quinta-feira, 4 de abril de 2024

Com quantos atropelamentos se faz uma selva sem lei?

Antes de mais nada, um esclarecimento: tudo o que segue é apenas ficção.

E qualquer semelhança é mera coincidência.

Isto posto, imagine um partido.

Um partido de esquerda.

Ele tem um estatuto.

Um estatuto democrático.

O estatuto determina como se deve proceder para alterar o próprio estatuto.

Mas como até o artigo 142 da Constituição possui várias interpretações, há quem diga que o estatuto do tal partido permitiria que o próprio Diretório Nacional, por uma maioria de 2/3, poderia alterar  o estatuto.

Para facilitar a compreensão do que segue, admitamos a tal hipótese dos 2/3.

Pois bem: num determinado ano, no qual vão ocorrer eleições municipais, alguém tem a ideia de alterar o método pelo qual o estatuto determina como o Partido deve escolher suas candidaturas à prefeitura.

Este alguém leva o assunto para votação na executiva nacional do Partido.

Resultado da votação na executiva:  17 a favor da alteração do estatuto x 12 contra a alteração do estatuto. 

Não teve 2/3 dos votos. 

E, ademais, a votação foi na executiva, não no DN. 

Quem perdeu faz imediatamente um recurso.

Primeira surpresa: apesar da votação ter sido na executiva, apesar de não ter tido 2/3, alguém divulga publicamente, num "ofício oficial",  que a resolução fora aprovada e que a regra fora modificada.

A fake news é tão absurda, que rapidamente a informação é retificada e o assunto fica pendente de votação no Diretório Nacional.

No Diretório, o recurso contra a decisão executiva vai a voto.

O recurso é rejeitado por 47 x 36. 

Novamente não tem 2/3.

Mas novamente alguém é tomado de furor criativo e interpreta que, como recurso não precisa de 2/3, como o recurso foi rejeitado, então fica valendo a alteração.

Me inclino diante da esperteza: você não consegue 2/3 no mérito, mas consegue 2/3 para rejeitar o recurso, aprovando assim por maioria simples uma mudança que exigiria 2/3.

Mas como o diabo mora nos detalhes, a lei manda que o partido publique uma resolução. 

E esta resolução tem que ser votada oficialmente no diretório.

E a tal resolução precisa incluir a tal mudança estatutária.

E quando chega na reunião do diretório - digamos, sempre lembrando que se trata de ficção, que esta reunião tenha ocorrido na semana passada - um membro do diretório lembra que mudança estatutária precisa de 2/3.

A presidência do partido acha mais prudente tirar o tema da pauta e orienta que se façam consultas entre as partes, antes de votar.

As consultas acontecem? Desconheço.

E dias depois a votação é feita no grupo de zap do tal diretório (sim, na nossa ficção, muitas decisões são tomadas em votação feita em grupo de zap!).

Resultado da votação: 54 a favor da resolução, 26 contra.

Como o tal diretório tem 94 integrantes, dois terços seriam pelo menos 62 votos.

Portanto, desta vez não há dúvida alguma: no diretório, a proposta de alteração estatutária não teve 2/3 dos votos.

Detalhe: nesta votação no DN, algumas pessoas contrárias no mérito à alteração estatutária, preferiram votar a favor, não porque concordem com o mérito, mas porque o tribunal eleitoral exige que se publique a tal resolução numa data determinada.

Obviamente, sabendo da controvérsia, teria sido mais prudente levar a voto a tal resolução um mês antes. Mas, sabe-se lá por qual motivo, a resolução foi levada a voto dias antes do prazo fatal.

Seja como for, o fato é: a resolução não teve 2/3.

E sem 2/3 não tem como alterar o estatuto.

Apesar disso, por incrível que possa parecer, a secretaria nacional de organização do tal diretório começa a colher assinaturas para publicar oficialmente a norma.

Obviamente, vários integrantes do diretório já avisaram que não vão assinar.

Isto posto, sempre lembrando que se trata de uma ficção, resta a pergunta: quantas vezes um estatuto precisa ser atropelado, até que o dia-a-dia de um partido vire uma selva sem lei?

Concluo esta ficção satisfeito pelo fato de militar num partido onde nada disso nunca aconteceria.




2 comentários:

  1. Se for atropelado por um Porsche, só uma vez bastará para assassinar a vítima sem maiores consequências!

    Ainda na esfera da ficção, poderíamos associar o Porsche aos atropeladores que tenham (não o maior poder econômico, como na realidade recente do trânsito) o suposto maior poder advindo de suas eleições ou nomeações para cargos no Estado Republicano do país!🙄

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  2. Nonada. Como se trata de ficção assumida e juramentada, nem é caso de esquentar a mufa e ficar matutando se é, por assim dizer, uma “fiction à clef”.
    Porém, contudo, todavia e sem embargo, peguemos o mote e vamos às ficções.
    Eis uma que já foi incorporada ao folclore político de Pindorama: o Partido dos Trabalhadores é uma agremiação democrática e socialista, dedicada à defesa das classes trabalhadoras.
    ...
    Papo sério, curto e grosso: quantos atropelamentos mais suportarão certos comunistas acomodados no PT?
    (Jucemir Rodrigues da Silva)

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