Acabo de receber, enviado pelo professor Francisco Teixeira, o Novo Dicionário Crítico do Pensamento das Direitas (Edupe, 2022).
Organizado por Francisco Carlos Teixeira da Silva, Sabrina Evangelista de Medeiros, Alexander Martins Vianna, Karl Schusrter e Dilton Cândido Santos Maynard, reuniu 149 participantes e traz 176 verbetes (isso se não fiz a conta errada), um deles sobre Javier Milei.
Abaixo, o verbete sobre marxismo cultural, de minha autoria.
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A criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1922, a vitória soviética na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a formação de um “campo” de países socialistas, bem como a expansão de movimentos e partidos influenciados pela tradição marxista tiveram imensas repercussões no modo de pensar e no modo de agir dos capitalistas e de seus representantes políticos e ideológicos.
Entre estes, por volta
dos anos 1950, não eram poucos os que acreditavam que o capitalismo estaria com
seus dias contados ou, pelo menos, frente a uma situação que ameaçava profundamente
os fundamentos do “modo de vida da civilização ocidental”, a “democracia”, a “religião”
e os “bons costumes”.
Foi em nome de combater
estas ameaças que, nas décadas seguintes ao final da Segunda Guerra, os governos
dos Estados Unidos e de seus aliados lançaram mão de guerras imperialistas, de
golpes militares e de expedientes ditatoriais de todo tipo, contando inclusive com
a colaboração de nazistas e fascistas.
No plano ideológico,
construiu-se então o que se convencionou chamar de “mentalidade da Guerra Fria”,
expressa de diferentes formas, desde trabalhos acadêmicos de primeira linha até
uma variada filmografia de qualidade questionável, formando uma subcultura de
massa bastante influente.
Sendo este o histórico, parecia
razoável supor que a desaparição dos “socialismos” do Leste Europeu e da
própria URSS (1991) produziria, entre seus vários efeitos colaterais, a desaparição
do anticomunismo. Mas não foi isso o que ocorreu.
A chamada mentalidade da
Guerra Fria sobreviveu e metamorfoseou-se, assumindo diferentes formas desde
1991 até hoje. Uma destas formas pode ser vista na abordagem adotada por diferentes
governos dos Estados Unidos contra a República Popular da China, especialmente na
sequência da crise financeira de 2008. Outra daquelas formas é a ofensiva
contra o denominado “marxismo cultural”.
Segundo os partidários
desta ofensiva, a desaparição da União Soviética teria obrigado os comunistas a
mudar de conduta. Do ponto de vista teórico, os comunistas teriam trocado Lênin
por Gramsci; do ponto de vista político, teriam deixado de lado a estratégia abertamente
revolucionária de luta pelo poder, adotando em seu lugar uma estratégia de conquista
do poder “a partir de dentro”, através da hegemonização não apenas de
instituições estatais, mas também da chamada sociedade civil, com destaque para
a conquista de “corações e mentes” através da influência cultural (sendo essa uma
das explicações para a denominação “marxismo cultural”).
Efetivamente, depois da
desaparição da URSS muitos comunistas abandonaram o objetivo de construir uma
sociedade baseada na propriedade coletiva dos meios de produção, repudiaram a
revolução como método legítimo e indispensável de transformação histórica e
passaram a exaltar conceitos como a “guerra de posições” e a já citada “disputa
de hegemonia”.
Neste sentido, os que falam
de “marxismo cultural” estão referindo-se a aspectos aparentes de um fenômeno
real. Mas, como sabemos, se a essência fosse igual a aparência, não haveria
ciência. Para começar, nada disto é novo: muito antes da URSS desaparecer, comunistas,
socialistas, socialdemocratas e pessoas de esquerda de variadas orientações e
procedências já defendiam posições que são hoje catalogadas como “marxismo
cultural”. A rigor, portanto, não constitui novidade que existam marxistas que
enfatizem a dimensão “político-cultural” da luta pelo socialismo.
Neste sentido, os que atualmente
falam de “marxismo cultural” estão “arrombando porta aberta”, apresentando como
novidade e acreditando sinceramente ser novidade algo que simplesmente não é
novidade. Para compreender por quais motivos isso acontece, não apenas como um fenômeno
característico deste ou daquele autor, mas como um traço de toda uma tradição
intelectual, é preciso levar em conta as características do capitalismo contemporâneo
e o tipo de “ideologia” e de “ideólogos” que ele fomenta.
Ficou para trás o tempo
em que os defensores do capitalismo podiam oferecer, com mínima credibilidade,
uma perspectiva de futuro para toda a humanidade, com ampliação das liberdades,
do bem-estar, do desenvolvimento, da soberania e da paz mundial. Já faz algum
tempo em que não há como esconder que o horizonte oferecido pelo capitalismo é
de crise ambiental, desigualdade social, autoritarismo político, militarização
crescente e descarte dos seres humanos por máquinas. Sendo assim, é cada vez
mais difícil sustentar a defesa do capitalismo em bases racionais, lógicas,
científicas e humanas.
Isto ajuda a explicar por
quais motivos parcelas crescentes dos que defendem o capitalismo recorrem ao
pensamento medieval, fundamentalista e anticientífico. Neste aspecto, não se
trata propriamente de uma novidade: o nazismo alemão, o fascismo italiano, o
franquismo espanhol e o salazarismo português também foram, em seu tempo, uma
mistura aparente paradoxal de mitologias reacionárias, de uma filosofia
irracionalista e de “ferramentas” modernas (como o rádio e o cinema). Aliás, o
termo “marxismo cultural” tem, entre seus antecedentes, um termo cunhado por Adolf
Hitler: “bolchevismo cultural”.
Tampouco constitui uma
novidade a natureza ideologicamente totalitária desta tradição intelectual que
se organiza em torno da crítica ao chamado marxismo cultural. Absolutamente
tudo corre o risco de ser etiquetado – pelos participantes daquela tradição - como
“marxismo cultural” ou relacionado a ele: o comunismo, o socialismo, a socialdemocracia,
as ideias progressistas, o feminismo, o antirracismo, os direitos dos LGBT, a
participação popular, o voto eletrônico, as vacinas, o jacobinismo, o iluminismo
etc.
Alguns intelectuais, não
apenas de esquerda, criticam a bizarrice desta atitude, mas é importante lembrar
que por detrás da bizarrice existe algo muito perigoso, tão perigoso quanto aquela
lógica que começou defendendo o mais tosco antisemitismo e terminou implementando
o extermínio em massa de judeus em fornos de gás. Tanto no nazismo quando na extrema
direita do primeiro quartel do século 21 encontramos a mesma incompatibilidade –
expressa no terreno das ideias – entre o capitalismo e a vida. Nada, absolutamente
nada, que preserve a vida está à salvo da “arma da crítica” e da “crítica das
armas” desta extrema-direita. A referida incompatibilidade, que se materializa por
exemplo na mais abjeta naturalização e banalização da violência e da morte, é
potencializada por dois fenômenos dos tempos atuais: por um lado a hegemonia do
capital financeiro, a mais desumana das frações do capital; e, por outro lado, certas
dinâmicas da moderna comunicação de massa, cuja rentabilidade se beneficia dos piores
instintos e medos.
É nesse caldo de cultura –
individualista, egocêntrico, imediatista, egoísta – que brotam como fungos os “intelectuais
orgânicos” do capitalismo moderno e sua tara pelo “marxismo cultural”. Profundamente
incultos, adeptos de todo tipo de teoria da conspiração, lacradores e muitas
vezes alpinistas sociais, devotam um ódio profundo ao marxismo, não propriamente
por conhecer as ideias das variadas tendências que compõem esta tradição, mas
porque odeiam profundamente a noção fundamental defendida por Marx e Engels, a
saber: a de que a humanidade é insustentável sem a igualdade.
Finalmente: o “marxismo
cultural” existe? Num certo sentido existe, mas apenas como um espantalho que um
setor da direita construiu para espancar.
Bibliografia
CARVALHO, Olavo. O
jardim das aflições. Rio de Janeiro: Diadorim. 1995.
COSTA, Iná Camargo. Dialética
do marxismo cultural. São Paulo: Expressão Popular, 2019.
HICKS,
Stephen. Guerra cultural. São Paulo: Avis Rara, 2021.
HITLER,
Adolf. A minha luta.
Porto: Edições Afrodite, 1976.
LUKÁCS. G. El asalto a
la razón. México-Bueno Aires: Fondo de Cultura Económica, 1959.
Valter Pomar técnico
industrial em artes gráficas formado pelo SENAI. Graduado, mestre e doutor em
história formado pela USP. Professor de relações internacionais e da pós
graduação em economia política mundial da UFABC. Diretor da Fundação Perseu
Abramo e membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores.
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