sexta-feira, 2 de abril de 2021

Sobre algumas mentiras ditas nos últimos dias

(Abaixo segue a transcrição parcial da exposição feita no programa ANTIVÍRUS de 1 de abril de 2021.)

Segundo o vice-presidente da República, o General Hamilton Mourão, “há 57 anos a população brasileira, com apoio das Forças Armadas, impediu que o Movimento Comunista Internacional fincasse suas tenazes no Brasil. Força e honra”.

A frase que eu li entre aspas está num tuíte divulgado na conta oficial do vice-presidente.

Será verdade?

Não, não é e nunca foi verdade.

O que ocorreu em 1964 foi um golpe de Estado contra um governo legítimo, encabeçado por João Goulart.

E todas as informações de que dispomos confirmam que Goulart tinha apoio da maioria da população.

Aliás, um dos motivos do golpe foi impedir que em 1965 Goulart elegesse seu sucessor: Leonel Brizola.

Goulart era comunista?

Brizola era comunista?

De nenhuma maneira.

Ambos eram do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB criado por Getúlio Vargas, o mesmo que maltratou pesadamente os comunistas durante sua ditadura.

O golpe não foi contra o comunismo.

O golpe foi dado contra um governo que cometeu dois pecados mortais: 1/queria fazer reformas de base e 2/mobilizava em seu apoio as classes trabalhadoras.

Que o general Hamilton Mourão considere que isso é comunismo, é direito dele.

Mas que ele considere isso nos faz pensar no seguinte: se a elite brasileira acha que melhorar a vida do povo é comunismo, se a elite brasileira acha que ampliar as liberdades democráticas é comunismo, então não adianta nada moderar nosso programa na expectativa de que, se formos moderados, eles também serão moderados, pois eles são tão reacionários que vão reagir da mesma maneira, ou de maneira muito parecida, seja contra uma reforma, seja contra uma revolução.

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O general Walter Braga Neto - aquele que comandou a intervenção no Rio de Janeiro quanto Marielle foi assassinada - divulgou ordem do dia "alusiva" ao 31 de março de 1964 em que afirma que a Lei da Anistia aprovada pelo Congresso Nacional consolidou “um amplo pacto de pacificação”.

Vejamos.

A Lei 6.683, também conhecida como Lei da Anistia, tem origem num projeto de Lei apresentado pelo general João Batista Figueiredo, então presidente da República.

A lei foi aprovada em sessão conjunta do Congresso Nacional no dia 22 de agosto de 1979.

Vale lembrar que o governo tinha maioria para aprovar o que queria.

E o que o governo queria?

Naquele momento estava em curso a retirada organizada da ditadura.

Começara com a distensão e prosseguia com a abertura lenta, segura e gradual.

E a retirada incluía fazer concessões ao lado de cá.

Mas também incluía proteger o lado de lá.

No concreto, proteger os crimes cometidos pela ditadura.

Incluindo crimes que eram crimes do ponto de vista da lei da própria ditadura, como a tortura, o assassinato, a ocultação de cadáveres.

Mas como pegava mal fazer isso explicitamente, o governo Figueiredo e seu partido, a Aliança Renovadora Nacional, fizeram uma manobra esperta.

Por um lado concederam Anistia.

Mas não uma Anistia ampla, geral e irrestrita, com pedia a esquerda.

A Anistia proposta pelo Figueiredo não era extensiva aos que haviam cometido “prática de crime de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”.

Com isso, a oposição democrática ficou na posição de ter que defender aqueles que eram acusados de "crimes de sangue".

E enquanto isso, os verdadeiros criminosos (por exemplo os que haviam torturado, assassinado e ocultado cadáveres) escapavam de fininho, graças a inclusão no projeto do governo de uma pegadinha: a referência aos “crimes conexos”.

A sessão de votação, no dia 22 de agosto, foi muito confusa.

E no final prevaleceu a posição do governo.

Inclusive com o apoio de setores da oposição, que compreendiam que mesmo com estas limitações, a Anistia significaria a libertação dos 53 que ainda estavam presos, a volta dos que estavam exilados e a retomada dos direitos políticos para todos e todas que haviam lutado contra a ditadura.

Seja como for, chamar isto de “pacto” é forçar a mão.

A lei da Anistia foi sancionada por Figueiredo em 28 de agosto de 1979.

A lei perdoou os crimes políticos cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

Agora vejamos melhor a “pegadinha” contida na Lei da Anistia: como já dissemos, a Lei aprovada perdoava os crimes políticos.

Mas para perdoar alguém, este alguém tem que ter sido condenado.

A pessoa só pode ser anistiada se antes for considerada oficialmente uma criminosa, e para isso ela precisa ter sido julgada e condenada.

E quem havia sido condenado e julgado?

Somente quem havia se oposto ao golpe e a ditadura militar.

Ou seja: aparentemente a Lei da Anistia beneficiava apenas a esquerda, os democratas.

Mas se fosse mesmo assim, o general Figueiredo seria membro honorário da tendência suicida, essa que existe num certo partido de esquerda que aprova leis e nomeia pessoas que são inimigas do partido.

Pois se fosse do jeito que falei, a Lei da Anistia proposta por Figueiredo estaria abrindo espaço para que os torturadores, os assassinos, os que desapareceram com cadáveres, pudessem vir a ser processados e punidos.

Afinal, aquelas pessoas cometeram crimes perante a lei vigente na própria ditadura militar.

E poderiam vir a ser processadas e condenadas.

Mas Figueiredo não era da tendência suicida.

E ele tomou o cuidado de incluir, no artigo primeiro da lei da Anistia, especificamente no parágrafo primeiro do artigo primeiro desta lei, o seguinte: “é concedida anistia a todos quantos cometeram crimes políticos OU CONEXOS”.

E o que são crimes conexos?

Se fosse aplicado o rigor da hermenêutica, seria algo tranquilo.

Mas no contexto, foi a fórmula jurídica para citar sem citar os crimes não julgados, não condenados, mas praticados pelos agentes de Estado na luta contra os supostos crimes cometidos pelos que se opuseram a ditadura.

Citando textualmente, o parágrafo primeiro diz que “consideram-se conexos ... os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.

Vale lembrar que o mesmo artigo cita como exceções o terrorismo, o assalto, o sequestro e o atentado pessoal.

Mas não cita a tortura, a ocultação de cadáver, o assassinato de presos.

Ou seja, estes poderiam ser crimes conexos cobertos pela Lei da Anistia.

E bingo: com base nisto e na interpretação politica de que a Anistia seria para os “dois lados”, os agentes do Estado que cometeram crimes conseguiram se safar de processos.

A imensa maioria nunca foi nem mesmo processada.

E os que foram não foram condenados.

Nenhum, nenhum, absolutamente nenhum dos sádicos torturadores, dos assassinos, dos que ocultaram cadáveres foram condenados.

Em 1979, ninguém tinha dúvida de que o objetivo da Lei da Anistia era proteger os criminosos da ditadura.

Naquele ano, o Sepúlveda Pertence era presidente da OAB e enviou ao Senado um parecer que dizia explicitamente que a lei tinha o “sentido de prodigalizar a anistia aos homicídios, violências e arbitrariedades policiais de toda sorte, perpetrados nos desvãos da repressão política”.

Um único senão ao que disse o Sepulveda: desvão a vovozinha.

Não havia desvões nem porões. Todos sabiam. Era uma política de Estado.

Todo mundo na cúpula do governo sabia o que se passava nos “porões”, pois a tortura, o assassinato, a ocultação de cadáveres eram política de Estado, como foi confirmado pelo general Geisel em famosa entrevista dada ao CPDOC da FGV.

Estes crimes são segundo a Constituição de 1988 imprescritíveis e não são passíveis de qualquer indulto ou graça.

E há toda uma legislação internacional que condena e impede e desconhece qualquer tipo de auto-anistia, em que governos criminosos perdoam seus próprios crimes.

Um detalhe interessante.

O relator do projeto do Figueiredo teve como relator o deputado Ernani Satyro (Arena-PB).

Ele foi ministro do Superior Tribunal Militar.

Num discurso feito na Câmara, Satyro – nome apropriado – disse o seguinte:

— Querem o perdão, mas não perdoam. Gritam pela anistia para os seus, mas apregoam, ao mesmo tempo e incoerentemente, a ideia de uma investigação sobre torturas e violências. Advogam a impunidade dos crimes de seus partidários para que, mais fortes, possam punir a revolução de 1964.

— O doloroso, para muitos, é saber que a anistia virá, mas virá pelas mãos do governo, por iniciativa do presidente João Baptista Figueiredo. Será atendida, assim, a autêntica voz do povo, que aspira à paz e à conciliação. Isso, para os oposicionistas, importa uma grande frustração, como frustrados se encontram pela abertura que está sendo feita pelo governo da revolução.

Pois bem: trinta anos se passaram.

Governo Lula.

O assunto estava sendo debatido publicamente.

O STF solicitou um parecer da AGU.

E a AGU apresentou um parecer segundo o qual a “anistia geral ou absoluta não conhece exceção de crimes ou de pessoas, nem se subordina a limitações de qualquer espécie”.

Diz também que “ambos os lados seriam beneficiados, evitando-se qualquer espécie de revanchismo no novo governo”.

Revanchismo?

Punir torturadores, assassinatos e ocultação de cadáveres é revanchismo?

Querer julgamento para criminosos que nunca foram julgados é revanchismo?

Sabe quem era o AGU?

José Antonio Dias Toffoli.

Sim, aquele mesmo que considerou que o golpe militar não foi um golpe, foi um “movimento”.

Claro que há toda uma legítima controvérsia jurídica acerca da possibilidade de julgar e condenar aqueles criminosos.

Por exemplo, 20 anos depois os crimes são prescritos.

E a legislação aprovada na CF de 1988 não seria retroativa.

E há dúvidas se isto poderia ser resolvido com nova legislação.

Embora haja respaldo internacional para isto.

Entretanto, tudo poderia ser parcialmente diferente se os criminosos pelo menos admitissem os crimes e pedissem perdão ao povo brasileiro.

E/ou se as instituições envolvidas pedissem perdão ao país.

Mas nunca o fizeram, nem as pessoas, nem as instituições, entre outros motivos porque não acham que cometeram crimes.

Ou seja: farão de novo.

Aliás, seguiram fazendo desde 1979 até hoje.

Pois como as torturas não foram punidas, segue sendo prática comum a tortura, o assassinato, a ocultação de cadáveres.

A vítima principal? Os pobres, os pretos, os periféricos.

Também por isso é inaceitável o que disse o ministro Marco Aurélio, em 2009.

As palavras dele foram: “ninguém é saudosista do período anterior. Mas é o caso de perguntar-se: por que houve a Lei da Anistia? Justamente para apagar o passado. Interessa à sociedade brasileira voltar àquela situação de conflito?”

Como é?

Apagar o passado? Alguém acha mesmo que é possível “apagar o passado”?

Acho que o ministro precisa reler Freud.

Hoje o Brasil está de volta àquela situação de conflito, entre outros motivos porque se tentou “apagar o passado”.

Monstros como cavernícola que nos preside seguem por aí entre outros motivos porque os crimes de Ulstra et caterva nunca foram punidos.

É preciso enfrentar o passado, não apagar, não esquecer, não perdoar.

Da maneira como foi aprovada, e da maneira como até agora vem sendo interpretada, a Lei da Anistia vem servindo como pretexto para proteger os crimes de sequestro, ocultação de cadáveres e tortura praticados por agentes do Estado.

É como se eles dissessem assim: vejam bem, ou vocês esquecem que somos monstros, ou nós vamos agir como monstros.

O nome disso é intimidação e chantagem permanentes.

Não houve, portanto, nenhum “amplo pacto de pacificação”, como nos quer fazer crer o general Walter Braga Neto.

Aliás, já falei noutro momento e repito agora: a relação entre as forças armadas e o povo brasileiro é assim: bate, aí vem a suposta pacificação, depois bate de novo, aí vem nova suposta pacificação e por aí vai.

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No dia 29 de março, o general Fernando Azevedo e Silva pediu demissão.

Sua carta fala que ele dedicou “total lealdade ao longo desses mais de dois anos” ao presidente da República.

Total lealdade: esta parte muita gente não leu.

Mas muita gente leu o que vem a seguir: “Nesse período, preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”.

Esta parte foi comemorada por algumas pessoas de esquerda como um suposto recado para Bolsonaro, que estaria querendo afastar as forças armadas do seu papel constitucional.

Não tenho dúvida de que Bolsonaro é um golpista, um neofacista, um miliciano e um patrimonialista, que quer usar as instituições para proteger os crimes de sua família e amigos.

Mas a pergunta é: o que é mesmo que significaria, para o ex-ministro da Defesa general Azevedo, preservar as FFAA como “instituições de Estado”?

A resposta fica claro quando lemos a ordem do dia alusiva ao 31 de março de 2020, assinada por Azevedo e pelos comandantes das 3 armas.

Como vocês poderão perceber da leitura, trata-se de uma versão expandida e em certos aspetos até mais radical, da ordem do dia divulgada e assinada no dia 31 de março de 2021 pelo general Walter Braga.

Vou ler a nota do general Azevedo, ex-ministro da Defesa:

O movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época.

O entendimento de fatos históricos apenas faz sentido quando apreciados no contexto em que se encontram inseridos. O início do século XX foi marcado por duas guerras mundiais em consequências dos desequilíbrios de poder na Europa. Ao mesmo tempo, ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico ameaçavam as liberdades e as democracias. O nazifascismo foi vencido na Segunda Guerra Mundial com a participação do Brasil nos campos de batalha da Europa e do Atlântico. Mas, enquanto a humanidade tratava os traumas do pós-guerra, outras ameaças buscavam espaços para, novamente, impor regimes totalitários.

Naquele período convulsionado, o ambiente da Guerra Fria penetrava no Brasil. Ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraiam até os bem-intencionados. As instituições se moveram para sustentar a democracia, diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder. As instabilidades e os conflitos recrudesciam e se disseminavam sem controle.

A sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis.

Aquele foi um período em que o Brasil estava pronto para transformar em prosperidade o seu potencial de riquezas. Faltava a inspiração e um sentido de futuro. Esse caminho foi indicado. Os brasileiros escolheram. Entregaram-se à construção do seu país e passaram a aproveitar as oportunidades que eles mesmos criavam. O Brasil cresceu até alcançar a posição de oitava economia do mundo.

A Lei da Anistia permitiu um pacto de pacificação. Um acordo político e social que determinou os rumos que ainda são seguidos, enriquecidos com os aprendizados daqueles tempos difíceis.

O Brasil evoluiu, tornou-se mais complexo, mais diversificado e com outros desafios. As instituições foram regeneradas e fortalecidas e assim estabeleceram limites apropriados à prática da democracia. A convergência foi adotada como método para construir a convivência coletiva civilizada. Hoje, os brasileiros vivem o pleno exercício da liberdade e podem continuar a fazer suas escolhas.

As Forças Armadas acompanharam essas mudanças. A Marinha, o Exército e a Aeronáutica, como instituições nacionais permanentes e regulares, continuam a cumprir sua missão constitucional e estão submetidas ao regramento democrático com o propósito de manter a paz e a estabilidade.

Os países que cederam às promessas de sonhos utópicos, ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a civilidade que rege as nações livres.

O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou”.

 

É isto que o general Azevedo entende como sendo “preservar as FFAA como instituições de Estado”.

Isto significa defender que as forças armadas fizeram certo praticando um golpe de Estado e exercendo uma ditadura.

Junto com ele, assinam aquela ordem do dia de 2020 o general Pujol, o almirante Ilques Barbosa Junior e o Tenente Brigadeiro Antonio Bermudez.

Portanto, pessoal, os 4 demitidos por Bolsonaro não são democratas.

São golpistas e saudosistas da ditadura.

Eles e Bolsonaro são, nesse quesito, farinha do mesmo saco.

Eles tem divergências, mas estas divergências não dizem respeito a democracia.

Nenhum deles é democrata.

Pois quem defende o golpe de 1964 e a ditadura não é democrata.

E quando eles falam em preservar as forças armadas como instituições de Estado, eles estão falando de qualquer coisa, menos daquilo que certos iludidos de esquerda querem acreditar.

E querem acreditar porque, no fundo no fundo, tem uma certa esquerda que gostaria que os militares, ou o Biden, ou a direita gourmet, façam por nós aquilo que cabe a nós fazer: derrubar Bolsonaro.

Por fim: quem foi ministro de Bolsonaro (e ainda fala em lealdade para com Bolsonaro) sabe muito bem que tem as mãos sujas de sangue de 320 mil brasileiros e brasileiras que foram condenados à morte por um governo militar que é o principal aliado do vírus.

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Um último comentário: o golpe militar não devia ter começado no dia 31 de março. Ele começou por iniciativa de um general também chamado Mourão, que se gabava de dizer que em termos de política, "sou uma vaca fardada”.

Este general Mourão foi quem decidiu movimentar suas tropas antes da data preferida pelos golpistas. Há muitas controvérsias sobre o horário exato em que as tropas começaram a se mexer. Mas ao que tudo indica foi no final do dia 31 de março.

O fato é que Jango não foi deposto no dia 31 de março.

Foi deposto de fato no dia 1 de abril.

E o congresso vai “legalizar” a situação numa sessão extraordinária do congresso que se encerra nas primeiras horas do dia 2 de abril.

Portanto, a pós verdade não começou agora.

Nossa homenagem a todos e a todas que lutaram contra a mentira, o golpe e a ditadura militar.

 

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