quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Sem medo de eviscerar

Como expliquei na primeira postagem deste blog, seu objetivo principal é disponibilizar textos que produzi ao longo de 25 anos de militância petista. É o caso de "Sem medo de eviscerar", escrito em junho de 2005, versando sobre um tema que segue atual: como tratar o combate à corrupção.


É nos momentos de crise, como este, que costumam ficar mais claras as verdadeiras concepções que norteiam as lideranças políticas. Um bom exemplo disso é o discurso do senador Tião Viana, feito na segunda-feira, 13 de junho [de 2005].
Este discurso foi muito comentado (e criticado), devido a proposta de demissão coletiva dos ministros, a proposta de substituição dos comissionados indicados pelo PT e aos afagos explícitos dirigidos ao PSDB.
Comecemos por este último ponto.
O senador Tião Viana é do Acre, irmão do governador reeleito Jorge Viana. Suas boas relações com o PSDB local e com o então presidente Fernando Henrique Cardoso vem de longe. Mas muito tempo se passou desde então e vários dos que defendiam uma relação "de alto nível" com o PSDB mudaram de idéia. Entre eles, o atual presidente nacional do PT, José Genoíno.
Mas Tião Viana não mudou de idéia. Mesmo neste momento, em que o PSDB está atacando pesadamente o PT, o governo e o presidente da República, o parlamentar acreano acha motivos para elogiar o senador Arthur Virgílio e o ex-presidente Fernando Henrique.
No primeiro, Tião Viana elogia sua postura de "equilíbrio, de responsabilidade política e de responsabilidade para com o País".
Alguém pode debitar isto ao fenômeno do cretinismo parlamentar, que inclui lances patéticos como a troca de insultos entre o deputado Roberto Jefferson e o liberal deputado Mabel, sempre precedidos por um "Vossa Excelência".
Nos parece, entretanto, que o senador Tião Viana tem motivos mais consistentes para elogiar o senador Arthur Virgílio. Para ele, na fala do tucano amazonense, "havia, sim, um foco de crítica e de ataque à circunstância, mas não havia uma tentativa de desestruturar o Estado dentro do Governo".
Esta relevante preocupação com a "desestruturação do Estado" fica mais clara, quando se vê os elogios dedicados ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
O senador Tião Viana chama de "memorável" um artigo do ex-presidente, publicado no jornal O Globo, no dia 5 de junho. E embarca, com satisfação, num diálogo virtual com o grão-mestre tucano.
Segundo Tião Viana, o presidente Lula queria, sim, "o diálogo inclusive com o PSDB, que queria conversar com os partidos de oposição. No outro dia estourou o escândalo Waldomiro, e aí tudo foi por água abaixo, não se permitiu mais um caminho de diálogo".
Infelizmente, Tião Viana não faz nenhuma reflexão sobre a coincidência entre as tentativas de aproximação com o PSDB e as denúncias de corrupção contra o governo, mais exatamente contra aquele setor do governo que é contrário a esta aproximação.
Se ele fizesse alguma especulação a respeito, compreender-se-ia melhor porque --nas palavras de Tião Viana-- "o Ministro Antônio Palocci faz parte do Estado" e "está acima de qualquer dúvida, de vínculo partidário".
Mas o senador parece avesso a estas especulações e prefere somar forças à proposta, feita por Fernando Henrique Cardoso, de "restrição drástica das nomeações em cargos de confiança, o que é um entendimento da maioria dos pensadores e cientistas políticos atuais, que pode estar na origem de tudo, essa tentativa de apropriação paternalista dos espaços públicos por cargos de nomeação".
Homem prático, Tião Viana propõe materializar estas idéias da seguinte forma: que o PT demonstre "desprendimento e grandeza", colocando "à disposição do Presidente da República os cargos de Ministro". Coincidentemente, a mesma proposta feita pelo ministro Luís Gushiken, alguns dias atrás.
Claro que Palloci, "parte do Estado", não faria parte disso. Esclarecimento conveniente, que evita alguma piada involuntária sobre as relações entre o ministro da Fazenda e o Partido dos Trabalhadores. E que deixa claro quem, na opinião do senador Tião Viana, "numa hora dessas", é "imprescindível" para o presidente.
É natural que, num discurso de uma liderança ligada à saúde, surja alguma referência a termos médicos. Mas causa espécie a escolha, presente na seguinte frase: "É hora de eviscerar o Partido dos Trabalhadores sem nenhum medo, Sr Presidente. Nós somos honrados, temos história, coerência e grandeza para enfrentar qualquer crise política, mas não podemos levar nossa história para a lama da dúvida e para a lama de uma interpretação de incoerência nas responsabilidades éticas com este País".
Eviscerar tem como sinônimo uma palavra mais popular: estripar. Nada mais elucidativo sobre o turbilhão em que se transformou a cabeça de certos petistas, em particular líderes graduados do setor que hoje dirige o PT, que um senador defenda estripar sem nenhum medo (!) seu próprio Partido. 
Conhecendo os hábitos políticos de alguns, talvez a adjetivação “sem medo” esteja ligada a algo mais prosaico. Nas palavras do Senador: “no máximo em 60 dias teríamos uma transição para que o Presidente pegasse todos os supostos filiados ao Partido dos Trabalhadores em cargos de confiança e esses cargos fossem preenchidos por servidores de carreira, como foi agora nos Correios, para que se fizesse concurso público. E quando os servidores de carreira não os preenchessem, se fizesse um concurso público e se preenchesse em 60 dias isso. Com isso, estaríamos completamente livres, demonstrando a nossa responsabilidade e o incondicional apoio que damos e devemos dar ao Presidente Lula, independente de estarmos ou não dentro de um cargo ou outro do Governo”.
Não admira que este discurso tenha recebido um aparte elogioso do Senador Arthur Virgílio, inimigo declarado do governo Lula e do PT, mas que nos idos de 1998 foi considerado como aliado pelo chamado “campo majoritário” do Partido.
Disse Arthur Virgílio: “Senador Tião Viana, V. Exª é o tipo do interlocutor que o Governo deve oferecer à Nação neste momento. São palavras como as de V. Exª que estimulam a que se cheguem às boas conclusões. V. Exª, por exemplo, faz justiça ao PSDB. O PSDB viveu nos últimos momentos aquele que é o pior dos mundos, como eu dizia ainda há pouco ao Senador Pedro Simon. Procurou com firmeza cobrar a instalação da CPI e a investigação dos fatos de corrupção que levam à crise. Se a responsabilidade vai de "a" até "z", quem vai dizer será a CPI. Apenas se presume que comece em "a". Não estamos falando em "z". Estamos falando em "a". Por outro lado, ficou difícil alguém reconhecer que houvesse algo puro e simplesmente de boa intenção no nosso gesto. "Ah, porque eles querem ganhar a eleição". "Ah, porque querem o Lula fraquinho". "Ah, porque eles estão querendo que não-sei-quem não suba na frente deles nas pesquisas!" "Ah, porque..." Esse "Ah, porque..." mediocriza uma relação e nos sugere que talvez tenha sido uma perda de tempo nós termos pura e simplesmente tentado mostrar para o Governo que éramos capazes de fazer algo muito mais maduro do que recebemos no passado. Ou seja, se o Governo tiver um pingo de juízo, usará mais pessoas com seu perfil para falarem à Nação, com direito a não concordarmos ou concordarmos em parte com o que V. Exª diz, mas sabendo que se trata de uma efetiva ação política visando a oferecer respostas mais nítidas e mais claras para a Nação e cumprindo o seu dever de lealdade para com o seu Partido e para com seu Governo. Ou seja, a lealdade não exige agora irracionalidade; a lealdade exige ao contrário. Exige racionalidade, exige raciocínio político frio e inteligente e efetiva compreensão dos fatos e das pessoas com a grandeza de coração de que V. Exª se reveste. Parabéns pelo discurso!”
Um discurso que merece tais elogios do inimigo, dificilmente receberia aplausos no próprio Partido. Mas é desmerecer a contribuição do Senador, criticá-lo apenas pela proposta de demissão coletiva dos ministros, pela proposta de substituição dos comissionados indicados pelo PT e pelos afagos explícitos dirigidos ao PSDB.
A verdade é que o Senador Tião Viana deu enorme contribuição ao pensamento político nacional, ao chamar nossa atenção para a ideologia transgênica –-meio tucana, meio petista-- que floresce nas franjas do chamado “campo majoritário” do PT.
Segundo a versão distribuída pelo Senado, ainda sem a revisão do orador, Tião Viana começou seu discurso afirmando que "estamos num momento difícil da vida nacional".
É verdade, estamos num momento difícil. Mas ao falar das dificuldades, o Senador não cita as condições terríveis de vida da maioria do povo brasileiro, não fala do aprofundamento da desigualdade social, não comenta a estagnação econômica continuada, não toca no prosseguimento da ditadura do capital financeiro.
Para o Senador, a "ferida aberta em todo o Brasil", a "ferida que aponta fortes momentos de aflição do povo brasileiro", é a "corrupção (...) aflorando dentro de algumas instituições públicas".
Falar da "corrupção", especialmente dos corruptos (e muito pouco ou quase nada dos corruptores) é o tema preferido da direita “moderna”
A direita brasileira utiliza, com muita freqüência, o ataque “aos corruptos & aos marajás”. Fez isso em 1989, para eleger Collor. E fez isso ao longo dos anos 1990, para deixar o povo indignado com os políticos em geral e preparar o terreno para as políticas neoliberais, pois o sub-texto daquele ataque é que a corrupção resume-se a "oferecer dificuldades, para vender facilidades".
Senador de um partido socialista, por definição contrário às políticas neoliberais, Tião Viana certamente ouviu falar disso. Mas, curiosamente, ele utiliza termos petistas, mas para desembocar no raciocínio oposto ao de nosso partido.
Segundo Tião Viana, "temos acompanhado, ao longo desses anos, ao longo de 25 anos, essa trajetória da corrupção no Brasil; a trajetória do movimento de massa, tentando livrar o Brasil desses tentáculos terríveis da corrupção".
Este interpretação, que reduz nossa luta ao tema da corrupção, que transforma o PT numa UDN de macacão, não é apenas um exagero retórico. Tião Viana, como tantos outros companheiros de nosso partido, parece não organizar mais o seu pensamento político em torno de um projeto alternativo de sociedade; ele organiza o seu pensamento em torno do propósito de fazer "funcionar melhor" a sociedade que está aí. Daí sua preocupação com as tentativas “de desestruturar o Estado dentro do Governo".
Nesse sentido, a corrupção --como a criminalidade em geral-- é interpretada como uma espécie de areia que prejudica o bom funcionamento da engrenagem.
Paradoxalmente, ao supervalorizar o tema da corrupção, o senador na verdade deixa de compreender corretamente suas causas, seu papel, seus vínculos com o sistema social capitalista, sua sinergia com o neoliberalismo.
Também paradoxalmente, ao combater a “desestruturação do Estado”, o senador acaba ajudando a desestruturar a sociedade. Pois este Estado que está aí, a cada dia fica mais claro, não está à serviço dos interesses da maior parte da sociedade. E a tentativa de reformá-lo por dentro, a tentativa de colocá-lo a serviço das maiorias, tentativa experimentada pela primeira vez no Brasil nos últimos 30 meses, está se demonstrando –para usar os termos do Senador—um caminho demasiadamente "difícil", "tortuoso, estreito".
Segundo Tião Viana, "estamos hoje na representação da política nacional tendo o Primeiro Mandatário do País, representando, em sua origem, o Partido dos Trabalhadores e agora representando o Estado brasileiro dentro da sua função de governante e guardião das instituições públicas e aquele que deve agir sob o manto efetivo dos preceitos constitucionais".
Como todo senso-comum, este esconde os maiores segredos. Recapitulemos o raciocínio do senador: na origem, Lula representava o PT; agora, representa o "Estado brasileiro", tendo a função (sic) de "governante e guardião das instituições públicas e aquele que deve agir sob o manto efetivo dos preceitos constitucionais".
Nesta pequeno raciocínio, esconde-se a fórmula mágica dos que pretendem domesticar teórica e praticamente o PT: transformar Lula em representante do Estado brasileiro. Ou deveríamos dizer: transformar Lula em Palloci (que, lembremos, “faz parte do Estado”).
Certamente o senador Tião Viana não percebe que, ao defender tal tese, sem mediações, sem nenhum tipo de contraponto, ele mata na origem toda e qualquer possibilidade de combater efetivamente a corrupção. É paradoxal, pois quem considera que a corrupção é um componente estrutural da sociedade brasileira, deveria considerar com mais suspeição o Estado. Deveria utilizar o governo como um dos instrumentos necessários para desestruturar e reestruturar o Estado; e não falar, como Tião Viana num ato falho, de "Estado dentro do Governo".
Como todo petista graduado, quando se vê em dificuldades para explicar as desventuras do presente, Tião Viana lança mão das lembranças do nosso passado. Como não podia deixar de ser, a memória é ardilosa, reconstruindo o passado a luz das crenças atuais.
Certamente por isto, Tião Viana "relê" a Vila Euclides, como parte de "uma caminhada pela disputa de poder saudável, envolvendo as forças políticas que resistiam à ditadura militar. Um momento bonito, momento que sintetizou tantos sonhos do Partido dos Trabalhadores, a razão de ser da nossa origem, que foi defender a ética na política, defender a honradez do mandato público, defender a honradez das instituições".
Tenhamos paciência: a razão de ser da nossa origem foi "defender a ética na política, defender a honradez do mandato público, defender a honradez das instituições"???
Quando uma palavra se torna lugar-comum, recomenda-se mais cuidados. "Ética", como cidadania e república, estão na boca das pessoas mais improváveis. Até Roberto Jefferson se diz preocupado com a República!!!
Fazer da “ética na política” a “razão de ser” da origem do PT é um brutal reducionismo. A "razão de ser" da origem do PT foi a luta contra a desigualdade social e política. Isso certamente inclui o combate à corrupção e medidas para democratizar o país. Mas não dá para colocar na boca do movimento popular do final dos anos 1970, início dos anos 1980, um discurso liberal em defesa da "honradez das instituições" e do "poder saudável" --seja lá o que o Senador entenda por isto.
Neste ponto do discurso estava o Senador, quando talvez sem perceber as conexões do seu próprio raciocínio, ele constata que "agora que chegamos ao poder, de repente surge um momento de corrosão, uma tempestade, querendo dizer que o PT é exatamente parte do lamaçal que afronta as instituições públicas brasileiras".
Tião Viana não percebe que o "envolvimento" do PT com casos de corrupção advém exatamente disto: chegamos ao governo, dentro de um Estado historicamente determinado, profunda e estruturalmente corrompido, numa sociedade imensamente desigual. E o que fizemos, ao "chegarmos lá"? Operamos uma completa reestruturação das instituições públicas? Propusemos a convocação de uma Assembléia Constituinte? Realizamos uma imensa auditoria? Adotamos medidas para subverter a desigualdade?
Nada disso. Optamos, na melhor das hipóteses, por um caminho de "reformas" lentíssimas, seguríssimas e gradualíssimas. E buscamos construir uma maioria política através de alianças com partidos conservadores, inclusive com aqueles envolvidos em com casos de corrupção. Não admira que esta política esteja afundando e levando junto a maioria social que nos permitiu chegar ao governo.
Este é o problema de fundo, estratégico. Mudar ministros, substituir comissionados, dizer que "nunca se combateu tanto a corrupção quando nesse Governo" ou qualquer outra afirmação do gênero passa léguas de distância do que é necessário fazer para sair da armadilha em que estamos metidos.
As idéias de Tião Viana são transgênicas: uma confluência entre o pensamento social-democrata e o pensamento neoliberal. Um, preocupado em preservar o Estado. Outro, preocupado em minimizar o seu tamanho. Ambas, deixando intocável uma ordem social que consiste na apropriação das riquezas de toda a sociedade brasileira, por interesses privados.
Deste ponto de vista, a apropriação do público pelo privado, através de negociatas feitas com empresas por ocupantes de cargos de confiança, é um detalhe. Gravíssimo, nojento, mas é um detalhe.
Muitíssimo mais grave é aquela apropriação que se faz, através da coincidência de interesses e propósitos entre o Estado e os interesses do grande empresariado.
Esta coincidência --que tem a ver com o "caráter de classe" do Estado-- não é corrupção, no sentido vulgar da palavra. Não é ilegal. Mas é o que provoca maiores danos aos interesses públicos, se por isto entendermos os interesses da ampla maioria do povo brasileiro.
Mas seguir por este caminho, colocaria em questão os corruptores (grandes empresários) e o próprio papel do Estado. Assim, nada mais conveniente para a direita (e para uma esquerda social-democrata) que restringir o foco da crítica, limitando-se ao senso comum, aceitando a pauta tucana segundo a qual o problema está no "número" (mínimo ou máximo) "necessário de dirigentes para imprimir a marca da política governamental".
Só que limitar o foco, não limita as tolices propostas. Defender que "apenas através de concurso público se ocupem cargos de confiança, porque, sendo os servidores de carreira, vamos abolir essa tentativa de apropriação e privatização do Estado", pressupõe acreditar que os “servidores de carreira” são imunes à corrupção. Quando até mesmo a presente crise teve origem numa corrupção praticada por um servidor com mais de 20 anos de carreira.
Assim, aberta a porta para o vampiro, restrito o foco da análise e das propostas, o próximo passo –depois de reduzir a presença do PT no governo— será propor a redução do próprio aparato de Estado, claro que preferencialmente nas áreas sociais, tão sujeitas ao “populismo”. Como se vê, a ideologia transgênica do senador Tião Viana acaba se transformando, mais cedo ou mais tarde, no ideário neoliberal.
Só para lembrar: a mesma Itália que fez a “Operação Mãos Limpas” caiu nas mãos de um Berlusconi. Portanto, cuidado com os estripadores, eles não sabem o fazem. Ou sabem.


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