terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Haddad e o “day after”

Ao menos no meu meio, está tendo muita repercussão a entrevista concedida pelo companheiro Fernando Haddad ao jornal O Globo.

Tanta repercussão, que não me restou opção senão ler a dita cuja. Como não sou assinante, nem pude comprar a versão impressa, pedi a uma companheira que me enviasse a versão digital que está disponível. É com base nesta versão (reproduzida ao final) que farei os comentários a seguir.

Segundo Haddad, existiria “consenso dentro do PT e da base aliada” sobre a candidatura Lula presidente em 2026. Embora “consenso” seja uma palavra que dá azar, é verdade que dentro do PT ninguém defenderá outra candidatura. Mas dentro da base aliada, já não tenho tanta certeza. Afinal, se a situação econômica, social e política em 2026 estiver igual ou pior do que a foi em 2022, é possível que alguns “aliados” pulem fora do barco.

Como a pauta do Globo parece ser a de cravar Haddad como "sucessor" de Lula, o jornalista insistiu: “Mas em algum momento o presidente precisará de um sucessor”.

Não sei exatamente o que Haddad respondeu, afinal o que estamos lendo é algo editado pelo Globo. Mas a resposta publicada foi a seguinte: “O Lula foi três vezes presidente. Provavelmente, será uma quarta. Ao mesmo tempo que é um trunfo ter uma figura política dessa estatura por 50 anos à disposição do PT, também é um desafio muito grande pensar o day after. Eu não participo das reuniões internas sobre isso. Mas, excluído 2026, o fato é que a questão vai se colocar. E penso que deveria haver uma certa preocupação com isso. Porque a natureza da liderança do Lula é diferente da de outros fenômenos eleitorais. O bolsonarismo tem uma dinâmica muito diferente”.

A resposta editada tem vários problemas. O que mais me surpreendeu foi, digamos, a inusitada falta de etiqueta. Entretanto, o problema mais grave é reduzir Lula a um “fenômeno eleitoral”, embora “diferente”.

Lula não é um fenômeno “eleitoral”, muito antes pelo contrário. Ele é a principal expressão de um fenômeno político-social: a fortaleza da esquerda brasileira, desde os anos 1970 até hoje.

Graças a esta fortaleza, uma candidatura petista venceu 5 das 9 eleições presidenciais realizadas desde 1989. E uma candidatura petista ficou segundo lugar nas 4 eleições presidenciais que perdemos.

Graças a esta fortaleza, depois de eleger e reeleger Lula, elegemos por duas vezes Dilma presidenta da República. Sem falar que levamos Haddad ao segundo turno, nas condições dificílimas de 2018. E vencemos de novo em 2022.

Como Lula não é um fenômeno “eleitoral”, a chamada “questão sucessória” precisa ser posta, penso eu, em outros termos: o de como fortalecer, do ponto de vista ideológico e organizativo, a classe trabalhadora, as esquerdas, o Partido dos Trabalhadores. Fortalecimento que, obviamente, está diretamente vinculado ao desempenho global do governo federal.

Se tivermos êxito neste fortalecimento, como tivemos em 2010 por exemplo, a denominada “questão sucessória” não será um problema.

Mas se aceitarmos a interpretação que reduz Lula a um “fenômeno eleitoral”, aí entraremos num labirinto sem saída. Entre outros motivos porque, no limite, Lula só tem e só terá um.

Talvez percebendo que Haddad deixou o flanco descoberto, o jornalista do Globo insistiu: “O senhor pensa na possibilidade de um dia ser sucessor do presidente Lula?”

Haddad respondeu que não pensa nisso. E contou ao Globo a versão dele acerca da sua própria escolha como vice, em 2018. Certamente Haddad tem muito mais propriedade para falar daquele momento; quanto a mim, do pouco que presenciei, tenho uma lembrança um pouco diferente.

Lembro, por exemplo, de uma reunião em que foi lida uma carta de Lula. Nesta carta, Lula apontava três nomes em que pensou, para ocupar sua vice: Gleisi Hoffmann, Jaques Wagner e Fernando Haddad.

Salvo engano da minha parte, Lula dizia que ele preferia que Gleisi ficasse na presidência do Partido e, também, informava que Jaques não aceitava ser candidato a vice-presidente da República.

Fica para outra hora contar o que foi dito -ou melhor, o que me lembro ter sido dito - naquela reunião, em que todas as pessoas participantes opinaram acerca do nome sugerido.

Voltemos à entrevista.

O jornalista do Globo, talvez não inteiramente convencido da resposta de Haddad (“não penso nisso”), provocou: O PT aprovou recentemente um documento que fala de ‘austericídio’ (suicídio econômico por políticas de cortes de gastos), de uma corrente encampada pela presidente Gleisi Hoffmann. Quem faz mais oposição hoje ao senhor, o PT ou o ministro da Casa Civil, Rui Costa?

Novamente, não sei qual foi a resposta realmente dada por Haddad. Mas a resposta publicada é questionável, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista da etiqueta.

Convenhamos, do mesmo jeito que disse “eu não penso”, Haddad poderia ter dito algo simpático, pelo menos acerca do PT.

Ao contrário disso, Haddad caiu na provocação e (sempre segundo a versão editada) teria dado a seguinte resposta: “Olha, é curioso ver os cards que estão sendo divulgados pelos meus críticos sobre a economia, agora por ocasião do Natal. O meu nome não aparece. O que aparece é assim: “A inflação caiu, o emprego subiu. Viva Lula!” E o Haddad é um austericida. Então, ou está tudo errado ou está tudo certo. Tem uma questão que precisa ser resolvida, que não sou eu que preciso resolver. Não dá para celebrar Bolsa, juros, câmbio, emprego, risco-país, PIB que passou o Canadá, essas coisas todas, e simultaneamente ter a resolução que fala “está tudo errado, tem que mudar tudo”.

Imagino que Haddad não deva ter tempo para ficar, pessoalmente, fiscalizando os cards natalinos divulgados pelos seus “críticos”. Mas não é preciso ser “crítico” para escrever “Viva Lula” e não citar o nome de Haddad. Se alguém tinha a expectativa de que houvesse uma torrente de cards assim, então este alguém “tem uma questão que precisa ser resolvida”. A não ser, claro, que alguém esteja defendendo Haddad como candidato em 2026...

Mas o problema acima é um detalhe. O mais grave mesmo é o seguinte raciocínio: “ou está tudo errado, ou está tudo certo”. Quero crer que Haddad não falou algo tão maniqueísta. Pois é óbvio que não está “tudo certo”, nem tampouco está “tudo errado”, nem na economia. 

Este é o sentido, aliás, da resolução aprovada pelo Diretório Nacional do PT, na sua reunião de 8 de dezembro: uma análise que buscou ser equilibrada e que, se merece críticas é por ter sido demasiado generosa, do meu ponto de vista. 

Mais a respeito da resolução pode ser lido aqui:  Valter Pomar: Saiu no dia 11 a resolução do dia 8

Ou pode ser ouvido aqui: Episódio 356: Análise da resolução do DN e o final do ano de 2023 - Em tempos de guerra, a esperança é vermelha | Podcast on Spotify

Obviamente, quem pensa de forma maniqueísta, atua na base do “pegar ou largar”. Atitude que me lembra um debate ocorrido na época em que Palocci era ministro da Fazenda e o companheiro Mercadante teve a ingrata tarefa de defender a política econômica de então, numa reunião do Diretório Nacional do PT. 

Durante o debate, um cidadão questionou Mercadante mais ou menos assim: “ok, entendi a lógica da taxa de juros ser alta, mas precisa ser tão alta? Precisa ser exatamente esta? Não podia ser alguns pontos menor?”

Tantos anos se passaram e fico com vontade de fazer pergunta semelhante para o companheiro Haddad: precisa ser déficit zero?

O repórter do Globo insistiu: “Mas isso atrapalha de alguma forma?”

A resposta de Haddad, se é que foi essa mesma, merece ser emoldurada. Aqui vai: “Eu fui criticado no MEC, mas virei o melhor ministro da Educação da história do país, depois que deixei o MEC. Melhor prefeito da história de São Paulo, depois que deixei a prefeitura. Tomara que aconteça a mesma coisa agora (como ministro da Fazenda)”.

Não sabia da existência desse ranking. Seja como for, eu também espero que Haddad seja o melhor ministro da Fazenda da história republicana, desde 1889. Mas de nada adianta ganhar o troféu da história e perder as próximas eleições. E o ponto é: o Novo Arcabouço Fiscal, em particular o déficit zero, não contribuem nesse sentido. 

Além disso, ambos – NAF e déficit zero – seguem prisioneiros de uma lógica que não contribui no desencadeamento de um ciclo de desenvolvimento compatível com as necessidades da maioria do povo brasileiro e com as urgências da época em que vivemos.

Depois a entrevista trata das relações de Haddad com Rui Costa, com o companheiro Padilha, com Arthur Lira e com Rodrigo Pacheco. Pulo esta parte da entrevista.

A parte final da entrevista trata da Argentina. Como já disse e volto a repetir, não sei se a entrevista publicada distorceu algo que Haddad disse. Espero que sim, afinal não vejo por qual motivo ter “dúvidas” sobre a “eficácia” de “um pacote ultraortodoxo para a situação que a Argentina enfrenta hoje”, “se o povo vai aguentar e se vai produzir os resultados almejados”.

Talvez a cautela se deva à diplomacia. Mas a situação argentina é dramática. E o trágico é que os erros do peronismo contribuíram, e muito, para a vitória dos austericidas. Como errar faz parte, recomenda-se pelo menos não tentar interditar o debate. 

(sem revisão)


ps das 23h15. acabam de me enviar a entrevista na íntegra, aparentemente tem o dobro do tamanho do texto abaixo. Havendo tempo e motivo, comentarei depois.






 

SEGUE A ENTREVISTA, OU MELHOR, A VERSÃO PARCIAL A QUE TIVE ACESSO

 

PT não pode celebrar resultado e achar tudo errado, diz Haddad

Ministro afirma que partido tem que começar a pensar em sucessor de Lula: 'Excluído 2026, o fato é que a questão vai se colocar'

Aprovação de reformas, boa relação com lideranças do Congresso e números da economia acima do esperado. O desempenho de Fernando Haddad à frente do Ministério da Fazenda o coloca como possível sucessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na visão de economistas, parlamentares e cientistas políticos.

Indagado sobre o tema em entrevista exclusiva ao GLOBO, Haddad diz que o nome de Lula é consenso no PT para 2026, mas alerta que o partido precisa começar a se preparar para essa transição, porque o problema “vai se colocar” na eleição seguinte.

Ele nega que almeje o posto, diz que disputou a Presidência em 2018 por uma questão atípica, já que Lula estava preso, e rebate com ironia as críticas feitas por petistas em redes sociais à condução da política econômica: “Nos cards de Natal, o que aparece é assim: ‘A inflação caiu, o emprego subiu. Viva Lula!’ O meu nome não aparece. Haddad é um austericida”, afirma.

O senhor teve atuação decisiva para o governo este ano com a aprovação da agenda econômica no Congresso. Muita gente diz que isso o coloca como possível sucessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Como avalia essa ideia?

Acredito que existe consenso dentro do PT e da base aliada sobre a candidatura do presidente Lula em 2026. Na minha opinião, é uma coisa que está bem pacificada. Não se discute.

Mas em algum momento o presidente precisará de um sucessor.

O Lula foi três vezes presidente. Provavelmente, será uma quarta.

Ao mesmo tempo que é um trunfo ter uma figura política dessa estatura por 50 anos à disposição do PT, também é um desafio muito grande pensar o day after.

Eu não participo das reuniões internas sobre isso. Mas, excluído 2026, o fato é que a questão vai se colocar. E penso que deveria haver uma certa preocupação com isso.

Porque a natureza da liderança do Lula é diferente da de outros fenômenos eleitorais. O bolsonarismo tem uma dinâmica muito diferente.

O senhor pensa na possibilidade de um dia ser sucessor do presidente Lula?

Eu não penso. E só passou pela minha cabeça em 2018 porque era uma situação em que ninguém queria ser vice do Lula. E aí, um dia, ele falou: “Haddad, acho que vamos sobrar só nós dois”. Dentro da cadeia. Eu disse: “Pense bem antes de me convidar, porque vou aceitar”. E acabou acontecendo.

Mas era um momento particular. Eu próprio me engajei na sensibilização do Ciro Gomes e do Jaques Wagner para que eles fossem vice. Porque entendia que eram figuras mais consensuais. Sobretudo o Jaques Wagner dentro do PT.

O PT aprovou recentemente um documento que fala de ‘austericídio’ (suicídio econômico por políticas de cortes de gastos), de uma corrente encampada pela presidente Gleisi Hoffmann. Quem faz mais oposição hoje ao senhor, o PT ou o ministro da Casa Civil, Rui Costa?

Olha, é curioso ver os cards que estão sendo divulgados pelos meus críticos sobre a economia, agora por ocasião do Natal. O meu nome não aparece. O que aparece é assim: “A inflação caiu, o emprego subiu. Viva Lula!” E o Haddad é um austericida.

Então, ou está tudo errado ou está tudo certo. Tem uma questão que precisa ser resolvida, que não sou eu que preciso resolver.

Não dá para celebrar Bolsa, juros, câmbio, emprego, risco-país, PIB que passou o Canadá, essas coisas todas, e simultaneamente ter a resolução que fala “está tudo errado, tem que mudar tudo”.

Alguma coisa precisa ser pensada a respeito, mas não tenho problema com isso.

Mas isso atrapalha de alguma forma?

Eu fui criticado no MEC, mas virei o melhor ministro da Educação da história do país, depois que deixei o MEC. Melhor prefeito da história de São Paulo, depois que deixei a prefeitura. Tomara que aconteça a mesma coisa agora (como ministro da Fazenda).

Como o senhor avalia a sua agenda com a da Casa Civil, elas são conciliáveis?

Têm sido. Há debates, às vezes, mais acalorados, às vezes, menos acalorados. Mas há a noção de que primeiro tem um árbitro. Já leva a informação organizada e aguarda o presidente tomar a decisão.

Tem uma pessoa que já comandou o país por oito anos e está completamente apto a arbitrar as divergências. Não considero ruim que haja divergências. É natural.

Mas toda discussão é para organizar a informação da melhor maneira possível para que o governo tome a decisão. A minha experiência é que, quando a informação está bem organizada, o presidente dificilmente erra.

Agora, quando está mal organizada, pode acontecer. Mas, organizando bem, ele dá o caminho.

E a articulação política do governo, o senhor acha que está bem organizada?

No que diz respeito à Fazenda, minha parceria com o ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) é antiga. Padilha trabalhou comigo na prefeitura, foi um colega de ministério. E as coisas estão acontecendo.

Não é fácil essa função. Falam que o pior emprego do mundo é o do ministro da Fazenda, mas tem concorrente, que é o do Padilha.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), recentemente ficou bravo e reclamou que tinham vazado uma informação do Planalto de que a relação entre vocês não estava tão boa.

Pois é, e nós nos falamos naquele dia. Então, não tinha procedência nenhuma.

O senhor acabou construindo uma relação muito boa com Lira. Como isso aconteceu?

Ela começou bem porque a transição de governo não foi feita pelo Executivo anterior, mas pelo Legislativo. O Executivo sumiu. Foi algo inédito. Tanto Arthur Lira quanto o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foram fundamentais neste processo.

A relação começou numa situação de crise, em que as pessoas compreenderam o que estava em jogo. Teve um episódio em que estava uma discussão e eu falei: “Nós não estamos discutindo quem vai ganhar o campeonato. Nós estamos discutindo se vai ter campeonato, porque, se a gente não se entender, a gente não chega em junho”.

Era uma situação caótica. Governadores gritando, Bolsa Família fora do Orçamento, calote nos precatórios. A gente tinha R$ 200 bilhões de problema para resolver.

A Argentina passou por uma transição também difícil, e o senhor chegou a demonstrar preocupação com a vitória do candidato Javier Milei. Como vê o início deste governo?

A preocupação não era em relação à política interna da Argentina, que é um país soberano e escolhe democraticamente os seus presidentes. Eu estava preocupado com o Mercosul. E até agora não houve, do meu conhecimento, nenhuma sinalização a esse respeito.

Até porque estávamos, à época, negociando com a União Europeia, tinham muitas coisas encaminhadas que poderiam ser colocadas em risco. Mas tenho dúvidas sobre a eficácia de um pacote ultraortodoxo para a situação que a Argentina enfrenta hoje.

Se o povo vai aguentar e se vai produzir os resultados almejados. Mas é uma preocupação de um observador que deseja o bem do país vizinho. Estou acompanhando à distância e com os filtros, não estou lá vendo medida por medida.


Um comentário:

  1. Os interesses escusos da Globo em insistir na pergunta sugere atenção. A mídia elege, enaltece ou destrói, não por reportar fatos. Os q patrocinam têm interesses diversos menos o bem estar social.
    Sobre quem assume o The Day after, os movimentos orgânicos superaram a fase embrionária e tomam forma de senso comum: N podemos delegar a um a obrigação de todos.

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