domingo, 23 de maio de 2021

Tarso Genro, o capeta e o inferno

Acabo de ler um texto de Tarso Genro, intitulado: “Lula e Fernando Henrique não vão para o inferno: combaterão o capeta por aqui”.

O texto pode ser lido aqui:

https://www.sul21.com.br/colunas/tarso-genro/2021/05/lula-e-fernando-henrique-nao-vao-para-o-inferno-combaterao-o-capeta-por-aqui/

O texto de Tarso, tirante o sempre instrutivo nariz de cera, tem duas partes: na primeira ele analisa o almoço entre Lula e FHC; na segunda ele faz uma digressão histórica.

Sobre o almoço, Tarso afirma que Lula e Fernando Henrique teriam ajustado “não uma aliança eleitoral mas uma ‘visão’ comum de resistência contra o fascismo miliciano instalado em Brasília”.

Não sei o que FHC e Lula pensam desta interpretação.*

Mas suspeito que ambos a acharão “um pouco exagerada”, mais ou menos como Mark Twain reagiu às notícias sobre sua morte.

Afinal, “visão comum” supõe alto nível de compromisso político e programático acerca do presente e do futuro.

Pergunto: para além das platitudes acerca da “república” e da “democracia” – frases que FHC certamente sabe repetir de cor, não importa quantas vezes ele tenha traído a república e a democracia – que tipo de “visão comum” poderia existir entre o PT e o PSDB?

Pois, vamos combinar, o problema do Brasil não se reduz a pessoa física de Bolsonaro, nem ao fascismo miliciano. Há um programa político, econômico e social sendo implementado no país e, quanto a este programa, o PT e o PSDB têm adotado posições muito diferentes, quando não antagônicas. Para que houvesse uma “visão comum”, seria necessário que um dos partidos, ou ambos, mudassem seu ponto de vista.  

A não ser, é claro, que Tarso acredite que FHC estaria disposto a trair seu partido. O que não me parece ser o caso.

Sendo assim, por qual motivo Tarso “exagera”? Uma possível explicação está na digressão histórica. Em resumo de minha responsabilidade, Tarso simplesmente parece não enxergar outro caminho, seja para combater o neofascismo, seja para mudar o país, que não seja o caminho da aliança entre a esquerda e o “centro” (que na verdade não é centro, mas direita gourmet).

Para chegar aquela conclusão, Tarso começa criticando a “a atitude dos comunistas perante a ascensão do nazifascismo”, segundo a qual “fascismo e social-democracia eram irmãos gêmeos” e que colocava “num mesmo plano (...) as democracias parlamentares do ocidente e o nazifascismo em ascensão”. Esta posição, segundo Tarso, teria levado “à impotência a resistência ao fascismo”.

Supondo que tudo isso fosse verdade, ainda assim falta a Tarso contar outra parte e muito importante da história: o apoio que os capitalistas e a direita gourmet da época deram ao fascismo italiano e ao nazismo alemão, exatamente para impedir a tal “revolução” que Tarso considerava ilusória, mas que as classes dominantes da época achavam demasiado ameaçadora.

Depois de falar dos comunistas, Tarso passa a analisar a postura das “grandes lideranças políticas que, em distintas épocas, assumiram governos democráticos na Federação, desde a Revolução 30 até os dias que correm”, constatando que elas “nunca pretenderam encaminhar os seus liderados – de dentro e de fora dos seus Governos – para uma luta contra o sistema capitalista”.

Isto é uma óbvia verdade, assim como também é verdade que desde a Revolução de 1930 até os dias atuais, prevaleceram em nossa história a dependência externa, a desigualdade social e imensas restrições às liberdades democráticas. Ou seja: pagamos um alto preço por não termos lutado contra o capitalismo.

Que Tarso não perceba isso, vá lá. Mas ele vai muito além: mistura num mesmo saco “Getúlio, Juscelino, Jango, Sarney, Itamar, Fernando Henrique e Lula”, como defensores de “políticas públicas de caráter social, mais ou menos avançadas (ou progressistas e “populares”) em distintas épocas, em maior ou menor proximidade de um pensamento de esquerda”.**

Fernando Henrique foi o principal operador das políticas neoliberais. O que possa ter ocorrido de “progressista” em seu governo perde importância, frente ao conjunto da obra. Mas o que importa para Tarso não é a realidade histórica, mas sim um FHC imaginário, com quem se possa compartilhar uma visão comum.

Para sustentar este ponto de vista, Tarso mistura o FHC neoliberal com outros presidentes, inclusive desenvolvimentistas, para depois afirmar que “as narrativas de boa parte da esquerda socialista ancorada no pensamento dominante da III internacional, sobre estes Governos – como se eles fossem suscetíveis a se tornarem companheiros de viagem para um projeto socialista – sempre foi uma discussão heroica, proposta por quem não conseguiu gerar um partido revolucionário com independência de classe e assim pensou que a carona no reformismo progressista facilitaria o advento do socialismo”.

Acontece que a “narrativa” crítica contra o governo FHC foi feita essencialmente pelo Partido dos Trabalhadores. Portanto, se for para levar a sério o que ele escreveu, o que Tarso está propondo é que mudemos nosso ponto de vista não sobre Vargas ou sobre JK; o que ele está propondo é que mudemos profundamente o nosso ponto de vista sobre FHC e sobre o neoliberalismo.

Quem aceitar este ponto de vista, realmente pode acreditar ser possível compartilharmos uma "visão comum" com FHC. Mas neste caso estaríamos, a pretexto de combater o capeta, traindo o povo brasileiro na luta contra o inferno do neoliberalismo. 


*ps. se Tarso tivesse se limitado a defender a conveniência de manter pontes com a direita gourmet, ou se tivesse sustentado a necessidade de uma aliança eleitoral com esta gente, vá lá. Mas Tarso mantém algumas características de seus tempos de esquerdista, entre as quais a de não saber diferenciar adequadamente tática de estratégia, programa de princípios e assim por diante. Por isso, as vezes ele não sabe a hora de parar...

** detalhe curioso, que me foi apontado por uma companheira: por qual motivo Tarso não cita Dilma??


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Lula e Fernando Henrique não vão para o inferno: combaterão o capeta por aqui

Publicado em: maio 23, 2021

Tarso Genro (*)

Reza a lenda que quando Guimarães Rosa esteve como diplomata na representação do País na Colômbia (Bogotá), na Conferência Interamericana de 1948, nossa delegação esteve por vários dias protegida na Embaixada local, já que em toda a cidade a insurreição campeava e ninguém tinha condições de segurança para transitar nas ruas ou mesmo viajar para sair da capital. O assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, líder popular anti-imperialista, despertara a ira do povo que se traduziu num grande movimento político insurrecional. Depois da sua volta ao Brasil, um jornalista perguntou a Guimarães Rosa o que ele fizera naqueles dias históricos, obtendo dele a seguinte resposta: “reli Proust”. Rosa nunca foi um alienado político, nem um insensível perante a sorte alheia, pois como Cônsul brasileiro em Hamburgo durante o nazismo – antes do Brasil entrar na 2ª. Guerra – “falsificou” centenas de passaportes que liberaram famílias judias para viajarem e assim fugirem do massacre nazista. Ao dizer que somente “relera Proust”, o grande escritor apenas afirmava que, independentemente das suas preferências políticas, reconhecia a situação concreta e a sua impossibilidade real de atuar sobre ela, ao contrário do que fizera em Hamburgo. O encontro de Lula com Fernando Henrique ajustando – não uma aliança eleitoral mas uma “visão” comum de resistência contra o fascismo miliciano instalado em Brasília – mostra que ambos se convenceram, ao meu ver corretamente, que não teriam nenhuma justificativa para “reler Proust”, fugindo do impasse que nos e lhes cerca.

Neste contexto de tragédia nacional e dor alheia, sob pena de irem para a margem da História sem dignidade, viram que o que está em jogo não é qualquer pleito social democrata, mas a própria existência da República e da Democracia, Quando nos aproximamos de 500 mil mortes provocadas pelo negacionismo criminoso e pela inépcia arrogante do Governo conversa dos dois é um jato de luz na conjuntura. Em alguns momentos, “reler Proust” é um ato de sabedoria política omissiva, outras vezes é de omissão que seria um crime, como seria em Hamburgo e, em outras oportunidades, omitir-se de tomar uma decisão pode ser uma negação da verdade e igualmente uma ação de colaboração com o desastre. Lembremos um fato histórico significativo para o movimento comunista mundial – hoje em desuso e em vencimento – que foi a atitude dos comunistas perante a ascensão do nazifascismo. No Sexto Congresso da Internacional Comunista, em 1928, com a vitória do ponto de vista de Stálin, apoiado pela verve revolucionária de Zinoviev, foi homologada a visão de que fascismo e social-democracia eram irmãos gêmeos. Posição que colocava num mesmo plano, portanto, as democracias parlamentares do ocidente e o nazifascismo em ascensão. A tragédia que se seguiu é conhecida e a revogação tardia desta simplificação supostamente revolucionaria não conseguiu bloquear as piores faces da barbárie.

A tese chancelada neste Congresso “patrolou” todo o movimento comunista mundial, que esperando a revolução que estaria no horizonte, aceitava uma falsa identidade que levou à impotência a resistência ao fascismo. O que estava em jogo era derrotar o fascismo no horizonte e não a aposta numa revolução que sequer ainda mostrara a suas virtudes igualitárias na terra do bolchevismo.

As grandes lideranças políticas que, em distintas épocas, assumiram governos democráticos na Federação, desde a Revolução 30 até os dias que correm, nunca pretenderam encaminhar os seus liderados – de dentro e de fora dos seus Governos – para uma luta contra o sistema capitalista. Os seus programas sempre foram “reformistas”, ora à direita, ora à esquerda e jamais propuseram revoluções de natureza socialista.

Todos estes líderes conviveram com grupos socialistas, social-democratas e comunistas, e estiveram – segundo a história pessoal de cada um – mais próximos ou mais distantes, tanto do conservadorismo tradicional, como das ideias de igualdade e solidariedade do iluminismo democrático, que vêm atravessando o ciclo histórico da revolução francesa, do qual a revolução russa foi o seu exemplo mais radicalizado. O ciclo dos últimos sessenta anos de disputas pelas reformas do capitalismo no Brasil, todavia, tem marcos políticos importantes que devem ser lembrados, que não podem ficar subsumidos no debate imediato da reação fascista e dos discursos do “mito”. Vários marcos exemplares foram produzidos no campo do que se convencionou chamar esquerda, para o desenvolvimento de um Brasil mais justo e soberano, como a declaração de “utilidade pública” (para desapropriações destinadas à reforma agrária) ocorrida no fim do Governo João Goulart: ela designava 10 km ao longo das margens das rodovias federais, se terras improdutivas, para a efetivação da reforma agrária.

Getúlio, Juscelino, Jango, Sarney, Itamar, Fernando Henrique e Lula – nem todos apontados ou autodesignados como “esquerda”, jamais defenderam ideias comunistas ou socialistas em qualquer sentido, mas sim políticas públicas de caráter social, mais ou menos avançadas (ou progressistas e “populares”) em distintas épocas, em maior ou menor proximidade de um pensamento de esquerda.

A aparente radicalidade dos seus Governos veio mais do desconforto das nossas classes dominantes de extração escravista do que de qualquer sentido “expropriatório” dos privilégios dos ricos. Penso que alguns episódios políticos avançados em termos democráticos, deste período, devem ser considerados neste momento de unidade necessária: a coragem de Goulart em busca da Reforma Agrária defendida por Brizola, as ações “desenvolvimentistas” de JK, as políticas de Direito Humanos desenvolvidas no Governo FHC por Paulo Sérgio Pinheiro, os projetos sociais estratégicos de Lula que retiraram da miséria 40 milhões de brasileiros e inauguram o Brasil de respeito global. As narrativas de boa parte da esquerda socialista ancorada no pensamento dominante da III internacional, sobre estes Governos – como se eles fossem suscetíveis a se tornarem companheiros de viagem para um projeto socialista – sempre foi uma discussão heroica, proposta por quem não conseguiu gerar um partido revolucionário com independência de classe e assim pensou que a carona no reformismo progressista facilitaria o advento do socialismo.

Hoje, todavia, o que importa é defender o país da agressão fascista, que faz o limite para um campo único de resistência que, se fracassar, fechará o futuro para todos num país dominado pelo crime e pelo ódio. Ainda bem que Lula e FHC entenderam que não era o momento moral e político legítimo de ficar “relendo Proust” e releram — cada um deles – a sua memória política democrática. Pode até não dar certo, mas este almoço já está na História e o seu cardápio político pode ajudar a mudá-la para melhor.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

Um comentário:

  1. O companheiro Tarso Genro tem é pisado na bola, aocomentar sobre acontecimentos da esfera Política. Parece que é movido por uma ansiedade em revelar um PT disposto a se "limpar" de uma imagem que a "elite do atraso" colou no partido. O companheiro, ao invés de apontar a sujeira da elite, aceita a mentira que ela inventou. Menos desculpas e mais altivez, é do que necessitamos como partido

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