Cultura, política e universidades
Entendo que essa
operação possui três motivações fundamentais: a comercial, a política e a
programática. A motivação comercial está relacionada aos interesses do
empresariado da educação (remota ou não). A motivação política vincula-se ao
desejo de derrotar a oposição, muito forte em toda a comunidade educacional. A
motivação programática decorre do Brasil que a classe dominante quer construir.
Que Brasil é
esse? Uma economia primário-exportadora; alinhada com os interesses dos Estados
Unidos e do grande capital internacional; com muita “ordem” privada e pouco
“progresso” público. Uma parte da esquerda brasileira e uma parte do próprio PT
reagem ao “projeto de país” descrito anteriormente como se ele fosse um
“equívoco”, um “erro”, uma construção intelectual mal feita, um pesadelo do
qual, mais cedo ou mais tarde, vamos acordar. Mas não é nada disso. Nem se
trata apenas de um projeto reacionário, embora o futuro que ele construa seja
distópico.
Esse “projeto de
país” não é apenas bolsonarista. Compartilham dele, em maior ou menor grau, os
que acusaram a Constituição Federal de 1988 de deixar o país ingovernável (José
Sarney); os protagonistas da primeira e da segunda onda neoliberais (Fernando
Collor, Fernando Henrique); os que fizeram de tudo para enquadrar os governos
Lula e Dilma num figurino social-liberal (Palocci e seus aliados); os
construtores da “ponte para o futuro” (Temer et caterva) e do tríplice golpe
iniciado em 2016 (os partidos e parlamentares que implementaram o impeachment;
o sistema judiciário responsável pela condenação-prisão-interdição de Lula; o
oligopólio da mídia, o fundamentalismo, a extrema-direita e a coxinhada, assim
como as forças armadas, que construíram a fraudulenta vitória de Bolsonaro em
2018). Mas, acima de tudo, compartilha aquele “projeto de país” o grande
empresariado capitalista, em particular o setor financeiro, o agronegócio, o
setor minerador, os grandes exportadores e importadores.
Lembremos que a
formação social brasileira exibe uma notável continuidade: o latifúndio é uma
instituição mais antiga que a nação, a independência foi um arranjo familiar, a
abolição da escravidão foi adiada até o limite, a proclamação da República foi
uma operação oligárquica, nossas liberdades democráticas seguem tuteladas pelas
forças armadas, nossa modernização foi conservadora, nosso capitalismo nunca
foi disfuncional às potências hegemônicas, nossa classe trabalhadora é uma das
mais exploradas do mundo e... apesar disso, nunca a classe dominante brasileira
foi ameaçada por uma revolução popular. Noutras palavras, nossa classe
dominante é, sob todos os aspectos, abjeta, mas sabe o que quer e,
principalmente, sabe como manter o poder. E o que eles querem? Essencialmente,
manter as taxas de lucro. Fazer isso, num grande país há séculos em condição
periférica, implica um grande esforço: trata-se de manter taxas de lucro
capazes de atender aos interesses da classe dominante local e aos interesses do
capital internacional. Isto é mais fácil de fazer, radicalizando na opção primário-exportadora,
do que apostando em soluções mais ou menos desenvolvimentistas, que implicariam
emparelhar, em termos de competividade sistêmica, com outras grandes economias.
O cálculo é
muito simples: a questão central do capitalismo não é o investimento, nem é o
crescimento; a questão central é o lucro. Desde o final dos anos 1960 está em
curso um movimento mundial de queda nas taxas médias de lucro. Os capitalistas
compensaram isto com uma brutal ofensiva sobre o trabalho, com uma brutal
ofensiva contra a periferia do mundo e, também, com uma crescente aposta na
acumulação financeira especulativa. No caso do Brasil, a ofensiva incluiu a
crise da dívida externa nos anos 1980; incluiu as reformas neoliberais tucanas,
nos anos 1990; e incluiu o ultraliberalismo, que começou golpista em 2014 e que
não teme se aliar ao neofascismo. De conjunto, a ofensiva capitalista pretende
desfazer o que o desenvolvimentismo conservador fez entre 1930 e 1980, nos
convertendo, novamente, em uma nação extrativista-primário-exportadora e,
claro, importadora de produtos industrializados.
É importante
reiterar que, do ponto de vista da classe dominante, essa opção
extrativista-primário-exportadora é a mais lógica e a mais lucrativa. Para
começo de conversa, o Brasil possui extensas reservas de tudo que é demandado
pelas potências industriais. Ganhe quem ganhar, a batalha geopolítica em curso
no mundo, o Brasil pode fornecer seus minerais, seus vegetais, suas proteínas
etc. Em segundo lugar, já existe um excesso de capacidade produtiva no mundo e,
se a pandemia produzir um miniciclo de “substituição de importações” naquelas
potências que descobriram que não conseguem produzir nem mesmo máscaras, esse
excesso de capacidade produtiva vai crescer ainda mais. Neste cenário, a reindustrialização
do Brasil exigiria altas doses de protecionismo, muito investimento e muita
disposição para brigar com as grandes potências industriais já instaladas.
Exigiria, também, ampliar a capacidade de consumo da classe trabalhadora
brasileira. E investir pesado na integração regional. Ou seja, a classe
dominante brasileira – que usa nossos baixos salários como vantagem comparativa
– teria que abrir mão de parte dos seus lucros e correr riscos num imenso
conflito geopolítico e geoeconômico.
Cabe lembrar,
ainda, que as grandes mudanças de rumo do Brasil aproveitaram das “janelas
históricas” abertas por crises mundiais. Dois exemplos: a independência, quando
a Europa experimentava as ondas de choque da Revolução Francesa e das Guerras
Napoleônicas; e o ciclo de industrialização, iniciado quando o mundo estava às
voltas com a grande crise sistêmica ocorrida na primeira metade do século XX.
Pois bem, desde 2008 estamos em meio a uma dessas crises mundiais. Não se trata
de uma crise qualquer, mas de uma “crise sistêmica”, a conjugação orgânica de
inúmeras crises: ambiental, sanitária, social, econômica, política, nacional,
geopolítica, cultural. No plano estrutural, trata-se da crise sistêmica de uma
sociedade capitalista; no plano geopolítico, trata-se de uma disputa pela
hegemonia do mundo, entre um bloco liderado pelos Estados Unidos e um bloco
liderado pela China. A derrota dos Estados Unidos para a China pode abrir uma
nova janela para o Brasil (e para a região). Claro que o “tamanho” e a natureza
desta janela dependeriam do tamanho e do conteúdo da derrota. Mas, mesmo
derrotado, passado certo tempo, os EUA se reerguerão. E, salvo na hipótese de
uma revolução nos Estados Unidos, que altere sua conduta imperialista, mais
cedo ou mais tarde a “janela” será fechada. Portanto, uma questão é o que fazer
se e quando a janela se abrir (de novo) e enquanto ela se mantiver aberta.
A nossa resposta
deve ser: converter o Brasil e a região na quarta grande oficina &
laboratório do mundo. Ou seja, superar as bases objetivas do hiato e da
subordinação estruturais (perante os três outros polos: EUA, China e Alemanha).
A pergunta de sempre é: a classe dominante tem ou poderia vir a ter o interesse
e a capacidade necessárias para dar conta deste desafio? A resposta é: não. Por
um lado, a classe dominante local nunca teve, ao menos hegemonicamente, vocação
de dirigente de uma potência. A postura do atual presidente do Brasil é, neste
sentido, a regra, não a exceção. Por outro lado, os prazos e as condições de um
processo de reindustrialização de novo tipo (a saber, aquele capaz de nos
converter na quarta oficina & laboratório do mundo) exigiriam um grau de
engajamento popular similar ao de uma guerra; e não há engajamento sem coesão
social; e não há coesão social, sem algum nível de distribuição de riqueza,
renda e poder; e isso nunca foi, nem será aceito por uma classe dominante como
a nossa.
Portanto, no
melhor dos cenários, o de uma derrota dos Estados Unidos no conflito com a
China, teríamos que aproveitar a janela para nos converter em uma das grandes
oficinas & laboratórios do mundo, apesar e contra os “instintos animais” da
classe dominante. E um problema é: ganhe quem ganhar a disputa geopolítica
mundial, o desfecho “natural-espontâneo” da situação será o de manter o Brasil
na condição de fornecedor de produtos primários, minerais e vegetais. E
importador de produtos industriais. Portanto, caso a presente crise mundial
abra uma “janela histórica”, é possível que seja uma fresta estreita e, além
disso, aberta por pouco tempo.
Tudo isso
considerado, reitera-se que é muito mais cômodo para a classe dominante aceitar
a posição de gestora de um entreposto extrativista-primário-exportador,
abastecendo-se com produtos industriais comprados nas grandes oficinas &
laboratórios do mundo, sejam os Estados Unidos, a Alemanha ou a China.
Uma das
consequências desta prioridade primário-exportadora é a contada na fábula de
Procusto: é preciso amarrar o Brasil na cama e cortar tudo que fique para fora.
Dito de outro jeito, fazer o Brasil de 2020 caber nas roupas do Brasil de 1920.
Até porque um país extrativista-primário-exportador não conseguirá oferecer
saúde, educação, moradia, trabalho e salários para 210 milhões de brasileiros.
Aliás, do ponto de vista da lógica dominante, um país primário-exportador não
precisa oferecer nada disto. Em consequência do apagão de políticas sociais, a
classe dominante precisa tratar a chamada questão social como “caso de
polícia”, reduzindo substancialmente as
liberdades democráticas, os espaços institucionais e de auto-organização do
povo. No limite, trata-se de um padrão de desenvolvimento capitalista cujo
reflexo político é uma espécie de hegemonia negativa, baseada em altas doses de
coerção e medo: da parte da classe dominante e dos chamados setores médios
tradicionais, um imenso medo do povo; e, da parte de grandes parcelas do povo,
a tensão permanente da sobrevivência em condições de brutalidade social. Não é
de se admirar, portanto, o crescimento da violência policial – um verdadeiro
terrorismo de Estado, contra a população jovem, negra e periférica; nem causa
espanto a opção genocida do governo Bolsonaro, pela política de imunização de
rebanho no caso da pandemia de Covid-19, uma política que atingiu os objetivos
desejados: mais de 150 mil mortos até agora, um dos países mais letais do
mundo.
Nisto reside,
portanto, a causa última das múltiplas crises que vive o nosso país: a classe
dominante decidiu retomar o fio das reformas neoliberais dos anos 1990 e
reafirmar a subordinação do país ao projeto global encabeçado pelos Estados
Unidos. Para eles, o caminho do desenvolvimento é um investimento custoso,
politicamente arriscado e que pode (ou não) gerar lucros no médio prazo, lucros
menores do que os atuais; já o caminho primário ex-portador exige menos
investimentos, é politicamente menos arriscado e gera mais lucros certos no
curto prazo. Quanto ao longo prazo, bom, nisto a classe dominante é
“keynesiana”, ou seja, supõe que a longo prazo estaremos todos mortos. E na
dúvida, prefere garantir seu “paraíso” aqui e agora.
Uma questão é:
no passado, opções similares por parte da classe dominante impediram o
desenvolvimento sistêmico, mas não impediram o crescimento deformado. E tal
crescimento deformado, ao mesmo tempo que mantinha a grande maioria do povo em
condições degradantes, permitiu que setores da classe trabalhadora conseguissem
arrancar direitos sociais e políticas públicas. Um dos exemplos é, exatamente,
o ocorrido no Brasil durante o segundo governo Lula. Agora, entretanto, parece
que não estamos diante de uma “modernização conservadora”; mas sim de uma
regressão conservadora. Se o que foi exposto até agora é verdade, qual deve ser
a postura da classe trabalhadora brasileira, da esquerda e do Partido dos
Trabalhadores? E, em particular, qual deve ser a postura dos trabalhadores da
cultura e da educação?
Certamente
devemos resistir, devemos lutar por reduzir os danos. Mas parece óbvio que se
reduziu muito o espaço para mediações realmente aceitáveis. Há vários motivos
para isto, entre os quais um que precisa ser enfatizado: o extremo
enfraquecimento do setor capitalista industrial, em particular daqueles que
teriam eventual interesse numa política de desenvolvimento do chamado mercado
interno. Noutras palavras, mais do que nunca, as possibilidades de
“desenvolvimento” (e de democracia) dependem das classes trabalhadoras.
Mas qual
desenvolvimento? O dos anos 1930 a 1980? Dependente, desigual, conservador da
renda, da riqueza e poder dos de sempre? E qual democracia? A mesma democracia
liberal cujas instituições sacramentaram o golpe de 2016, a condenação e prisão
de Lula, a fraude de 2018 e a eleição do cavernícola? Há quem diga que a
correlação de forças nos sugere sermos realistas; mas o realismo implica
reconhecer que o desenvolvimentismo conservador e a democracia liberal são
objetivos utópicos. Isto porque a classe dominante não está disposta a isto. Na
atual situação interna e internacional, a única chance do Brasil trilhar um
caminho de desenvolvimento & democracia, é se a classe dominante for
derrotada e for substituída, no comando do país, pela classe trabalhadora.
Se conseguirmos
fazer isso, nosso objetivo deve ser, como já foi dito, converter o Brasil e a
região num dos polos produtivos e tecnológicos do mundo. Isso exigirá colocar o
oligopólio financeiro privado sob controle público; consolidar a pequena e a
média propriedade rurais, como base de nossa soberania alimentar; integrar todo
o Brasil com energia elétrica, cabeamento ótico, ferrovias e hidrovias;
reurbanizar nossas cidades, atendendo 100% das necessidades de saneamento,
moradia, transporte e equipamentos públicos de educação, saúde, cultura,
esportes e lazer. É a produção destes bens públicos, combinada com a ampliação
do consumo de bens privados, que se converterá no carro-chefe da indispensável
reindustrialização nacional de novo tipo.
Tudo isto
exigirá outro tipo de Estado, dirigido por outra classe social. Que para se
tornar efetivamente dominante, terá que enfrentar e derrotar a democracia
seletiva, o racismo, a mentalidade colonial, a tutela militar, a ditadura
comunicacional, o judiciário partidarizado, o parlamento oligárquico, a polícia
militarizada, a misoginia, a LGBTfobia etc. É apenas em novos marcos que será
realmente possível edificar um Estado de bem-estar social que mereça esse nome,
que efetivamente garanta saúde e educação pública, universal e gratuita;
emprego com direitos trabalhistas; salário mínimo valorizado; aposentadoria
digna. Que sustente políticas especiais voltadas para as mulheres, negros e
negras, para a juventude, setores majoritários da classe trabalhadora, que
recebem menos e trabalham mais. Que implemente políticas especiais destinadas
às populações originárias, aos amplos setores sociais vítimas de histórica
exclusão e desigualdade, às regiões submetidas a décadas e séculos de
desenvolvimento desigual. Medidas que visam, ao mesmo tempo, elevar a
produtividade, aumentar a igualdade, combater todas as formas de opressão e
dominação, ampliar a coesão social, sem as quais não derrotaremos o imperialismo,
que inevitavelmente virá contra nós.
Com maior ou
menor radicalidade, com maiores ou menores detalhes, os objetivos relacionados
são compartilhados por grande parte, senão pela totalidade da esquerda
brasileira. Acontece que um pedaço da esquerda brasileira acredita ser possível
alcançar esses objetivos socialmente revolucionários, mas sem precisar lançar
mão de métodos politicamente revolucionários. E sem falar da palavra proibida:
socialismo.
Claro que, em
tese, parte daqueles objetivos podem ser alcançados, mesmo dentro do
capitalismo e sob o Estado atual, bastando para isso mudar o governo. Mas se
olharmos tudo o que fizemos desde 1988 – por exemplo, do SUS até a previdência
pública, da política de empregos ao Bolsa Família – qual a conclusão? Primeiro:
a classe capitalista odeia, sabota e busca destruir cotidianamente tudo isto.
Segundo: dadas as restrições impostas pelos capitalistas, o máximo que
conseguimos é produzir ilhas de bem-estar num oceano de desigualdade. Nem
saneamento existe na maior parte das casas brasileiras. Terceiro, que os
governos minimamente comprometidos com os interesses populares são, mais cedo
ou mais tarde, golpeados. Vargas, em 1954; Jango, em 1964; Dilma, em 2014; e
Lula, preso em 2018.
Portanto, para
cumprir globalmente um programa democrático e popular, construir um país
verdadeiramente soberano, desenvolvido, igualitário e com liberdades, fazer
algo similar a uma “modernização” que nos equipare aos “centros”, é preciso
enfrentar o tema do poder de Estado. A defesa de uma Assembleia Constituinte se
relaciona a essa necessidade: construir outro tipo de Estado, que não seja
instrumento das “forças de mercado”, que não seja títere de poderes
estrangeiros, que não seja agente ativo e passivo do mal-estar da maioria do povo
brasileiro, que seja capaz de dirigir a conversão do Brasil numa potência
científico, tecnológica e produtiva que emparelhe com as economias atualmente
hegemônicas.
Evidentemente,
este não é o tipo de raciocínio que prevalece nas principais expressões políticas
da classe trabalhadora brasileira. Na economia, segue predominando uma lógica
de parceria público-privada, em que caberia aos governos adotar políticas que
supostamente estimulariam o “espírito animal” do setor privado. Defendem esta
postura desde social-liberais até desenvolvimentistas. Com as diferenças
conhecidas, todos dão aos capitalistas um protagonismo simplesmente bizarro,
incompatível com o porte e a dinâmica do capitalismo realmente existente no
Brasil.
Na política,
segue predominando uma lógica segundo a qual as instituições atualmente
existentes seriam capazes de construir o futuro do país. Notem que tal lógica
inclui desde os social-democratas liberais (para quem os “consensos” serão
produzidos pelo voto), incluindo ainda muitos socialistas (que geralmente
combinam voto com algum tipo de movimento e participação social). As principais
expressões políticas do povo parecem supor que o atual Estado brasileiro,
remendado para cá ou para lá, seria capaz de protagonizar um processo de reconstrução
e transformação. Na geopolítica, predomina uma lógica segundo a qual a derrota
dos Estados Unidos não é uma variável decisiva de nossa estratégia. Finalmente,
considerando o problema no plano da teoria, nas principais expressões políticas
da classe trabalhadora brasileira, segue predominando o mainstream keynesiano e
democrático-liberal. Aliás, durante o primeiro quinto do século XXI, o
pensamento de esquerda no Brasil foi hegemonizado pelo desenvolvimentismo e
pelo liberal-democratismo.
Isto cobrou seu
preço no período 2003-2016. No plano da economia, nos mantivemos nos limites
determinados pela economia capitalista dependente, pela hegemonia financeira,
pelo setor primário-exportador. No plano da política, não apenas não atacamos
as casamatas do poder, como majoritariamente não consideramos, nem nos
preparamos para reagir a um golpe de Estado de novo tipo. Hoje, alguns pensam
que os atuais governos mexicano e argentino seriam prova de que, apesar dos
golpes, o ciclo de governos progressistas e de esquerda continua, ou pode
voltar. Crença que contribui para manter “no respirador” a mesma estratégia
adotada no período anterior; cabendo perguntar por qual motivo, repetido o
mesmo filme, o desfecho agora seria distinto. Mas cabe antes disso fazer outra
pergunta: as condições internas e externas que possibilitaram o ciclo anterior
seguem existindo ou se alteraram profundamente?
Uma parte da
esquerda acredita que sim, que a crise sistêmica pode ter como resposta um
“momento social-democrata”, com a elevação dos níveis de bem-estar, de
liberdades democráticas e de relações civilizadas, claro que tudo isso dentro
do capitalismo. É por conta disto que há tanta gente agitando a bandeira do
“progressismo”, mas não fala de socialismo. Acontece que, quando olhamos para o
mundo e para as internas do Brasil e de outros países da região, vemos que a
situação se alterou profundamente. Por um lado, impactos na situação global que
afetaram, para pior, as possibilidades das economias dependentes
latino-americanas. Por outro lado, mudou a atitude da classe capitalista diante
da esquerda; e a extrema-direita militante ganhou protagonismo. Nada disso
sugere que aquele tipo de “governos progressistas e de esquerda” possa voltar.
O que pode ocorrer, aliás o que precisa ocorrer, é um “ciclo de governos de
esquerda”, dispostos a alterar muito mais profundamente o status quo.
Está claro que
isso suporá uma imensa elevação do nível cultural e técnico das classes
trabalhadoras, da imensa maioria do povo brasileiro. Suporá, também, um salto
científico tecnológico ciclópico, que só pode ocorrer através de um maciço
investimento público e através de estruturas públicas de pesquisa. Portanto,
haverá necessidade de ampliar todo o setor público, em todos os níveis, além de
realizar mudanças qualitativas profundas. Não se tratará de preparar os
estudantes para a cidadania, nem para o mercado, mas sim para as necessidades
de uma imensa revolução econômica, social, política e cultural. O que
geralmente não se diz é que uma parcela dos setores médios resiste a isto, pois
os efeitos sistêmicos deste tipo de revolução implicarão perdas relativas, não
apenas para o empresariado capitalista, mas também para os trabalhadores que
contratam outros trabalhadores (por exemplo, serviços domésticos), para os que
têm na educação superior e no serviço público um mecanismo de ascensão e
privilégio social. Aliás, parte da resistência a determinadas políticas de
ampliação do acesso às universidades, embora venham travestidas de argumentos
críticos de ultraesquerda, brotam, na verdade, da mesquinhez típica da chamada
classe média.
Vale lembrar que
a chamada classe média, ou seja, o setor melhor remunerado da classe
trabalhadora, é uma das principais fontes de recrutamento de “capitães do mato”
pela classe dominante, os administradores do processo produtivo, assim como os
administradores dos aparatos de Estado e paraestatais indispensáveis à
dominação. Mas, ao mesmo tempo, é também desses setores médios que brota parte
importante da vanguarda da esquerda democrática, popular e socialista.
Particularmente,
os professores e professoras constituem, junto com os trabalhadores da cultura
e da comunicação, o núcleo fundamental da intelectualidade orgânica da classe
trabalhadora brasileira. E os docentes universitários constituem a “elite”
desta intelectualidade orgânica. Hoje, esta “elite” está dividida sobre como
proceder. Há um bom número que nunca se comprometeu com os interesses da classe
trabalhadora; consciente ou inconscientemente, está a serviço de um tipo de
universidade que se limita a fornecer insumos tecnológicos e a formar mão de
obra para o capital. Mas, também, há um bom número que se percebe como sendo
parte da classe trabalhadora, resiste às políticas iniciadas por Temer e
aprofundadas por Bolsonaro, se divide em relação às mudanças ocorridas nos
governos Lula e Dilma, mas principalmente se divide sobre como proceder diante
da ofensiva bolsonarista. Uma parte se concentra na defesa do status quo,
chegando no limite a se encastelar na famosa torre de marfim, de onde discursa
em nome dos interesses “da classe”, mas sem com ela fazer contato real. Outra
parte percebe que a defesa do legado acumulado até aqui pela educação
brasileira, ensino superior incluído, exige dar um salto de qualidade, exige ir
além do que foi feito nos governos nacionais petistas, por exemplo reduzindo ao
mínimo as concessões ao setor privado e radicalizando ao máximo as políticas
que garantam, à classe trabalhadora, ter acesso a uma educação de boa
qualidade. Do desfecho desta disputa, em curso na “intelectualidade orgânica”
da classe trabalhadora, dependerá uma parte importante dos rumos da luta de
classes no país; embora, é claro, a parte mais importante vá depender do que
façam as grandes massas do proletariado. Para os que desejam um país realmente
transformado, nada é mais crucial do que a politização e a mobilização
radicalizadas dos setores mais explorados e oprimidos. Se uma parte da
comunidade acadêmica, não apenas compreender estas questões, mas principalmente
se colocar, na prática, a serviço dessas transformações, um grande passo poderá
ser dado.
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