terça-feira, 30 de setembro de 2025

Sobre o fascismo

O texto abaixo foi encomendado pelo companheiro Leandro Eliel, para fazer parte de uma coletânea intitulada História do Fascismo, que deve ser publicada em parceria pelo CCEV, pela Elahp e pela editora Página 13. Autorizado pelo Leandro, divulgo abaixo.

O que é o neofascismo e como a esquerda deve agir frente a ele

A palavra “fascismo” voltou à moda. Mas não há uma definição unânime acerca do que foi o fascismo da década de 1920 na Itália, nem tampouco o que foram as “variantes” portuguesa (o salazarismo), espanhola (o franquismo) e alemã (o nazismo). Sem falar da “variante” japonesa, assim como dos “galinhas verdes” e integralistas brasileiros.

A palavra “fascismo” voltou à moda para designar a extrema-direita que possui grande força, hoje, especialmente nas Américas e na Europa. Mas como há diferenças entre o fascismo original e a extrema-direita atual, muitos preferem falar de “neofascismo”, enquanto outros preferem falar de extrema-direita.

E o que seria a extrema-direita? Quais as diferenças entre a direita e a extrema-direita? Todas as variantes da extrema-direita podem ser colocadas no saco do “neofascismo”?

Para responder a estas e outras perguntas, um bom ponto de partida é responder como domina a classe dominante, ou seja, os capitalistas.

O capitalismo é um modo de produção relativamente jovem, ao menos em comparação com o feudalismo e com o escravismo. Ao longo dos seus cerca de 300 anos de vida, o capitalismo passou por diferentes momentos e assumiu diferentes formas. Mas qualquer que fosse a situação, há algo que não muda: o capitalismo depende da exploração da força de trabalho. E essa exploração só tem êxito quando se combinam, em determinadas proporções, cooperação e opressão.

Sem algum nível de opressão, os trabalhadores podem, a qualquer momento, se insurgir com êxito. Sem algum nível de cooperação, a produção não flui. Portanto, a classe dominante precisa o tempo todo combinar estes dois elementos: cooperação e opressão. Sem algum pão e circo, não funciona. Mas sem um pouco de tiro, porrada e bomba, também não tem dominação.

Como esses dois componentes da dominação são necessários o tempo todo, coexistem dentro da classe dominante (e de seus “funcionários”, como é o caso de grande parte dos governantes, parlamentares, operadores do direito, burocratas muito bem remunerados, penas e línguas de aluguel etc.) pessoas e setores especializados em defender e praticar cada uma dessas posturas e suas inúmeras variantes.

Noutras palavras, sempre haverá, em cada país e em cada época, setores da classe dominante defendendo e praticando o método do porrete e outros defendendo e praticando o método da cenoura, em suas inúmeras variantes, “tudo junto e misturado”.

Por isso é que, quando buscamos no passado ou quando olhamos ao nosso redor, sempre vamos encontrar bem mais que 50 diferentes tonalidades da dominação, que vão do fascismo mais brutal até a democracia burguesa aparentemente tolerante.

Falando em tese, o melhor método para a classe dominante é o do pão e circo. Ou seja, aquele método em que uma parte importante da classe trabalhadora não se percebe dominada, acreditando ser colaboradora do processo: “Se eu trabalhar bastante e fizer minha parte, chegarei lá”. Ou, para falar in english, o american way of life hegemônico quando os EUA pareciam bem das pernas.

Evidentemente, o método do pão e circo só funciona perfeitamente em alguns momentos da história, quando o capitalismo está em expansão em determinado país ou região. Mas quando o capitalismo está ou parece estar num beco sem saída, cresce o descontentamento e com ele crescem os setores da classe trabalhadora que contestam o capitalismo e propõem alternativas. Nesse contexto, os métodos doces de dominação cedem lugar aos métodos amargos. É “la hora de los Hornos”! Então a extrema-direita, em todos os seus variados matizes, assume importante papel na manutenção da dominação de classe.

Acontece que a extrema-direita não nasce nesse momento, ela apenas adquire intenso protagonismo. Noutras palavras, a extrema-direita já estava lá, com seus hábitos, com seus valores, com suas manias e taras. E quando assume o primeiro plano, traz junto essa herança maldita. Por exemplo, no caso do Brasil, mas também de inúmeros outros países, o racismo, a misoginia, o fundamentalismo, o ódio atávico aos povos originários, tudo junto com o “homem cordial” e com o culto do privado frente ao público.

Daí se explica por qual motivo a extrema-direita não é apenas conservadora, ela é principalmente reacionária, está sempre cultuando e propondo voltar “aos bons tempos” do Brasil Colônia, da escravidão e do patriarcado sem limites.

Isto posto, como enfrentar o fascismo/neofascismo/extrema-direita? As formas concretas dependem do momento histórico. Na época da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o principal meio de enfrentar o fascismo era o combate militar. Noutros momentos, predominaram as medidas políticas e ideológicas. Mas como o “fascismo” (ou algo que é visto como “fascismo” por muita gente) voltou à moda, é preciso concluir algo óbvio: enquanto houver capitalismo, o espectro da extrema-direita seguirá rondando, qual um Freddy Krueger. A respeito, recomendamos ler um texto de 1935, escrito por Bertold Brecht, chamado “O fascismo é a verdadeira face do capitalismo”.[1]

Assim, se a esquerda quer mesmo derrotar o fascismo, deve começar enfrentando o capitalismo. O que exige um movimento duplo e simultâneo: por um lado, defender a superação do capitalismo; por outro lado, defender medidas imediatas em defesa da classe trabalhadora (mais empregos, mais salários, mais e melhores aposentadorias, redução da jornada, fim da escala 6x1, pagar menos impostos, mais políticas públicas) e também medidas contra a classe capitalista (redução dos juros, impostos progressivos, estatização de certas atividades econômicas, proteção da soberania nacional contra o imperialismo).

Este duplo movimento é importante, entre outros motivos, porque o “fascismo” também faz um movimento duplo. Por um lado, ele serve aos interesses da classe dominante. Mas, ao mesmo tempo, o “fascismo” precisa neutralizar a influência que a esquerda consegue alcançar na classe trabalhadora em momentos de crise do capitalismo. E, para conseguir êxito nessa neutralização, o “fascismo” precisa dialogar não apenas com os sentimentos profundos inculcados há séculos no povo (“família”, “Deus” e “pátria”), mas também precisa dialogar com a insatisfação material de grandes parcelas da população. Por isso, o fascismo original (na Itália e na Alemanha, na década de 1920) precisou aparecer como crítico das elites, dos oligarcas, do sistema. O mesmo movimento é feito, hoje, por parcelas do bolsonarismo brasileiro e dos seguidores de Milei na Argentina.

Por isso, o êxito da esquerda na luta contra o “fascismo” supõe fortalecer a dimensão antissistêmica da esquerda, não apenas no plano estratégico (a defesa do socialismo), mas também no plano imediato (a defesa de reivindicações imediatas em favor da classe trabalhadora).

As formas concretas da luta contra a extrema-direita dependem, como foi dito antes, de circunstâncias concretas: em que país, em que época, contra qual extrema-direita, a partir de qual esquerda. Mas há uma variável geral que merece ser destacada, a saber: o “fascismo” é chamado à cena quando não estão dando conta do recado aquelas instituições e procedimentos tradicionalmente utilizados pelos capitalistas para exercer sua dominação. Nesse contexto, para atingir o objetivo de derrotar a esquerda e aumentar a exploração das classes trabalhadoras, o fascismo tende a entrar em conflito, mais ou menos profundo, com o modus operandi várias daquelas instituições e procedimentos. Isso gera conflitos, maiores ou menores, com outros setores da classe dominante que se identificam com aquelas instituições e procedimentos.

Quando tudo isso acontece, parte da esquerda acredita ser possível fazer uma aliança com parte da classe dominante em defesa das “instituições” e da “democracia mesmo que burguesa”. Isso aconteceu inúmeras vezes na história e sobre tal linha política há balanços muito diferentes dentro da própria esquerda.

O que pode ser dito a respeito, em termos genéricos, é o seguinte: nos momentos históricos em que a extrema-direita está ascendendo, a maior parte da classe dominante tem simpatia pelas posições “fascistas”. Um exemplo disso é o apoio que Bolsonaro teve (e ainda tem) entre os ricos. Portanto, naqueles momentos históricos, são minoritários os setores da classe dominante dispostos a fazer uma aliança com a esquerda. E, além de minoritários, são inseguros, confusos, com muita gente preferindo o caminho da “pacificação”.

Sendo assim as coisas, é preciso saber que, fazendo ou não alianças - lembrando que alianças são uma questão tática, não de princípio -, o sucesso na luta contra a extrema-direita depende fundamentalmente das classes trabalhadoras e da esquerda. O maior exemplo disso foi a própria Segunda Guerra Mundial: houve uma aliança. Mas de cada cinco soldados alemães que tombaram durante o conflito, quatro foram mortos pelos soviéticos, que, por sua vez, respondem por quase 90% das baixas militares sofridas por URSS, EUA e Inglaterra.[2]

Do que foi dito anteriormente decorre outro ensinamento: como em certos momentos precisa entrar em choque com a institucionalidade vigente, a extrema-direita causa, em alguns desavisados, a impressão de ser “revolucionária(em algum lugar, andaram comparando a intentona de 8 de janeiro com a tomada do Palácio de Inverno). Essa impressão é falsa, por vários motivos.

Em primeiro lugar, a ação da extrema-direita contra uma parte da institucionalidade conta sempre com o apoio de outra parte. Aqui no Brasil, o ataque à Praça dos Três Poderes partiu de acampamentos em frente aos quartéis, teve inicialmente escolta policial e contou com participação direta e indireta de gente das Forças Armadas, assim como do Judiciário, do Executivo e do Legislativo. Golpes de Estado, vamos lembrar, são golpes praticados por uma parte do Estado contra outra parte do Estado.

Em segundo lugar e principalmente, o programa da extrema-direita não é revolucionário. A extrema-direita não se propõe a fazer uma revolução social, não se propõe a acabar com o capitalismo. Nem se propõe a fazer uma revolução política, não se propõe a colocar a classe trabalhadora no poder. O que a extrema-direita quer é fazer uma “contrarrevolução”, mesmo que esta contrarrevolução seja fake. Os governos Lula e Dilma não foram revolucionários, mas se dependesse do que acreditavam os cavernícolas, os presidentes petistas estariam implantando o socialismo no Brasil. Aliás, foi isso que Bolsonaro disse em seu discurso na ONU em setembro de 2019.

Mas embora tenha este componente fake, a extrema-direita causa danos reais, imediatos e de médio prazo. Morreram centenas de milhares de pessoas, durante a pandemia, por conta do que o governo cavernícola fez e deixou de fazer. A vida do povo piorou brutalmente. E as mortes violentas cresceram no país por um conjunto de razões que têm relação direta com a presença da extrema-direita no governo. Por isso e pelo conjunto da obra, mesmo que sejam caricatos, os movimentos de extrema-direita não devem ser tratados com doçura. Contra eles, é preciso aplicar a lei, mas principalmente e acima de tudo a mais implacável luta política e ideológica. Zero acordo, zero concessão, zera tolerância. Combater, derrotar e destruir: este deve ser o comportamento da esquerda no enfrentamento ao neofascismo.



[1] Disponível em O Fascismo é a Verdadeira Face do Capitalismo, consultado em 29/9/2025.

[2] Estas e outras informações estão na insuspeita biografia de Churchill escrita por Andrew Roberts.


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