Texto divulgado em 18 de julho de 2005.
Há algumas semanas, entrou em cartaz nos cinemas brasileiros um filme chamado “Guia do mochileiro das galáxias”. Sessão obrigatória para petistas em tempos de Roberto Jefferson e Marcos Valério.
Logo no início do filme, um pacato cidadão tem seu despertar matinal perturbado por uma enorme quantidade de tratores e retroescavadeiras. Motivo: sua casa será demolida para dar lugar a uma auto-estrada. Todos imaginam o desespero do rapaz.
Alguns minutos depois, tanto o pacato cidadão quanto os operários que demoliam sua casa descobrem, embasbacados, que o Planeta Terra será demolido para dar passagem a uma auto-estrada... estelar.
Começa assim a aventura de um “mochileiro das galáxias”, sem casa e sem planeta. E aí começam, também, as semelhanças conosco, petistas: imersos num vendaval de denúncias contra nosso Partido, estamos deixando de ver os processos políticos, econômicos e sociais profundos que constituem o pano de fundo da atual conjuntura e que podem demolir, não nossa casa, mas a classe trabalhadora brasileira e nosso país.
Primeira estrada galáctica
O primeiro destes processos é de escala internacional: desde meados dos anos 1970, o núcleo central do mundo capitalista entrou num ciclo de baixo crescimento (ou de estagnação, para alguns).
Todas as transformações ocorridas desde então, na cena internacional, têm relação direta com este pano de fundo: a crise do Estado de bem-estar social e a ascensão de uma direita neoliberal; a crise da dívida externa latino-americana e a catástrofe social que se abateu sobre o continente africano, bem como sobre a maioria dos países que alguns denominavam “em desenvolvimento” ou “terceiro mundo”; o colapso do mal denominado socialismo real; a financeirização da economia mundial e o neoliberalismo armado do governo norte-americano.
No Brasil, a resistência ao impacto da onda mundial neoliberal teve duas grandes etapas.
A primeira etapa foi de 1974 até 1988, sendo hegemonizada por setores da burguesia nacional e protagonizada por seus representantes políticos liberal-burgueses no MDB-PMDB, embora sobre intensa pressão e disputa por parte das classes trabalhadoras e forças democrático-populares.
Como sabemos, as forças liberal-burguesas fracassaram na resistência à onda mundial do neoliberalismo. O grosso da burguesia optou por Collor e, depois, pelo mais “confiável” Fernando Henrique e sua receita de privatização, abertura comercial e endividamento.
A segunda etapa de resistência à onda neoliberal foi de 1989 até 2002, sendo hegemonizada pelas forças democrático-populares e protagonizada pelo PT.
Independente das avaliações que façamos sobre as opções políticas adotadas ao longo destes últimos 15 anos, não há como fugir da seguinte constatação: estamos com enormes dificuldades para conter (e, óbvio, reverter) a onda neoliberal.
Caso a direita tenha sucesso na ofensiva atualmente em curso, derrotando o PT e reconquistando a presidência da República, estarão criadas as condições para a continuidade do que vinha sendo feito no governo FHC, com mais privatizações, com mais perda de soberania, com mais atrelamento da economia nacional aos interesses norte-americanos, com mais financeirização da economia.
Segunda estrada galáctica
Outro processo que forma o pano de fundo da atual conjuntura é de origem “nacional”: a crise do modelo de desenvolvimento implantado no país de 1930 a 1980.
Esta crise coincide, no tempo, com a onda neoliberal; mas tem uma dinâmica própria, ligada ao padrão de desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
Este padrão é assentado em alguns pilares: a superexploração da força de trabalho; a dependência externa; a conciliação de interesses entre as diferentes frações da classe dominante brasileira e a conseqüente manutenção do monopólio da terra; a intensa concentração e centralização do capital, tendo como desdobramento o conservadorismo político.
No final dos anos 1970, este padrão de desenvolvimento atingiu seu limite, não apenas por motivos estritamente econômicos, mas principalmente devido à resistência da classe trabalhadora e ao desgaste da ditadura militar.
Durante os anos 1980, as diferentes frações da classe dominante dividiram-se sobre que rumo seguir. Entre 1989 e 1994, “capitularam” e unificaram-se em torno do programa neoliberal.
Mas o neoliberalismo não conseguiu superar a crise de modelo.
Do nosso ponto de vista, a crise social aprofundou-se. Do ponto de vista dos capitalistas, a doença de fundo continuou (a estagnação econômica), bem como ressurgiram periodicamente os sintomas visíveis: a inflação, o endividamento, os juros altíssimos e a instabilidade cambial.
Essa situação levou a que, mais precisamente a partir da crise de 1998-1999, a classe dominante voltasse a se dividir.
Alguns setores buscaram aliança com o campo democrático-popular, enquanto outros buscavam alternativas próprias. Símbolos desta aproximação --mútua, como sabemos-- entre setores das classes dominantes e o campo democrático-popular, foram a indicação de José Alencar como candidato à vice-presidência da República; bem como o apoio, à candidatura Lula, de setores do PMDB (capitaneados pelo senador José Sarney), de outros partidos de centro e centro-direita, assim como de setores militares nacionalistas.
Dois anos e meio de governo Lula, entretanto, não construíram um caminho para a superação da crise de modelo.
Acontece que esta crise só será superada por meio de um brutal investimento, que desencadeie um novo ciclo econômico “virtuoso” (ou seja, que traga no seu interior as condições necessárias ao seu prosseguimento).
Este investimento pode vir de três origens: ou externa; ou do capital instalado no país; ou dos trabalhadores, aqui incluídos os setores tidos como “classes médias”.
Já sabemos que, ao menos nas condições atuais, o grande capital internacional não está muito disposto a fazer investimentos maciços em infra-estrutura, preferindo alternativas financeiramente mais rentáveis e de retorno mais rápido.
Já sabemos, também, que o capital instalado no país não possui os meios necessários para viabilizar um ciclo de investimentos do montante necessário para superar a crise. Nem a disposição necessária para sacrificar uma fração do capital (o setor financeiro) em benefício dos demais.
Logo, a única “solução” viável, do ponto de vista do grande capital, inclusive da maior parte daqueles que apoiaram nossa candidatura a presidente da República, é aprofundar a superexploração dos trabalhadores. Ou, para usar o termo preferido pelos economistas burgueses, “reduzir o Custo Brasil”, o que certamente funcionaria como atrativo para o grande capital internacional investir em infra-estrutura.
Caso a direita tenha sucesso na ofensiva atualmente em curso, derrotando o PT e reconquistando a presidência da República, estarão criadas as condições para fazer aquilo que eles não tiveram força para fazer no início dos anos 1980: sair da crise, às custas de um novo ciclo de superexploração. O que, tenhamos certeza, suporá também uma direitização da vida política brasileira.
Terceira estrada galáctica
A situação da classe trabalhadora brasileira constitui o terceiro elemento que forma o pano de fundo da atual conjuntura.
Se compararmos a situação atual da classe, com o que tínhamos nos anos 1980, a conclusão é paradoxal: parecemos ter mais poder que antes, mas também parecemos estar mais fracos que antes.
O aparente paradoxo pode ser decifrado se observarmos que a classe trabalhadora sofreu, desde 1980 até agora, os efeitos de um duplo processo: a ofensiva neoliberal e a crise do socialismo.
A primeira se abateu sobre as condições objetivas de vida da classe. A segunda se abateu sobre sua subjetividade.
Como efeito, as formas tradicionais de organização da classe trabalhadora (a começar do sindicalismo, mas também os partidos etc.) perderam vitalidade ao longo dos últimos 25 anos.
Ao longo desse mesmo período, entretanto, cresceu a presença de representantes da esquerda na institucionalidade estatal: parlamentos e governos.
Esse crescimento institucional foi um componente importante da resistência que a classe trabalhadora contrapôs ao neoliberalismo. Servindo, portanto, ao menos em parte, para “compensar” o enfraquecimento dos organismos tradicionais da classe.
Acontece que, a partir das posições ocupadas na institucionalidade, não desenvolvemos (porque não quisemos; ou porque não pudemos; ou porque não tivemos tempo; ou porque, em nossa opinião, adotamos uma estratégia equivocada) políticas capazes de reconstituir a força da classe trabalhadora.
Em linguagem militar, nossas linhas de abastecimento foram estendidas ao máximo. E terminamos cercados pelo inimigo, cujas estruturas de poder (políticas, econômicas, midiáticas, internacionais) seguem fundamentalmente intactas --aqui está, aliás, uma das principais diferenças entre o que está acontecendo no Brasil e o que parece estar ocorrendo na Venezuela.
A crise atual --cujo foco parece estar ligado ao tema do financiamento de campanhas-- é expressão do que dissemos antes: é como se, para chegar onde chegamos, tivéssemos abastecido parte de nossas tropas em “postos de combustível” do inimigo de classe.
Isto não teria sido um problema se, uma vez no governo, tivéssemos agido com rapidez e unidade no sentido de reconstituir nossas forças e golpear nossos inimigos.
Mas, sem entrar no mérito das causas, não foi isto o que aconteceu. O apoio que Lula segue tendo nas camadas populares não deve nos iludir: ao longo dos últimos dois anos e meio, sofremos uma corrosão de nossa base de apoio; e experimentamos uma insatisfação crescente em nossa militância.
Caso a direita tenha sucesso na ofensiva atualmente em curso, derrotando o PT e reconquistando a presidência da República, estarão criadas as condições para que a direita combine o enfraquecimento social da classe trabalhadora, com o enfraquecimento político-institucional da esquerda brasileira. Preliminar necessária para o que apontamos no item anterior deste texto: um novo ciclo de crescimento, comandado pela burguesia e baseado na superexploração da força de trabalho.
“Don´t panic”
Voltando ao filme citado no início deste texto: o pacato cidadão escapa da demolição de sua casa e de seu planeta, sendo teletransportado para uma nave espacial, na qual é apresentado ao Guia do mochileiro das galáxias, livro virtual que tem na sua contra-capa a orientação suprema para quem se aventura em viagens interestelares: “don´t panic” (*).
O mesmo vale para nós, petistas.
Os ataques que a direita faz, agora, contra o PT e contra o governo, não são raio em céu azul: tiveram início no caso Waldomiro Diniz, prosseguiram nas eleições de 2004, na disputa da presidência da Câmara e se estendem, agora, com as tentativas de colar no PT o estigma da corrupção.
Estes ataques têm propósitos mais do que claros: reconquistar a presidência da República e destruir o PT.
No que toca à reconquista da presidência da República, a direita tem um leque de alternativas: a) conformar-se com a reeleição de Lula, mas sob cerco total, de modo que o segundo mandato termine sendo inferior ao primeiro; b) impedir a reeleição de Lula, derrotando-o em 2006; c) levar Lula a desistir de disputar a reeleição; d) realizar o impeachment do presidente; e) forçar Lula a abrir mão de governar, adotando por exemplo o programa “déficit zero”; f) distanciar o governo do PT.
No que toca à destruição do PT, é preciso ter claro: estamos diante de algo pior do que a ditadura fez com as organizações da luta armada. Naquela época, os militantes eram assassinados, exilados, presos, torturados, impedidos de atuar politicamente. Mas a ditadura não conseguiu desmoralizar a esquerda.
O que está em curso, hoje, é uma tentativa de desmoralizar totalmente o Partido.
O roteiro do ataque, repetido há sessenta dias pelos meios de comunicação, é o seguinte: “essa gente chegou ao governo, fazendo alianças com quem eles antes atacavam, praticando uma política econômica que antes eles atacavam. Uma vez no governo, perceberam que não seria possível melhorar a vida do povo e trataram de melhorar sua própria vida”.
Noutras palavras, a direita tenta transformar o PT e tudo o que fizemos, nos últimos 25 anos, numa imensa fraude. É evidente que não podemos aceitar isto.
A direita não nos ataca por causa dos nossos erros, embora ela se aproveite de nossos erros para nos atacar. A direita nos ataca por causa dos nossos acertos, do que somos, do que representamos, do projeto político, econômico e social que encarnamos.
O PT esteve em cada uma das lutas democráticas, sociais e populares deste país, nos últimos 25 anos. Pretendem fazer o país esquecer isto. Querem nos converter, a golpes de manchete, em um partido corrupto.
O PT não é um partido corrupto. Partido corrupto é aquele que, se tirarem os corruptos, o Partido acaba. No PT, se tirarmos os corruptos, ele se fortalece.
Por isso, cabeça fria: nossas dificuldades e nossas saídas estão na luta política.
O que fazer?
Em síntese: defender o PT; concluir com êxito o primeiro mandato de nosso governo federal; vencer as eleições de 2006; realizar um segundo mandato presidencial superior ao primeiro; mobilizar nossa base social e militante.
Estas são as nossas tarefas.
O primeiro passo, sem o qual os outros não serão dados, é defender o Partido.
Para isso é preciso mobilizar nossa base militante e social, o que supõe e pressupõe superar a estratégia adotada desde 1995 e reconhecer os erros cometidos, dentre os quais há quatro que se destacam:
Primeiro: a política de alianças, que além de gerar mal-estar em nossa base militante, introduziu em nosso convívio os inimigos e, em alguma medida, nos “contaminou” com seus atos;
Segundo: os métodos de condução do Partido, em que algumas decisões foram “privatizadas”, enquanto os prejuízos políticos dessas decisões agora são “socializados” à nossa revelia;
Terceiro: a política econômica, que gerou mal-estar em nossa base militante, debilitando o organismo partidário e “preparando o terreno” para o relativo sucesso do ataque atual.
Quarto: a política de financiamento de campanhas, que em última análise tornou um partido de trabalhadores dependente do financiamento das empresas capitalistas;
Sobre este quarto erro, é preciso lembrar ainda que, nos partidos de direita, fisiológicos, corruptos, há uma “escada da perdição”, composta por cinco degraus: primeiro, aceitar o financiamento empresarial, nos marcos da legislação vigente; segundo, aceitar o financiamento via caixa-dois, o que reduz a publicidade e o controle social; terceiro, montar esquemas de transferência antecipada de recursos públicos, para as mãos de empresários que farão financiamento de campanhas; quarto, associar estes esquemas com alguma modalidade do crime organizado; quinto, utilizar tais recursos para enriquecimento pessoal.
Nosso Partido dos Trabalhadores não subiu esta “escada da perdição”. Mas está sendo acusado de fazê-lo. E muitos, mesmo dentre os petistas, acham que as acusações procedem. Só isso já nos obrigaria a debater com profundidade esta questão. E a fazê-lo publicamente, tendo um duplo propósito: aprovar uma nova legislação político-partidária, incluindo o financiamento público de campanhas; e, consigamos ou não aprovar uma nova legislação, adotar de imediato normas extremamente restritivas e transparentes para o próprio Partido, tais como não aceitar financiamento de campanha vindo de empresas que mantenham qualquer tipo de contrato com o poder público.
Se soubermos reconhecer os erros, mudar os rumos, renovar os métodos e os quadros dirigentes, teremos condições também de mobilizar nossa base militante e social em defesa do projeto histórico que o PT encarna.
A eleição das novas direções partidárias (o PED) faz parte deste processo de mobilização.
No dia 18 de setembro, centenas de milhares de filiados precisam reafirmar sua condição de petistas e militantes da causa que abraçaram em 25 anos de vida do PT.
No dia 18 de setembro (e, no dia 2 de outubro, no segundo turno para a presidência nacional) estará em jogo, ademais, a estratégia geral do Partido.
A estratégia adotada, de 1995 até 2002, pelo mal denominado “campo majoritário” do Partido, parece ter sido capaz de nos levar à presidência da República; mas não se demonstrou capaz de ir além disso. Era e continua sendo uma estratégia para disputar o governo, não uma estratégia para disputar o poder. E é disso que precisamos.
Estas são as respostas que devemos dar aos ataques da direita: mobilização social, capacidade de autocrítica e correção nos rumos. Sem pânico, pois existe uma saída para a crise e ela está na margem esquerda.
*Pequeno preciosismo: “don´t panic” é uma construção típica de uma língua apaixonada por economia verbal. Um amigo especialista considera que seria melhor grafar "don´t be in panic". Ou "don´t get into panic". Mas preferimos manter a formulação do filme.
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