quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Contribuição à discussão

(distribuída por ocasião da reunião ordinária ampliada do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo, dia 18/9/2015)

Agradecendo a oportunidade e tendo em vista aproveitar ao máximo o tempo, encaminho por escrito minha contribuição à reunião que visa “debater o papel e as tarefas da FPA no próximo período, tendo em vista os desafios especiais da conjuntura e os objetivos para os quais a Fundação Perseu Abramo foi criada”.

O convite sugere três eixos centrais de discussão: “1) o fortalecimento da democracia e a defesa do pensamento de esquerda; 2) a contribuição para a formulação de um modelo de desenvolvimento com redução das desigualdades econômicas e sociais; 3) a análise do Estado e a contribuição para o aprimoramento dos instrumentos de gestão”.

Da minha parte, “traduzo” assim os três eixos propostos: 1) a estratégia, 2) o programa e 3) a ação do governo.

É a partir desta tradução que vou buscar responder o que foi perguntado: “a) Quais os principais desafios para o campo de esquerda e para o PT em particular em cada um desses temas? b) O que a FPA deve fazer visando contribuir para a superação desses desafios, tanto no curto quanto no médio e no longo prazos?”.

Sobre a estratégia

Ao longo dos anos 1980, o PT desenvolveu uma estratégia baseada em três eixos: 1) a luta e a organização social, 2) a disputa eleitoral e o exercício de mandatos institucionais, 3) o desenvolvimento de uma cultura de massas democrática e socialista.

No contexto dos anos 1980, esta estratégia nos permitiu uma acumulação de forças muito rápida e quase ganhamos a presidência da República em 1989.

Ao longo dos anos 1990, já num ambiente de ofensiva neoliberal e de crise do socialismo soviético, o PT reformulou sua estratégia, mantendo o tripé já citado, mas agora enfatizando a disputa eleitoral e o exercício de mandatos institucionais.

A partir de 2003, o PT dobrou a aposta nesta versão reformulada da sua estratégia original.

Os seguidos alertas de que a desproporcional ênfase institucional estava fazendo nossa estratégia perder vigência foram desconsiderados ou minimizados, muitas vezes sob o “argumento” de que reelegemos Lula em 2006, elegemos Dilma em 2010 e a reelegemos em 2014. E de que teríamos tempo para “depois”, “em seguida”, “noutro momento”, fazer os devidos ajustes.

Hoje, treze anos depois, numa situação internacional e nacional muito diferente da vigente nos períodos anteriores, não há como negar o esgotamento da estratégia adotada.

Não estamos “apenas” diante do risco de perder o governo em 2018 (e de levar uma sova nas municipais de 2016, apesar da ótima decisão do STF acerca do financiamento empresarial). Nem estamos “apenas” diante da tragédia de ver nosso governo implementar, em crescente medida, o programa dos derrotados em 2014. Muito mais grave do que isto, estamos ameaçados de sofrer um retrocesso geral nas liberdades democráticas, nas condições de vida da classe trabalhadora e na política externa do Brasil.

Por isto, não quero limitar a reflexão aos termos propostos: “fortalecimento da democracia e defesa do pensamento de esquerda”. Claro que devemos fortalecer as liberdades democráticas e defender a cultura socialista, democrática, popular, progressista. Mas o que precisa ser debatido neste momento é algo ao mesmo tempo mais amplo e mais preciso, a saber: qual deve ser a nossa estratégia?

Usando os termos utilizados por um famoso socialdemocrata no início do século XX: qual o nosso caminho para o poder?

Como ontem deixamos para amanhã o que podíamos ter tentado resolver anteontem, hoje somos obrigados a reformular a estratégia e ao mesmo tempo defender o acumulado contra uma brutal ofensiva das direitas, do grande capital e do oligopólio da mídia.

É difícil fazer as duas tarefas ao mesmo tempo, porque o “acumulado até agora” inclui diversos aspectos (determinadas alianças, concessões programáticas, modelos de funcionamento e organização) que precisam ser alterados.

É difícil assoviar e chupar cana ao mesmo tempo. É difícil mudar de bitola com o trem em alta velocidade. Mas se não conseguirmos dar conta das duas tarefas ao mesmo tempo, poderemos nos ver diante de uma das seguintes alternativas: 1) “perder” o PT; 2) “perder” o governo; 3) “perder” governo e partido, possibilidade que, em boa parte devido às escolhas feitas por quem hoje controla ambas instituições, constitui um cenário cada vez  mais provável.

Se a situação chegasse ao ponto de tornar inevitável uma escolha de Sofia, tratar-se-ia de “salvar o PT”; mas também neste caso os danos ao Partido teriam sido tão brutais, que tornariam muito difícil o dia seguinte.

Por tudo isto, devemos fazer um enorme esforço – intelectual e prático— para achar um caminho que nos permita ao mesmo tempo reformular a estratégia e escapar do cerco da direita. 

Este caminho existe, embora ele seja estreito e cheio de perigos: passa por dar cavalo de pau na política econômica, fortalecer a Frente Brasil Popular e recuperar os vínculos com a classe trabalhadora.


Reitero apenas que considero ser este o principal desafio para o campo de esquerda e para o PT em particular: o debate estratégico.

E o que a FPA deveria fazer visando contribuir para a superação desse desafio?

No curto prazo, assumir este como principal desafio e convertê-lo em eixo vertebrador do conjunto de suas atividades.

No médio prazo, fomentar nossa produção intelectual acerca do capitalismo do século XXI, das tentativas de construção do socialismo no século XX e das diferentes estratégias da classe trabalhadora (no Brasil e no mundo, no século passado e nesse).

Destaco, particularmente, a discussão acerca das classes e da luta de classes no Brasil do século XXI.

Considero que parte importante dos nossos descaminhos estratégicos reside numa compreensão incorreta acerca dos reais interesses do empresariado capitalista brasileiro, seus vínculos com o capital transnacional e financeiro, sua postura frente à ampliação das liberdades democráticas e do bem estar-social da classe trabalhadora.

Quanto ao “longo prazo”, deixo para os que estiverem vivos. E passo para o segundo ponto indicado para debate, na versão “traduzida”.

Sobre o programa

Mutação similar à ocorrida no âmbito da estratégia petista, também ocorreu no terreno do programa.

Nos anos 1980, construímos um programa democrático-popular & socialista.

Nos anos 1990, reduzimos muito os teores socialistas de nosso programa, ao tempo que enfatizamos os elementos antineoliberais.

Durante a campanha de 2002, mais exatamente com a aprovação da Carta aos Brasileiros, “demos” mais um passo na alteração do programa: nosso programa continuaria antineoliberal, mas agora a superação do neoliberalismo não se daria através da ruptura proposta por Celso Daniel, mas sim através da transição defendida por Palocci.

Foi este o programa que orientou nossa ação de governo, desde 2003 e até 2015, seja no período em que predominou o social-liberalismo estilo Palocci, seja nos momentos de inflexão “crescimentista”: a tentativa de conciliar os interesses das camadas populares com a manutenção dos interesses das frações empresariais mais beneficiadas pelo neoliberalismo. (Um efeito colateral desta opção foi dar base material para o ódio de parcelas dos setores médios. Outro foi a persistência da influência neoliberal em diversas áreas, não apenas no paradigmático Banco Central, mas também na previdência pública, saúde, educação, C&T...)

Seria perfeitamente “aceitável” algum tipo de conciliação com frações do grande empresariado. Mas com o tempo ficou claro que não se tratava apenas de uma conciliação tática, nem mesmo estratégica. A verdade é que alguns setores do PT e da esquerda brasileira sofreram uma metamorfose programática, teórica, ideológica. E o efeito disto sobre o Partido – tomado de conjunto -- foi retroceder décadas na maneira de relacionar as tarefas democráticas e nacionais com as tarefas socialistas.

Para aqueles que apontam as semelhanças entre nossa conjuntura e a de 1964, recomendo também notar as semelhanças entre o pensamento político que atualmente hegemoniza o PT e certas ilusões de classe vigentes no pensamento da esquerda trabalhista e comunista nos anos 1950 e 1960.

Infelizmente, vários de nós tentaram dissimular este retrocesso com jogos de palavra, apresentando nossas realizações desde 2003 como algo muito mais profundo.

O irônico é que setores da oposição de direita realmente acreditam que fizemos ou tentamos fazer uma “revolução” democrática e/ou socialista. Mas estes setores da direita contam em seu favor --no cerco que promovem contra nós-- com o fato de que, na vida real, não fizemos nenhuma reforma estrutural.

Não se trata apenas da relação convencional de “reformas de base”, mas também de nossa atitude frente ao oligopólio da mídia, às Forças Armadas, aos povos indígenas, à violência sistêmica das Polícias Militares contra os jovens negros moradores das periferias, à defesa dos direitos das mulheres, dos LGBT, da laicidade do Estado. Nestas e noutros questões, à ofensiva reacionária da direita corresponde muitas vezes uma atitude defensiva e inclusive o retrocesso de nossa parte, ou mais precisamente de parte de nós.

Adiciono outro exemplo de retrocesso cultural: a chamada “política econômica”, que alguns seguem achando tratar-se de matéria para economistas. Cito a frase proposta para nossa reflexão: ”modelo de desenvolvimento com redução das desigualdades econômicas e sociais”.

Estou seguro de que todos/as percebemos que nosso problema programático reside exatamente em construir um padrão de desenvolvimento que vá muito além de “reduzir” as desigualdades. Assim como estou convicto de que a esquerda brasileira já formulou muito a respeito de como fazê-lo. Sendo assim, se hoje somos obrigados a revisitar formulações deste tipo, é talvez porque –- como disse acima—sofremos um imenso retrocesso, ao mesmo tempo em que a realidade se alterou muito.

Em parte devido a esta alteração, destaco quatro temas (articulados entre si) que na minha opinião carecem de formulação no curto e médio prazo. Refiro-me ao setor financeiro, a industrialização, a questão agrária e a universalização das políticas sociais.

Sem indústria forte e tecnologicamente avançada, não há como implementar um programa e uma estratégia democrático-popular e socialista. Sem um setor financeiro poderoso e público, não teremos capital para fazê-lo. Sem resolver a questão agrária e universalizar as políticas sociais, será impossível conciliar desenvolvimento econômico com elevação do bem-estar social. E sem tudo isto junto e misturado, será impossível no médio prazo derrotar a direita e sua ofensiva contra as liberdades democráticas conquistadas pela classe trabalhadora, nem tampouco sustentar uma política externa soberana e de integração regional.

Lendo os programas elaborados recentemente, por economistas de esquerda vinculados à CUT e ao PT, percebo que nossas formulações a respeito daqueles quatro temas continuam privilegiando fórmulas gradualistas, que parecem razoáveis, mas que são totalmente utópicas, porque no limite supõem a cooperação do inimigo. 

Formular um programa econômico de curto e médio prazo equacionando de maneira politicamente realista (o que em vários casos é o mesmo que dizer: de forma não-gradualista) aquelas questões constituiria, na minha opinião, uma grande contribuição que a FPA poderia dar para a esquerda brasileira.

Sobre o governo

Os primeiros nove meses do segundo mandato Dilma condensaram todos os defeitos e nenhuma das virtudes de nossa atual estratégia e programa. Noutras palavras, de tanto insistirmos na transição lenta segura e gradual em direção a um novo modelo de desenvolvimento, caímos numa capitulação lenta, dolorosa e infernal frente ao programa neoliberal.

Algumas de minhas opiniões acerca da situação e do que fazer no curto prazo estão nos textos cujo link indiquei anteriormente. Assim, vou me deter aqui num aspecto específico do problema, a saber: como articular nossa presença no governo com a disputa do poder.

A ofensiva da direita é forte, entre outros motivos, porque durante 13 anos não utilizamos adequadamente nossa presença no governo para ampliar o poder da classe trabalhadora e dos setores populares em geral. Ao contrário da lenda, nada ou quase nada fizemos para reduzir os instrumentos de poder real da classe dominante. 

Embora pareça paradoxal, não o é. Afinal, a conversão estratégica e programática explicada anteriormente estava em função do objetivo de ser governo, não a serviço do objetivo de ser poder.

Não foram poucas as vezes, aliás, em que a demanda por medidas mais ousadas no terreno da comunicação, da segurança, da justiça etc. era contida com frases aparentemente inteligentes e profundas do tipo: “vamos com calma, pois não fizemos uma revolução”. Frase que as vezes vinha acompanhada --como mais uma prova do ecletismo que nos coloniza— da crença de que o PT havia “chegado ao poder” em 2002. Mutatis mutandis, hoje ouvimos críticas segundo as quais o PT teria “abandonado um projeto de país, para assumir um projeto de poder”.

O que espanta nas frases acima e noutras similares não é a repulsa por Lenin, mas sim o desconhecimento de Maquiavel, que já constatara ser muito mais difícil fazer reformas, pois estas atraem mais rápido o desgosto dos prejudicados do que o apoio dos beneficiados. Adaptando para o nosso caso, infinitamente mais difícil é fazer mudanças.

O tema do poder envolve, mas não se limita à questão da revolução. Aliás, não importa como articulemos mentalmente “reforma” com “revolução”: ou enfrentamos o tema do poder, ou qualquer projeto de transformação do Brasil estará fadado a ser derrotada.

Uma dificuldade adicional – do ponto de vista cultural-- é que nossa chegada ao governo federal não apenas transferiu para lá um bom número de nossos quadros, não apenas deslocou para a administração federal a direção real de nossas ações, mas também alterou substancialmente nossa maneira coletiva de ver os processos de transformação social. Não se trata de falta de formação: trata-se de deformação no ponto de vista.

O que só reforça a importância do Partido – e, no caso, a Fundação tem relevante papel nisto— produzir um balanço de nossa ação de governo e uma proposta de ação futura, balanço e proposta que estejam articulados não sob a forma de “listas de realizações”, mas sim pelo objetivo de discutir o que fizemos e o que devemos fazer, a partir do governo, na disputa pelo poder.

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Em resumo, penso que a FPA deve priorizar três grandes temas: as classes e a luta de classes no Brasil; o desenvolvimentismo democrático-popular e socialista; a construção do poder popular.

Independentemente das diferenças de visão que temos -- no Partido, na Fundação e no conjunto da esquerda brasileira --, acerca das questões que abordei anteriormente, bem como nos dois textos citados, o que me parece fundamental é: não basta derrotar o cerco da direita; é preciso derrotar as causas que estão levando este cerco a ter êxito. E a principal destas causas está entre nós: a insistência numa estratégia, num programa e num comportamento partidário e governamental que não estão à altura do momento.

Ou reconhecemos isto e tomamos as devidas medidas com a mais absoluta urgência, ou nosso partido poderá se converter no que foram o PTB e o PCB após o golpe de 1964: sombras de seu próprio passado.

O preço que o PT, o conjunto da esquerda, os setores populares e os setores democráticos e progressistas na América Latina pagariam por algo deste tipo seria tão alto e tão duradouro, que não temos o direito de cometer este erro.

Mais uma vez obrigado pela oportunidade de contribuir neste debate.


Valter Pomar, 17 de setembro de 2015

VERSÃO NÃO REVISADA SUJEITA A ALTERAÇÕES

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