sábado, 20 de agosto de 2011

Um PAC latinoamericano


O foco da nossa discussão é o balanço da atuação do governo Lula na área externa, de 2003 até agora. Para fazer essa discussão é necessário contextualizar: qual país, qual governo. Mas o risco é o contexto virar o principal e o tema da política externa ficar em segundo plano. Por isso vou usar uma expressão diplomática que aprendi nesse convívio: “tomarei nota” do que foi dito a respeito do país e do governo e não vou entrar nas duas discussões específicas, sobre as quais eu tenho uma interpretação um pouco distinta daquela que o Marco Aurélio e o Samuel apresentaram.
Só queria fazer um registro: o Marco Aurélio e eu somos historiadores, e é sempre um risco quando dirigentes partidários abordam a história do seu próprio partido. A verdade é que o pensamento petista sofreu um processo de empobrecimento, que não iniciou em 2003. Quem lê as resoluções do partido, percebe que há um processo de sofisticação, que se interrompe em um determinado momento, a partir do qual os temas mais programáticos, a discussão sobre os grandes caminhos seguidos pelo país, vai perdendo lugar para uma visão cada vez mais tática, na qual a formulação política passa a ser funcional, no mau sentido da palavra.
Esse não é um problema que se resolve fazendo contraposições entre o que o partido fez e aquilo que o governo deixou de fazer. Na verdade, vivemos um fenômeno que está presente em todos os processos latino-americanos: a chegada da esquerda ao governo nacional absorve energias, pensamentos, quadros e empobrece os partidos. Na prática o partido, no sentido histórico da palavra, passa a ser o governo. A Venezuela é um bom exemplo, noutros países há maior resistência a isso. No Brasil há uma vida partidária que resiste, mas o fenômeno existe.
Eu faço um balanço geral muito positivo da política externa do governo Lula. Acho que essa política antecipou a etapa que estamos vivendo, agora, no conjunto do governo. Ou seja, desde o princípio ela foi orientada para o objetivo de defender os interesses nacionais, de buscar um caminho de desenvolvimento, fortalecimento do Estado  e transformar o Brasil num dos pólos, ou parte integrante de um dos pólos de poder em âmbito mundial. Portanto, foi uma política externa impulsionada por uma visão muito crítica tanto frente ao neoliberalismo, quanto frente ao papel que os Estados Unidos jogam no cenário internacional. Idéias que até 2005 não eram hegemônicas no conjunto do governo Lula.
Entretanto, acho necessário precisar melhor qual é a natureza da política externa do governo Lula. Nós queremos que seja uma “política de Estado”, uma política amplamente hegemônica na sociedade brasileira, mas ainda não é. E ainda não é uma política de Estado, fundamentalmente porque as classes dominantes no Brasil não compartilham uma parte importante dessa política.
Nossa política externa também não é uma política de partido, inclusive no sentido de ser uma “política de esquerda”. Isto só é possível em momentos muito especiais, quando ocorrem grandes crises e processos revolucionários. Nesses períodos pode-se esperar que um Estado execute uma “política de esquerda”. Porém, nos períodos normais a política externa expressa “interesses de Estado”, interesses nacionais que são distintos dos interesses dos partidos que governam esses Estados, mesmo (ou especialmente) quando eles são de esquerda.
A política externa do governo Lula é a política externa de um Estado periférico com enorme potencial. Se a esquerda hegemonizar este Estado, esta política externa pode ter duas dimensões. Uma dimensão é proteger os interesses nacionais do país. Esses interesses nacionais muitas vezes são os interesses das empresas capitalistas que atuam no exterior ou são interesses do Estado no sentido mais amplo da palavra, um Estado capitalista, que tem um potencial “sub-imperialista” que não devemos subestimar, mascarar e nem disfarçar.
A outra dimensão da política externa do governo Lula é democrático-popular. Um Estado periférico sob hegemonia de esquerda, que busca construir uma nova ordem internacional e busca uma integração continental com viés popular e com viés democrático.
Portanto, nossa política externa é contraditória - e devemos recuperar o valor positivo da palavra contradição - porque ela expressa dois impulsos simultâneos, impulsos que têm níveis de cooperação e contradição entre si.
Desta natureza contraditória da política externa decorre que os partidos de esquerda devem ter uma dupla atitude em relação a ela: têm que defendê-la no seu conjunto contra a direita e, ao mesmo tempo, deve ter uma atitude permanente de “vigilância e pressão” para garantir que predomine o viés democrático-popular.
Em dois textos (“As diferentes estratégias das esquerdas latino-americanas” e “A política externa do governo Lula”), desenvolvo os vários aspectos que deveriam compor esse trabalho de acompanhamento de política externa por parte de um partido como o PT.
Especialmente a defesa dessa política frente aos ataques da oposição de direita e evitar que nela predominem os interesses privados “sub-imperialistas”. Às vezes isso significa defender os interesses populares versus os interesses capitalistas. Porém, às vezes se trata também de defender os interesses do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, contra os capitalistas individuais que buscam o lucro imediato e impedem uma atuação de longo prazo do Estado, mesmo naquilo que os interessa no longo prazo. Por exemplo, as concessões que foram feitas ao Paraguai e à Bolívia, no médio e longo prazo serão úteis ao grande capital brasileiro, inclusive para os que reclamaram.
Terceiro, estimular um viés latino americano e caribenho. A nossa política externa, do ponto de vista operacional, será por muito tempo uma política de integração da América do Sul, mas ela deve ter um olhar mais amplo. Neste sentido, nossa atitude no caso de Honduras é muito importante, assim como a postura do Brasil frente a Cuba.
Quarto, reafirmar qual é a natureza da política das metrópoles. Uma coisa é dizer, como fez o Samuel, que temos uma relação histórica com os Estados Unidos e continuará sendo assim pelas próximas décadas. Eles não vão desaparecer, não vão colapsar, vão continuar sendo um país importante e um Estado importante para nossas relações. Uma das decorrências disto é não assumir uma retórica bélica contra os EUA, o que ademais seria uma estupidez, dada a correlação de forças no terreno militar. Por outro lado, não se pode cair no oposto, que é naturalizar essas relações, não perceber e/ou deixar de destacar a dimensão imperialista da política externa norte-americana, bem como da política externa da União Européia.
Quinto, os partidos têm a obrigação de estimular a construção da dimensão cultural e popular de massa do internacionalismo e da integração.
Sexto, articular a política externa com o desenho estratégico de longo prazo. Isto posto, encerro minha contribuição sobre a a natureza da política externa e passo a falar dos cenários em que vamos atuar nos próximos anos e décadas.
Vivemos num período de instabilidade internacional de média duração. O ideário neoliberal colapsou, mas não será substituído no curto prazo por outro pensamento hegemônico, até porque o chamado pensamento crítico, nas suas variadas dimensões, passou 25 anos na defensiva.
A hegemonia dos Estados Unidos sofreu um golpe, mas não acabou. A hegemonia está em declínio, mas isso não significa que tenha deixado de existir e, por outro lado, não há no horizonte nenhuma outra potência hegemônica substituta, o que nos empurra para um mundo de multipolaridade. Não é porque os Estado Unidos queiram, é porque eles não podem evitar isso e não há outro que possa assumir o lugar dos Estados Unidos. Só que isso não vai ser um processo tranqüilo, vai ser um processo extremamente conflituoso. Basta ver a lentidão com que se produzem reformas na arquitetura do sistema econômico e político internacional, porque uma reforma rápida significaria perda de poder por parte das potências, que, por isso, retardam esse processo.
Há uma crise no padrão de acumulação capitalista, sem que haja uma alternativa sistêmica clara no horizonte. E, no caso latino-americano, há uma crise do neoliberalismo e do desenvolvimentismo conservador.
Temos falado muito de crise do neoliberalismo, às vezes deixando de destacar que o Brasil teve, antes do neoliberalismo, 50 anos de desenvolvimentismo, acerca do qual hoje gostamos de destacar os aspectos progressistas. Porém, nós construímos a esquerda brasileira contra o padrão dominante de desenvolvimentismo.
A batalha eleitoral de 1989 decidiu por que lado se daria a superação do desenvolvimentismo conservador e naquela ocasião foi para a direita. Ocorre que o modelo neoliberal não ofereceu uma saída de longo prazo para o Brasil e agora estamos voltando, de certa maneira, aos patamares do conflito dos anos 80: se vamos ter outro ciclo de desenvolvimento e qual é a natureza dele. Se conservadora, progressista ou democrático-popular.     
Frente a estes cenários, a política externa brasileira faz três movimentos, dois muito claros e um nem tanto.
Primeiro, ela faz um movimento por democratizar a ordem internacional, porque num contexto de crise & transição, quanto menos concentração de poder, melhor para nós podermos seguir o caminho que acharmos mais adequado.
Segundo, um movimento para participar dos centros de poder da ordem tal como ela é atualmente, seja com o objetivo de impulsionar mudanças, seja com o objetivo de preservar os nossos espaços ou o de buscar os espaços correspondentes à nossa força.
O terceiro movimento, que não considero claro, é a operação em favor de uma mudança na ordem internacional. Este movimento não está tão claro, porque quando começamos a discutir o conteúdo desta mudança, nossa reflexão se torna tática novamente.
Falta refletir mais sobre os cenários. Falamos de um processo de transição da atual para outra ordem, que não sabemos qual é, sem atentar que será um processo hiper conflituoso. Em certa medida, estamos voltando a um padrão de organização do sistema mundial que lembra o pré-1914.
Por exemplo, o tema da moeda. Foi mais “fácil” tratar desta questão, depois da 2ª Guerra Mundial, quando havia uma hegemonia clara. Hoje estamos na seguinte situação: existe uma moeda internacional, que nos causa problemas porque expressa uma hegemonia, mas como substituí-la se esta hegemonia ainda existe mesmo em declínio?
Um exemplo de reflexão tática: como enxergamos os Estados Unidos. Na esquerda, o grau de conhecimento sobre os Estados Unidos, sobre as tendências de médio e longo prazo naquela sociedade, sobre como ela opera, ainda é muito baixo. A hegemonia americana cria uma espécie de opacidade sobre seu funcionamento real. Eles nos vendem uma imagem com a qual dialogamos, entretanto, conhecendo pouco da situação real. Por exemplo, o que é que está na base de situações como Honduras, bases na Colômbia e 4ª Frota? É uma luta de poder dentro do aparato do Estado norte-americano? É a continuidade da política de Estado tradicional, independentemente de quem está na gestão? É uma sinalização de que os Estados Unidos vão buscar no médio prazo reverter o cenário internacional, utilizando a sua força militar? As três coisas?
Para concluir: qual deve ser a novidade da política externa do governo Dilma em relação ao governo Lula? A chave já está anunciada pelo próprio Lula na posse do Ministro Padilha, quando ele falou que um país como o Brasil tem que ajudar os outros – não me lembro da expressão exata. A mesma idéia está expressa pelo Samuel no livro “Desafios do Brasil numa era dos gigantes”, quando ele fala de um Plano Marshall na América Latina. Não gosto da expressão, mas o sentido geral da idéia é correto.
É preciso desenvolver uma integração que não seja assimétrica, para deter  a vocação “sub-imperialista” que se manifesta nas grandes empresas brasileiras presentes na região. Para fazer da região um pólo de poder, não apenas do Brasil ou de um pólo de poder que se apóia no seu quintal, precisamos ter uma integração baseada na elevação da capacidade e da sinergia produtiva da região como um todo.
Embora já tenhamos começado a fazê-lo, isso tem que adquirir um caráter sistêmico, tem que ser o eixo organizador da política de integração no mandato Dilma. Um eixo que não seja o comercial, não seja só a integração política, mas seja uma espécie de PAC latino-americano, para usar esta imagem com os defeitos que ela tem. 

Versão editada deste texto foi publicada no livro 2003-2010: O Brasil em transformação, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2010.

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