para que o conjunto de filiados possa orientar permanentemente a direção partidária.
7.Controle do partido sobre os mandatos executivos e legislativos.
8.Elaboração e aplicação do código de ética partidário.

9.Política de finanças baseada na arrecadação militante. Não aceitar enhum centavo das grandes empresas.

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