O texto a seguir é uma versão revisada da exposição feita em atividade promovida pela Central Única dos Trabalhadores acerca do papel das Forças Armadas no golpe de 2016 e nos acontecimentos posteriores, até e inclusive o governo Bolsonaro. Grande parte da exposição e, portanto, deste texto, reproduz afirmações contidas em uma nota emitida pela direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda, acerca das declarações do general Pujol, nota cujo redator principal foi o jornalista Pedro Estevam da Rocha Pomar. Posteriormente à redação deste texto, intensificou-se o debate acerca do envolvimento da cúpula das Forças Armadas no golpe iniciado em 2016. A esse respeito, recomendo ler os artigos De quem é a culpa?[1] e Imunidade, impunidade e imprudência[2].
Mas quando se trata do papel dos militares na política, há uma certa
naturalização.
Para não dar exemplos antigos, relato apenas que, nas últimas semanas,
ouvi um cidadão bem de esquerda afirmar que não seria marxista negar o papel
das Forças Armadas na política, pois afinal Karl Marx afirmava que o Estado é
um instrumento da classe dominante, assim como Max Weber apontava que a
essência do Estado é o monopólio da violência, Clausewitz que a guerra é a
política conduzida por outros meios e por aí vai, sem falar que Chávez defendia
a aliança cívico-militar na Venezuela, logo, deveríamos aceitá-la aqui
também.
E, na sequência, ouvi um ex-governador dizer que é preciso chegar a um
acordo com os militares, acordo que deve partir do fato de que eles “nunca”
farão uma autocrítica em relação ao Golpe de 1964.
Enfim há, digamos, uma certa “confusão” quando se debate o assunto na
esquerda. Não apenas existem diferentes posições teóricas, mas também diferentes
interpretações históricas, políticas e programáticas.
Um exemplo disso foi a reação de setores da esquerda às recentes
declarações do comandante do Exército, general Edson Pujol, de que as Forças
Armadas são “instituições de Estado” e não “de governo”; de que as Forças
Armadas não têm partido; de que as Forças Armadas não pretendem “fazer parte da
política governamental ou do Congresso Nacional”, e ainda, de que “a política”
não deve entrar nos quartéis[3]. Uma parte da esquerda
simpatizou com essas declarações a ponto de querer cumprimentar o general.
Vamos começar pelo começo: a ideia de que uma determinada política
pública, uma determinada instituição pública, é ou deveria ser “de Estado”,
esta ideia tem livre trânsito em amplos setores da esquerda. O pressuposto é
que o Estado seria neutro e, portanto, uma política de Estado seria neutra,
estaria acima da política, acima da luta de classes.
Assim, o SUS e a Educação Pública seriam políticas públicas,
permanentes, com um conjunto de tarefas que devem ter continuidade,
independentemente de quem é o governo eleito. E o bom senso nos diz que deveria
ser assim mesmo. Mas quando descemos das nuvens da “teoria-de-como-as-coisas-deveriam-ser-para-que-elas-fossem-ótimas”,
para as profundezas do inferno, onde “as coisas-são-como-elas-são”, o que é que
percebemos?
Percebemos que os governos interferem brutalmente em algumas políticas
de Estado com o intuito de atacá-las, enquanto fazem de tudo para preservar o status quo de outras políticas de
Estado.
E por que é assim? Por que a classe dominante tem dois pesos e duas
medidas? Será que é porque a classe dominante é incoerente? Penso que o motivo
é outro e é bem óbvio: o Estado é da classe dominante, foi criado por ela e
para ela, ao longo de séculos de conflitos e lutas. E a classe dominante sabe
muito melhor do que nós distinguir quais das instituições e políticas de Estado
têm a ver com os interesses de manutenção desta dominação. Sabe, portanto,
quais instituições e políticas devem ser protegidas tanto dos conflitos entre
os diferentes setores da classe dominante, assim como devem ser protegidas das
interferências indevidas, indevidas bem entre aspas, da classe trabalhadora.
É o caso do Itamaraty, do sistema judiciário, das forças de segurança
pública e das Forças Armadas. Nestes casos, falar de “política de Estado” é a
senha para dizer: não deixem a plebe interferir na condução dessas políticas.
Argumentar que não deve existir interferência popular nestas
instituições é algo fácil de fazer numa monarquia absolutista ou numa ditadura
militar. Mas argumentar isso numa democracia, onde supostamente prevalece a
soberania popular, exige alguns cuidados. E é exatamente neste ponto que a
categoria “política de Estado” tem seu papel.
Afirmam coisas do tipo: as Forças Armadas seriam uma política de Estado
e por isso não deveriam sofrer interferência de nenhum governo. Não porque
estas instituições são decisivas para a dominação de classe, não porque é
preciso manter o povo do lado de fora, nada disso seria politicamente correto
ou de acordo com a boa consciência liberal. Assim, afirma-se: “são políticas de
Estado”. Ou como disse o ministro Tarso Genro, na época do golpe: a Polícia
Federal é uma instituição de Estado e, portanto, não deve sofrer a interferência
do governo. E aí vem a pergunta: se o governo não pode controlar, quem pode? A
própria corporação? Deus?
Cabe também outra pergunta: e o que acontece se o pressuposto estiver
errado? O que acontece se o Estado não for neutro? Nesse caso, quando a
esquerda assume como sua a ideia de que determinadas políticas são “de Estado”,
ela na prática está assumindo que uma parte do Estado tem o direito de
controlar a outra parte, tem o direito de controlar a sociedade. E é isso que
conduz a aceitar, ou pelo menos naturalizar, excrescências como o Artigo 142 da
Constituição, conduz a aceitar que crimes militares sejam julgados por uma
Justiça Militar, conduz a aceitar uma “razão de Estado” que justifica e protege
os crimes cometidos por agentes do Estado e assim por diante. A tolerância da
esquerda frente às atrocidades e frente à própria existência da Polícia Militar
– que é a força policial mais letal do mundo inteiro – é prova cabal dessa
visão distorcida acerca do que é o Estado.
Vocês devem conhecer a frase famosa segundo a qual, se a essência fosse
igual a aparência, não haveria ciência. Pois então: frente ao governo
Bolsonaro, as já citadas declarações do comandante do Exército soam para
algumas pessoas como se fossem afirmações progressistas e democráticas. Afinal,
elas estariam querendo dizer que as Forças Armadas não vão se colocar a serviço
do governo Bolsonaro. E como o governo Bolsonaro é o que é, alguns bateram
palmas para Pujol.
Proponho um exercício: se o governo Bolsonaro fosse uma ditadura militar,
Pujol diria isto? Óbvio que não. Ou bem ele daria um golpe dentro do golpe ou
bem seria demitido, como aconteceu com o general Sílvio Frota, demitido por
Geisel.
Ademais, pergunto: haveria governo Bolsonaro sem que as Forças Armadas
tivessem conspirado e operado abertamente pelo impeachment, pela condenação e prisão de Lula, pela interdição da
candidatura presidencial de Lula, pela eleição do “Mito”?
Óbvio que também não. O apoio dos militares não foi causa suficiente,
mas foi uma razão necessária do governo Bolsonaro. Sem falar nos milhares de
militares que estão espalhados por toda a máquina de governo.
Portanto, quando Pujol diz que as Forças Armadas são “instituições de
Estado” e não “de governo”; que as Forças Armadas não têm partido; que as Forças
Armadas não pretendem “fazer parte da política governamental ou do Congresso
Nacional”; que “a política” não deve entrar nos quartéis... quando fala tudo
isso, Pujol está dizendo que o governo Bolsonaro não manda nos militares, mas
sim que os militares é que tutelam o governo Bolsonaro.
Por isso é doloroso saber que importantes dirigentes da esquerda
brasileira pretendiam sair em defesa de Pujol contra Bolsonaro, sem perceber
que na prática isto seria defender o princípio da tutela militar sobre a soberania
popular.
Na briga entre Pujol e Bolsonaro, devemos ser a favor da briga. Não só
no terreno da prática, mas também no terreno da teoria, digamos assim.
A noção de que o Estado é neutro, a noção de que determinadas políticas
são políticas de Estado e, portanto, não podem sofrer interferência popular,
tem que ser substituída por outra noção: a de que o Estado não é neutro, a de
que precisamos de outro Estado, a de que todas as políticas (permanentes ou
não) devem ser controladas pelo povo.
Aceita esta outra noção, fica claro qual o papel que as Forças Armadas
exerceram na política ao longo do Brasil República: desde a proclamação da
República por Deodoro até as declarações de Pujol, as Forças Armadas não
serviram para defender a nação contra os inimigos externos; serviram para
defender os interesses da classe dominante, seja contra frações desta própria
classe, seja contra seus inimigos internos.
Claro que houve contradições no interior das Forças Armadas. Para que
uma Igreja funcione, é preciso que a maior parte dos seus líderes acredite em
Deus. Para que as Forças Armadas cumpram seu papel, é preciso que a maior parte
de seus generais e coronéis acredite na sua “missão constitucional”. Isto, mais
as diferenças na composição social entre alto oficialato e praças, mais os
conflitos no interior da classe dominante, mais os conflitos entre teoria e
prática, tudo isto produz contradições.
No caso brasileiro, estas contradições foram particularmente intensas
nos anos 1920 e 1930. As contradições no interior da classe dominante, e desta
com os setores populares, refletiram intensamente nas Forças Armadas, dando
origem ao tenentismo e levando uma parte dos tenentes em direção ao comunismo.
Assim como criando uma tensão entre uma tendência “intervencionista na política”
e outra tendência “profissional”, ambas existentes nas Forças Armadas. Notem
que, no Brasil, geralmente os profissionais e a direita política se unem contra
a esquerda; enquanto raramente os profissionais se unem com a esquerda, contra
a direita política. Talvez isto tenha ocorrido no contragolpe do marechal
Henrique Lott contra Café Filho em 11 de novembro de 1955.
Mas, à medida que a classe dominante cerra fileiras, diminuem as
dissidências na cúpula das Forças Armadas. Foi o que ocorreu em 1964. Os
militares golpistas tornaram-se hegemônicos internamente, e liquidaram a
esquerda militar ou à bala, como aconteceu com o tenente-coronel Alfeu
Monteiro, ou com perseguições e punições.
A ditadura militar representou o ápice da participação das Forças Armadas
na política. As atrocidades que cometeu, o sangue que derramou e as medidas
institucionais que adotou deixaram sequelas e cicatrizes profundas na sociedade
brasileira. Entre as medidas, cito duas, muito importantes para o debate atual:
1) o expurgo em massa da esquerda militar; 2) o aprofundamento da militarização
da segurança pública através das PMs.
A ditadura militar chegou ao fim por diversos motivos. Ela foi
derrotada. Mas não foi derrubada. Os militares se retiraram “em ordem”,
garantindo a proteção para os seus, por exemplo com a chamada Lei da Anistia.
Que não foi um pacto. Prevaleceu uma posição, que não apenas livrou de punição
os agentes do Estado que cometeram crimes, como os livrou de julgamento e da
necessidade de reconhecer os crimes que cometeram. Portanto, puderam continuar
cometendo, de maneira secreta, reservada, indireta (através das PMs) e
criminosa (através dos esquadrões da morte, avôs das milícias).
Por óbvio, o fim da ditadura militar, em 1985, não representou o fim da
atividade política dos militares. Eles influenciaram o governo Sarney,
reprimiram brutalmente a greve da Companhia Siderúrgica Nacional de 1988 – o
que resultou no assassinato de três operários pelo Exército – e fizeram forte
pressão sobre a Assembleia Nacional Constituinte (na verdade, um Congresso
Constituinte) para que as polícias militares não fossem extintas e para que
fosse incluído o Artigo 142, segundo o qual as Forças Armadas “destinam-se à
defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem”.
As Forças Armadas atravessaram os governos Collor, Itamar e Fernando
Henrique sem que a ex-esquerda tucana e sem que o petismo enfrentassem para
valer a chamada questão militar.
Todo mundo sabia que o problema existia, mas todo mundo agia como se não
houvesse um ogro na sala de jantar. Duas provas de que havia um ogro:
Bolsonaro, que iniciou sua trajetória política em 1990; e o massacre do
Carandiru, em 2 de outubro de 1992, baseado na política dos “direitos humanos
para humanos direitos”.
Qual era a aposta dos que fingiam não ver o ogro? Penso que havia uma
dupla aposta. Primeiro, a de que a mudança na situação mundial, com o fim da
URSS, levaria os Estados Unidos a recuarem da posição de respaldar a interferência
militar na política; e sem esse respaldo, o golpismo minguaria. Segundo, que a
mudança geracional, acompanhada de uma política de valorização financeira e
técnica das Forças Armadas, levaria a instituição a se profissionalizar e se
afastar da interferência política.
As duas apostas foram plenamente testadas durante os governos Lula e
Dilma. E quem apostou deu com os burros n’água. Primeiro, porque a situação
mundial se alterou e os EUA logo voltaram ao modo golpista e intervencionista
que o caracteriza. Aliás, depois da crise de 2008 houve mais do que isso:
ressuscitou-se a lógica da chamada Guerra Fria. Segundo, porque não é tão fácil
comprar consciências de direita. Do mesmo jeito que as políticas sociais não
são suficientes para conscientizar amplas camadas do povo, investimentos nas
Forças Armadas não são suficientes para converter o oficialato – e
especialmente os generais – à democracia popular.
Existe uma lenda segundo a qual a guinada dos militares em direção ao
golpe foi causada pela Comissão Nacional da Verdade, a CNV, criada por lei em 2011
e instituída em 2012 no governo Dilma Rousseff. Ou seja, o atual golpismo teria
sido culpa da esquerda, que teria “esticado a corda” na relação com os
militares. Essa lenda tem a mesma dose de verdade daquela segundo a qual o
Golpe de 1964 foi necessário para impedir a instalação de uma república
sindicalista no Brasil. A melhor prova de que se trata de uma lenda é recordar
do episódio da demissão do ministro da Defesa de Lula em 2004. Eis a carta
deste ministro:
Brasília, 22 de outubro de 2004,
Estimado senhor Presidente,
Após uma reflexão mais prolongada a respeito das ocorrências desta
semana, julgo necessária uma atribuição mais efetiva de responsabilidades com
relação à nota emitida pelo Exército no último domingo.
Embora a nota não tenha sido objeto de consulta ao Ministério da Defesa,
e até mesmo por isso, uma vez que o Exército Brasileiro não deve emitir
qualquer nota com conteúdo político sem consultar o Ministério, assumo a
responsabilidade que me cabe, como dirigente superior das Forças Armadas, e
apresento a minha renúncia ao cargo de Ministro da Defesa, que tive a honra de
exercer sob a liderança de Vossa Excelência.
Tenho sido seu Ministro da Defesa com os propósitos básicos de
contribuir para a reinserção plena e definitiva das Forças Armadas do Brasil no
seio da sociedade política brasileira, de ser o enlace entre elas e o Governo,
representando-as junto a Vossa Excelência e à sua equipe, e de melhorar a sua
eficiência e a sua capacidade de ação.
Muito avançamos neste período. A título de exemplo, no que diz respeito
aos interesses das Forças Armadas, logramos reverter a dramática situação
orçamentária em que se encontravam as nossas Forças e reiniciamos os programas
para o seu reaparelhamento. O reajuste parcial da remuneração dos militares
também deu início à necessária correção dos seus vencimentos desatualizados.
O Governo cumpriu plenamente com os seus propósitos acima delineados e
tratou permanentemente as Forças Armadas com respeito que elas merecem e obteve
delas pronta resposta sempre que necessário, com o ardor, o desprendimento e o
profissionalismo que caracterizam os seus integrantes.
Foi, portanto, com surpresa e consternação, que vi publicada no domingo,
dia 17, a nota escrita em nome do Exército Brasileiro que, usando linguagem
totalmente inadequada, buscava justificar os lamentáveis episódios do passado e
dava a impressão de que o Exército, ou, mais apropriadamente, os que redigiram
a nota e autorizaram a sua publicação, vivem ainda o clima dos anos setenta,
que todos queremos superar. A nota divulgada no domingo 17 representa a
persistência de um pensamento autoritário, ligado aos remanescentes da velha e
anacrônica doutrina da segurança nacional, incompatível com a vigência plena da
democracia e com o desenvolvimento do Brasil no Século XXI. Já é hora de que os
representantes desse pensamento ultrapassado saiam de cena.
É incrível que a nota original se refira, no Século XXI, a
"movimento subversivo" e a "movimento comunista internacional".
É inaceitável que a nota use incorretamente o nome do Ministério da Defesa em
uma tentativa de negar ou justificar mortes como a de Vladimir Herzog. É também
inaceitável, a meu ver, que se apresente o Exército como uma instituição que
não precise efetuar "qualquer mudança de posicionamento e de convicções em
relação ao que aconteceu naquele período histórico".
Não posso ignorar que aquela nota foi publicada sem consulta à
autoridade política do Governo. Assumo a minha responsabilidade. Agi neste episódio
desde o primeiro momento. Informei Vossa Excelência, sugeri ações, convoquei,
no próprio domingo 17, o Comandante do Exército, entreguei-lhe um ofício que
pedia a apuração das responsabilidades e a correção da nota publicada. Segui a
orientação de Vossa Excelência e não divulguei posições e pontos de vista
individuais. Vossa Excelência sabe que em momento algum fui omisso ou deixei de
cumprir com as minhas responsabilidades no exercício das minhas funções.
Reitero, senhor Presidente, que foi uma honra trabalhar sob a sua
direção direta nestes quase dois anos. Reafirmo também a minha total lealdade a
Vossa Excelência e a minha admiração pelo notável trabalho que vem realizando
em prol do progresso do nosso país e da união de todos os brasileiros.
Respeitosamente,
José Viegas Filho
Neste episódio, o governo Lula capitulou. E capitulou sem luta. Em vez
de exonerar o comandante do Exército, um defensor da ditadura militar e
detrator de Vladimir Herzog, Lula preferiu demitir o ministro da Defesa, um
civil comprometido com a democracia. O que veio depois foi consequência disso.
Por exemplo, a rebelião das Forças Armadas contra o Programa Nacional de
Direitos Humanos 3 (PNDH 3), em 2009. Rebelião, ou motim, do qual participou o
então ministro da Defesa, Nelson Jobim, que outra lenda continua considerando
um democrata, apesar desse cidadão ter conseguido a proeza de alterar o texto
constitucional depois de ele ter sido aprovado.
Outro exemplo: a sabotagem cometida pelos comandantes militares contra
as investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), negando-se a fornecer a
documentação requisitada, e os ataques públicos de generais aos trabalhos que
ela desenvolveu e ao seu relatório final.
Tudo isso abriu caminho para o que veio a ocorrer em 2018, sob o governo
golpista de Michel Temer, quando o então comandante do Exército, general Villas
Bôas, tornou-se o principal fiador da candidatura de Jair Bolsonaro à
Presidência da República. De modo totalmente ilegal, e contando com a anuência
do Alto Comando do Exército, Villas Bôas pressionou abertamente o Supremo
Tribunal Federal para que não concedesse habeas
corpus a Lula, ilegalmente preso por obra da Operação Lava Jato.
O general Hamilton Mourão, por sua vez, defendeu uma eventual
intervenção militar e revelou que o Alto Comando havia se preparado para tal.
Nenhum chefe militar foi punido e Mourão tornou-se candidato a vice-presidente
na chapa de Bolsonaro.
Posteriormente, o general Sérgio Etchegoyen, ministro do Gabinete de
Segurança Institucional de Temer, e outros militares pressionaram e tutelaram a
ministra Rosa Weber e o Tribunal Superior Eleitoral para que não houvesse
investigação do disparo em massa de notícias falsas no Twitter
financiado por empresários apoiadores de Bolsonaro, crime eleitoral gravíssimo.
Uma vez instalado o governo atual, vários oficiais-generais das três
Armas foram nomeados ministros por Bolsonaro, e com o passar do tempo, milhares
– nunca é demais enfatizar: milhares – de militares da ativa e da reserva
foram chamados a exercer cargos na administração federal, em proporção
semelhante à registrada na ditadura militar.
A declaração do general Pujol de que tais nomeações são “decisão
exclusiva da administração do Executivo” resulta não apenas inócua, como é
cínica e hipócrita.
As Forças Armadas fizeram política, igualmente, ao pressionar o próprio
governo Bolsonaro e o Congresso Nacional a aprovar uma reforma que aumentou
expressivamente a remuneração dos oficiais e lhes concedeu um regime especial
de Previdência, que lhes garante benefícios e regalias negados ao funcionalismo
público civil e aos trabalhadores da iniciativa privada.
Assim, a profissão de fé do general Pujol no tocante a manter as Forças
Armadas como instituições distantes do governo e da atividade política,
choca-se com a realidade factual e deve ser interpretada, como já dissemos
antes, como a afirmação de que o Exército tutela Bolsonaro e não o contrário.
Claro que Pujol também busca preservar sua força do desgaste enfrentado
pelo governo Bolsonaro. Mas o relevante é que ele não se opõe às reformas
ultraliberais em curso, que sacrificam a população trabalhadora, nem se opõe à
obra de destruição do Estado brasileiro e das riquezas nacionais promovida pelo
governo Bolsonaro. Tampouco se opõe à submissão do Brasil aos Estados Unidos,
que nas condições atuais do mundo é mais ou menos como se o governo Vargas
tivesse ficado do lado da Alemanha durante a Segunda Guerra.
Sendo assim, é deveras impressionante que alguns setores da esquerda
tenham discutido a sério declarar apoio ao general Pujol em virtude de suas
declarações.
Cabe sempre lembrar que alguns anos atrás algumas lideranças de esquerda
– bem impressionadas por comentários do general Villas Bôas em entrevista
concedida à revista Veja, supostamente favoráveis às liberdades
democráticas – pretendiam escrever ao então comandante do Exército para
saudá-lo por suas afirmações. Acabaram sendo demovidas da ideia, o que lhes
salvou de um vexame frente ao papel que Villas Bôas desempenhou no tríplice
golpe, sem esquecer de pressões anteriores que exerceu sobre o governo do
Distrito Federal para que não fosse erguido o Memorial em homenagem ao
presidente Jango.
A verdade é que a doutrina vigente na prática, entre os militares,
continua sendo a da “Segurança Nacional” da ditadura militar, caracterizada,
entre outras coisas, por identificar e eliminar “inimigos internos”, que são,
na maior parte das vezes, movimentos e organizações populares, partidos de
esquerda, intelectuais e lideranças ligadas às classes trabalhadoras.
Basta lembrarmos que ainda se comemora o golpe de 1964 nos quartéis, ou
mesmo da infiltração recente de agentes do Exército em mobilizações populares
com fins de vigilância, provocação e prisão de militantes.
Portanto, é a lógica doutrinária presente entre os militares que vê como
inimigo, como uma ameaça, o povo organizado e em luta por direitos sociais,
trabalhistas, por ampliação das liberdades e por reformas estruturais.
Os governos Lula e Dilma implementaram importantes programas de
reaparelhamento e fortalecimento das Forças Armadas, de recomposição de soldos
e dos orçamentos ligados à área, na ilusão de que seria o suficiente para que
tais instituições cumprissem um papel “profissional” e interessado na soberania
nacional.
Mas isso é insuficiente: não basta impulsionar ganhos materiais,
precisamos ter uma linha política capaz de incidir e disputar seus rumos. Uma
linha política que parta do pressuposto de que as Forças Armadas realmente
existentes são autoritárias, antinacionais, sintonizadas com os interesses das
classes dominantes e hegemonizadas pelos EUA. Portanto, a nossa linha deve ser
a de alterar e modificar profundamente o caráter dessas instituições.
Foi com esse espírito que, no recente debate travado pelo Diretório
Nacional do Partido dos Trabalhadores acerca de um Programa de Reconstrução e
Transformação do Brasil, propusemos:
- revogar o Artigo 142 da Constituição Federal, frequentemente utilizado
para alegações de teor intervencionista e antidemocrático;
- extinguir as chamadas operações de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO);
- revogar as normas inconstitucionais que garantem julgamento pela
Justiça Militar de militares que cometerem crimes contra civis em operações
como as de GLO e similares, como a Lei 13.491/2017, sancionada pelo golpista
Michel Temer;
- cumprimento integral das recomendações do Relatório Final da Comissão
Nacional da Verdade (CNV) de 2014, em especial:
I) reconhecimento pelas Forças Armadas de sua responsabilidade
institucional pelos crimes cometidos durante a ditadura militar;
II) revisão da Lei da Anistia, de modo a garantir a punição dos agentes
da ditadura militar que cometeram crimes de tortura, assassinato e outros;
III) abertura dos arquivos militares;
IV) revogação da Lei de Segurança Nacional;
V) desmilitarização das polícias militares;
VI) “Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação
contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar
o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos
humanos”;
VII) “Modificação do conteúdo curricular das academias militares e
policiais para promoção da democracia e dos direitos humanos” (Capítulo 18, p.
964-967 e 971)”.
Se quisermos que as Forças Armadas realmente cumpram um papel positivo
no desenvolvimento nacional, soberano, democrático e popular, elas precisam ser
completamente reformadas.
As de hoje, como estão, continuam a respaldar golpes, tutelam um governo
neofascista, sustentam um programa neoliberal e entreguista, colocam em risco a
integração regional com a projeção de conflitos militares com países vizinhos,
ameaçam liberdades democráticas e terminantemente negam-se a reconhecer o seu
passado ditatorial e a modificarem seu papel “moderador”, tutelar do sistema
político.
Aos que têm medo de falar destes assuntos, recomendo que tenham mesmo
medo. Ter medo não é covardia. Covardia é deixar de fazer o que precisa ser
feito.
Referências Bibliográficas
CHAVES, Rogério (coord.); MERCADANTE, Aloizio
et al. Plano de reconstrução e transformação do Brasil: outro mundo é
preciso outro Brasil é necessário. Partido dos Trabalhadores (PT); Fundação
Perseu Abramo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2020.
POMAR,
Valter. Tarso Genro: De quem é a “culpa?”. Página 13, Destaque,
Nacional, 19 de jan. de 2021. Disponível em https://www.pagina13.org.br/tarso-genro-de-quem-e-a-culpa/.
POMAR,
Valter. Imunidade, impunidade e
Imprudência. Blog Valter Pomar,
19 de fev. de 2021. Disponível em http://valterpomar.blogspot.com/2021/02/imunidade-impunidade-e-imprudencia.html.
[1] Artigo (2021) disponível em: https://www.pagina13.org.br/tarso-genro-de-quem-e-a-culpa/
[2] Artigo (2021) disponível em: http://valterpomar.blogspot.com/2021/02/imunidade-impunidade-e-imprudencia.html
[3] Nota dos editores: Declarações
feitas em eventos realizados em 12 e 13 de nov. de 2020. Cf.
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2020/11/4888619-comandante-avisa-que-exercito-nao-e-instituicao-de-governo.html.
Nenhum comentário:
Postar um comentário