sábado, 26 de outubro de 2024

Papo com um conhecido

Natal, Rio Grande do Norte, segundo turno de 2024, noite de sábado, restaurante de um hotel, local e horário improvável para encontrar um cidadão que não via desde o final dos anos 1970.

A conversa foi rápida, mas merece registro. Depois das preliminares e das eleicionices, perguntei se a bucket list dele continuava a mesma.

Ele respondeu que sim. Desde a última vez que nos vimos, sua lista de desejos seguia a mesma, modestíssima, com apenas três itens: "o partido", "a revolução" e "o socialismo".

Trata-se de uma "piada interna" de alguns dos que fizemos movimento secundarista no final dos anos 1970, início dos anos 1980: a lista de coisas para as quais queríamos contribuir, antes de partir.

No caso dele, ajudar a organizar o partido, participar da revolução e contribuir na construção do socialismo.

Só isso, simples assim.

Pode soar meio estranho, mas ao menos para parte dos que vivemos naquela época, o socialismo não era visto apenas como um horizonte que nos ajudava a caminhar, mas que se distanciava de nós na mesma medida em que caminhávamos na direção a ele.

Para nós, naquela década de imensa mobilização social, o socialismo era algo bem palpável, que muitos de nós acreditávamos que poderia ser alcançado no tempo de nossas vidas. E como acreditávamos nisso, agíamos em conformidade.

O mesmo vale para a revolução. O Vietnã tinha triunfado há pouco tempo. Havia guerrilhas em vários países da região. Nicarágua e Irã, tão diferentes, viraram seus mundos de ponta cabeça em 1979. As lutas sociais eram crescentes. Embora todo mundo percebesse que estavam se abrindo espaços crescentes na chamada institucionalidade, para alguns de nós isso não tirava a revolução do horizonte. Pelo contrário, nesse caso falávamos de trilhar um caminho chileno com final feliz.

Hoje isso mudou tanto, que se alguém da esquerda brasileira colocar a "revolução" e o "socialismo" na sua bucket list, corre o risco de ser tratado como candidato à Academia de Letras.

Sendo assim as coisas, achei melhor desviar a conversa para algo mais palpável: o partido.

Mesmo me sentindo um pouco como quem pergunta "como vai a esposa", correndo o risco de ouvir "qual delas", perguntei ao cidadão como ia "seu partido". Ele respondeu que depois de uma breve militância numa organização da qual fora expulso, entrou num partido no qual seguia militando até hoje.

Não sei o que mais me surpreendeu: se a monogamia ou se o partido citado. Afinal, até onde eu sabia, não se tratava do partido mais socialista e mais revolucionário existente na praça.

Para minha surpresa, ele concordou com minhas ressalvas. E contou rapidamente três ou quatro histórias, daquelas de deixar careca de cabelo em pé, acerca das internas do partido onde ele era não apenas militante, mas inclusive dirigente.

Como não uso hábito para ouvir tanta confissão e ser compreensivo, tasquei a pergunta: mas que merda você está fazendo neste lugar? 

Ele adotou uma expressão facial que me recordou nossos tempos de movimento secundarista e disse que, primeiro, deixar de militar não era uma opção, pois isso seria militar para o inimigo; e que dentre as opções disponíveis, apesar de tudo, a dele tinha mais qualidades e menos defeitos do que as alternativas disponíveis.

Conheço de cor e salteado estes argumentos; assim, mesmo sem ter a certeza do cidadão, comecei a mudar de assunto, quando ele me interrompeu e adicionou algo que é o motivo pelo qual achei que valia a pena registrar esta conversa.

O aditivo foi mais ou menos o seguinte: somos de um tempo em que a gente entrava ou saia de um partido por razões muito nobres. Podia ser a concepção de socialismo, podia ser o programa, podia ser a estratégia, podia ser a concepção organizativa, podia ser a linha de massas, podiam ser até os pressupostos teóricos. Mas nunca, nunca, era o coeficiente eleitoral ou qualquer coisa parecida com isto.

Trocamos mais algumas palavras, mas de despedida. Ele tinha vindo a trabalho, estava indo embora, queria chegar a tempo de votar na sua cidade. Me pareceu fisicamente meio acabado, roupa amarfanhada, meio triste. Mas quando ele entrou no táxi, se despediu sorrindo e mostrando a mão com o punho cerrado. Foi quase um déjà vu: tive a impressão de estar vendo o mesmo cara com quem convivi no movimento secundarista.

É pouco provável que ele viva o suficiente para ver todos seus desejos serem atendidos. Mas sem a persistência e resiliência de centenas de milhares de pessoas como ele, aqueles e outros objetivos nunca virarão realidade. No futuro alguém poderá dizer se isto foi ou não verdade.

 


 




Nenhum comentário:

Postar um comentário