terça-feira, 30 de março de 2021

Um roteiro para entender a confusão atual



Observação: este artigo foi escrito antes da demissão formal dos comandantes militares.

1.Usar o método matrioska (ou cebola): de fora para dentro.

2.Desde a crise de 2008, os Estados Unidos operam para recuperar o espaço perdido na América Latina e Caribe.

3.O apoio do governo Obama contribuiu para o golpe de 2016 e para a condenação/prisão/interdição de Lula. Agora temos Biden, que foi vice de Obama.

4.O golpe tem antecedentes históricos (1964), ensaios parciais (2005, 2013*), importantes protagonistas civis (Aécio, Cunha, Temer), envolvimento pleno das “instituições” (judiciário, parlamento), sendo que as forças armadas jogaram papel essencial em pelo menos dois momentos: no condenação, prisão e interdição de Lula; e na construção e vitória da candidatura Bolsonaro.

5.Bolsonaro não foi um acidente, não foi um raio em céu azul, primeiro porque ele é legítimo produto da ditadura militar, segundo porque sua candidatura foi planejada e sustentada pela cúpula das FFAA, terceiro porque “faz sentido” um governo militar nesse contexto em que a classe dominante opera sua “ponte para o passado”.

6.A classe dominante brasileira está nos empurrando de volta aos anos 1920, quando o Brasil era um país primário exportador, submisso ao imperialismo, onde a política era assunto oligárquico e a questão social era caso de polícia. A situação de sócia menor de interesses estrangeiros tem várias implicações, entre as quais a superexploração da força de trabalho, a permanente ameaça às liberdades democráticas da maioria do povo, a perpetuação de uma mentalidade colonizada e padrões de desenvolvimento inferiores aos das potências mundiais. Mas há uma implicação adicional: depois de meio século de industrialização (1930-1980), quarenta anos de desindustrialização estão espremendo um país de 210 milhões de habitantes no figurino estreito que o país tinha quando éramos cerca de 40 milhões de almas. O retrocesso iniciou nos anos 1980, prosseguiu nos anos 1990 por obra dos neoliberais e – depois do hiato de governos encabeçados pelo PT – o retrocesso segue desde 2016 por conta dos ultraliberais associados ao bolsonarismo neofascista. Por tudo isso, a associação entre neofascismo e neoliberalismo não ocorre por acaso: na ausência de desenvolvimento, a brutal desigualdade existente no país não encontra válvula de escape e a questão social vira caso de polícia (e de milícia). O bolsonarismo, a tutela militar, o fundamentalismo, o genocídio pandêmico e a ampliação do comércio de armas de fogo não são, portanto, raio em céu azul.

7.O governo Bolsonaro é um governo militar (presidente militar, vice-presidente militar, grande número de ministros militares, grande número de militares em todos os cargos do governo e, principalmente, a hegemonia da visão de mundo construída nas casernas). Mas o governo Bolsonaro não é uma ditadura militar clássica, primeiro porque o presidente é um cavernícola de baixo escalão castrense (afastado do exército por razões degradantes, político profissional por 28 anos, miliciano, tosco etc.); segundo porque o presidente foi eleito, ainda que numa eleição fraudada; terceiro, porque sendo um governo eleito, os demais poderes fáticos impõem limites em tese maiores do que numa ditadura (mídia, sistema judiciário, parlamento, as próprias FFAA e sua extensão policial, o grande capital). Em tese, porque na prática estes poderes fáticos tem contribuído gostosamente para o que mais interessa a eles: a aplicação do programa econômico social ultraliberal.

8.Todo este contexto, circunstâncias e personagens levam a concluir que o governo (e a conjuntura brasileira como um todo) são caracterizadas pela crise permanente, pela instabilidade permanente, pelo sobressalto e por reviravoltas permanentes.

9.Um dessas reviravoltas é Lula com direitos políticos de volta. As principais reações a isso foram: em parte da oposição de centro-esquerda, reacender as expectativas de um regresso triunfal ao governo; na direita gourmet, a busca desesperada por uma terceira via eleitoralmente viável; na extrema-direita, incluída a extrema-direita militar, a reação é a escalada: ameaças (contra Lula, contra governantes que estão tentando conter a pandemia etc.); processos com base na LSN, por exemplo contra pessoas que chamam Bolsonaro de genocida; notas agressivas (de Bolsonaro falando de estado de sítio, de Etchegoyen criticando as decisões do STF etc.); incentivo à insubordinação das PMs contra governadores de estado (o caso mais extremo é o da Bahia, mas a nota assinada por pelo menos 16 governadores mostra que não se trata de um problema localizado).

10.Detalhe: tudo isto ocorre na véspera de um aniversário do golpe militar de 1964. A esse respeito, é preciso estar atento para a extensão e conteúdo das mobilizações que estão sendo convocadas em defesa da intervenção militar. E, também, analisar a famosa ordem do dia.

11.É neste quadro que ocorreu a recomposição ministerial do 29 de março. As mudanças (até agora) foram: Ministério das Relações Exteriores: Ernesto Araújo x Carlos Alberto França; Ministério da Defesa: General Fernando Azevedo e Silva x General Braga Netto; Ministério da Justiça e Segurança Pública: André Mendonça x Delegado da Polícia Federal Anderson Gustavo Torres; Casa Civil: General Walter Souza Braga Netto x General Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira; Secretaria de Governo: General Luiz Eduardo Ramos x Deputada Federal Flávia Arruda;  Advogacia-Geral da União (AGU): José Levi Mello do Amaral Júnior x André Mendonça.

12.Há especulações de todo tipo acerca dos motivos e dos efeitos da reforma ministerial. Acomodar centrão e afastar os militares que o desobedecem são as mais frequentes. Sobre a desobediência também há diversas teses: a entrevista do general Paulo Sergio, a relação com os governos estaduais, a resistência a um possível estado de sítio, articulações de militares a favor de outra candidatura presidencial em 2022 etc.

13.Na direita gourmet, em particular no oligopólio da mídia, mais do que análise, há quase um convite para que os militares derrubem Bolsonaro. Um conhecido direitista chamado Marco Antonio Villa agora descobriu que “o presidente está caminhando para um golpe de Estado. [...] [Bolsonaro] é um golpista, um nazi-fascista, ele não é um democrata. Ele conspira contra a Constituição e o fez durante 30 anos de vida parlamentar". E o conhecido jornalista Mário Sergio Conti foi além e defendeu abertamente uma “operação Valquiria” contra Bolsonaro.

14.Na oposição de centro-esquerda, também apareceram vozes comemorando o teor da nota do ex-ministro da Defesa (que diz que seu papel no governo teria sido defender as forças armadas como instituição de Estado) e as declarações do general Santos Cruz (segundo o qual os militares “não vão entrar em aventura”). Acontece que as forças armadas em geral e estes militares em particular apoiaram a ascensão de Bolsonaro e seu governo. Ademais, um ministro é um ministro, ou seja, pode se achar “de Estado” mas sempre será “de governo”.

15.Aliás, Santos Cruz é um cidadão muito criativo. Segundo ele: “Não há clima para um golpe de Estado. As Forças Armadas têm uma postura institucional muito forte. Não embarcam nessa onda. As Forças Armadas têm estruturas fortes de comando, de liderança, de hierarquia, de respeito à legalidade (...) As Forças Armadas e seus comandantes têm consistência grande. Não se imagine que se possa lançar as Forças Armadas em uma aventura. Os militares não ficam embarcando em qualquer canoa. Não é fácil mexer com as Forças Armadas politicamente. Os comandantes são todos muito discretos. Não se envolvem com política. É uma gente séria.”

16.Claro que é positivo que Santos Cruz fale contra um autogolpe. Mas seus argumentos são deveras interessantes, digamos assim. Ele diz, por exemplo, que não há “clima” para um golpe de Estado. Clima??? O simples fato de um militar dar declarações deste tipo já mereceria processo e, quem sabe, prisão. Mas o que esperar de um governo que tem um presidente golpista e que coloca um militar no ministério da Defesa, criado exatamente para ampliar o controle civil sobre as forças armadas?? Aliás, Santos Cruz diz que os militares não ficam embarcando em qualquer canoa. Mas embarcaram na canoa bolsonarista. Diz que não seria fácil mexer politicamente com as FFAA. Mas as FFAA intervieram abertamente na política em toda a história republicana brasileira, inclusive desde 2016. Diz que os comandantes seriam todos muito discretos, mas os militares estão por todas as partes no governo Bolsonaro, com salários e controlando orçamentos nada discretos. Diz que os comandantes não se envolveriam com política, seriam gente séria. Claro, preferiram tutelar sem se desgastar... mas Bolsonaro é difícil de tutelar, seu governo não está num bom momento e isto está afetando a popularidade das forças armadas.

17.Seja como for, a reforma ministerial mostra que se criaram (e tendem a se aprofundar) as divisões no partido militar. Estas divisões podem ter várias causas, inclusive o estilo de Bolsonaro [e, como observou uma companheira, a relação direta do cavernícola com os policiais militares, bem como com a baixa oficialidade e soldadesca]. Mas o principal motivo parece ser político: o aprofundamento da crise afeta a unidade do partido militar, inclusive porque amplia o risco de Bolsonaro ser afastado ou perder as eleições, arrastando junto na derrota seus patronos, o que faz com que alguns setores do Partido militar comecem a buscar alternativas. A alternativa tutela não funcionou; a possibilidade de deixar tudo como está é perigosa, especialmente por conta do fator Lula, que a cúpula das forças armadas não aceita de nenhuma maneira; e não é nada trivial construí ruma terceira via. E, para complicar tudo, a caneta está nas mãos de Bolsonaro, que sabe disto tudo e não é do tipo que deixa como está para ver como é que fica. Neste sentido, a crise atual é lembrada por alguns como uma versão farsesca do ocorrido com Ednardo em 1976 e com Frota em 1977. 

18.Frente a tudo isto, sem prejuízo de compreender melhor os detalhes do que houve, do que está ocorrendo e do que pode vir a ocorrer, é bastante claro que nós não devemos fazer.

-primeiro: lembrar que vivemos em Estado de exceção e que os fatos recentes mostram que a exceção avança, não recua. 

-segundo: perceber que os mesmos fatos recentes apenas confirmam que o cavernícola tem um modus operandi, que mesmo isolado não cede no que considera essencial.

-terceiro: não subestimar o inimigo. Sobre este terceiro ponto, um bom exemplo de subestimação está no recente tweet do deputado Freixo: “URGENTE! O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, acaba de anunciar que deixará o cargo. Na nota, falou sobre a importância das Forças Armadas atuarem como instituições de ESTADO. Começa a desmoronar um dos principais pilares de sustentação de Bolsonaro”. Outro exemplo de subestimação é a declaração do Antonio Augusto de Queiroz, do Diap, segundo o qual faltaria pouco para o impeachment de Bolsonaro. Um governo que carrega 300 mil mortos nas costas e ainda não caiu, não pode ser subestimado desta forma.

-quarto: não terceirizar. Bolsonaro tem que ser derrubado por nós, pela esquerda, pela classe trabalhadora. Se Bolsonaro for derrubado ou derrotado pela direita gourmet, ou por uma parte dos militares, os desdobramentos disto para a classe trabalhadora não serão positivos.

-quinto: o que vem por aí é mais crise, não menos crise. Não exatamente porque os comandantes venham a pedir demissão (escrevo isto na manhã de 30 de março), nem apenas porque se aprofunde a divisão nas forças armadas. Mas principalmente porque há uma crise sistêmica profunda no mundo e no Brasil; e os métodos que a classe dominante adotou para tentar resolver esta crise aprofundam a crise. Por isso, embora estejam tendo sucesso em aplicar seu programa, na verdade exatamente porque estão tendo sucesso em aplicar seu programa, todas as instituições golpistas (inclusive a mídia oligopolista) estão em estado de crise. Como disse o próprio Bolsonaro, ele veio para destruir. Portanto, a bagunça institucional não deveria surpreender ninguém, muito menos a figuras como Braga Neto, talvez um dos militares que mais saiba quem é quem nas milícias do Rio de Janeiro.

-sexto: o único jeito de superar a crise é destruindo suas causas. E não será a direita gourmet, nem as “instituições”, muito menos as forças armadas, que serão capazes de fazer isso. Só o povo pode destruir as causas da crise, indo na raiz do problema. No nosso caso, a classe dominante e seus tentáculos. Ou, como diria o cavernícola no seu jargão tão peculiar: com lagartixas não basta cortar o rabo.


ps.a entrevista do general Paulo Sérgio, falando como o exército teria combatido a pandemia, é a versão castrense das recentes decisões do STF. Fachin, Cármen Lúcia e outros confessaram que durante anos desconheceram a Constituição, ou seja, foram cúmplices de um crime. E o general Paulo Sérgio, ao afirmar que o exército teria tido maior êxito em se proteger da Covid 19, confessa por tabela que o exército sabe muito bem as consequências nefastas - sobre o povo - das políticas que vem sendo aplicadas pelo governo militar de Bolsonaro, governo que até há pouco tinha um general da ativa no ministério da Saúde.

ps2.nos dias 31 de março e 1 de abril a esquerda precisa marcar presença. Inclusive nas ruas, com as medidas sanitárias indispensáveis.

*ps3.a respeito do que ocorreu em 2013, que obviamente não pode ser resumido a um de seus aspectos, sugiro ler: http://valterpomar.blogspot.com/2013/06/a-direita-tambem-disputa-ruas-e-urnas.html

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