sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A filosofia de Fausto e a “burocracia do PT”

Carta Capital publicou, no dia 7 de novembro de 2018, uma entrevista com Ruy Fasto. 

A entrevista foi feita por Marina Gama Cubas e intitula-se “Burocracia do PT vive do mito Lula. Se houver sucessor, ela morre”.

Carta Capital informa que esta entrevista faz parte de uma série, publicada entre os dias 30 de outubro e 7 de novembro, para refletir sobre “a esquerda atual e suas perspectivas para o futuro”.

Fausto considera que a vitória de Jair Bolsonaro é “um verdadeiro desastre nacional”; “uma extrema-direita muito radical e extremamente perigosa chegou ao poder no Brasil”; “57 milhões e meio de brasileiros votaram num candidato que elogia não só a ditadura militar, mas a ala extremista dessa ditadura, aquela que se opunha a qualquer abertura mais o resto: racismo, homofobia etc”.

Fausto considera que “os fatores fundamentais” que tornaram isso “possível” foram: “a utilização do tema da corrupção, o problema da violência, a orquestração desonesta em torno de temas “de sociedade", mais o uso sistemático e ilegal de certos meios ultramodernos de comunicação. Em quase tudo isto, a responsabilidade da direção do PT foi imensa”. 

Não é genial?

Façamos uma lista incompleta dos que têm “imensa responsabilidade” nos “fatores fundamentais” que tornaram Bolsonaro “possível”:

Os eleitores de Bolsonaro; os que votaram branco, nulo e se abstiveram; os que se recusaram a votar e/ou a fazer campanha pelo candidato alternativo.

Os que se recusaram a punir Bolsonaro pelos crimes eleitorais e pelos crimes cometidos antes da eleição.

Os que financiaram e apoiaram a campanha de Bolsonaro.

Os que impediram Lula de ser candidato, mesmo sabendo que Bolsonaro era o segundo colocado.

Os que estimularam a extrema direita a sair às ruas, para derrubar a presidenta Dilma.

Os que legitimaram o discurso da extrema direita, nas páginas nobres de meios de comunicação tão nobres quanto.

Os que vem, desde 2005, demonizando o PT, o petismo e a esquerda.

Qual a “imensa responsabilidade” do PT em cada um destes fatores??

A opção por culpabilizar o PT por um “desastre nacional” é, no fundo, muito cômoda para ocultar a responsabilidade dos demais, inclusive do eleitorado e de próceres tucanos de que Ruy Fausto é dileto amigo.

Não é apenas cômoda; chega a ser uma opção cínica

Pois só a palavra cinismo pode descrever a seguinte frase: “a enorme desigualdade - tema fundamental que acabou sendo mais ou menos esquecido pela esquerda, que desemboca frequentemente numa posição radical, que pode ser de esquerda, mas em certas condições - no nosso caso: vazio político, desgaste de todos os partidos, violência - pode ser de extrema direita. Foi o que aconteceu”.  

Pobre esquerda brasileira.

Atacada por ameaçar a propriedade privada, atacada por esquecer da “enorme desigualdade”, atacada por Bolsonaro, culpada por ter “imensa responsabilidade” na vitória de Bolsonaro.

Claro, existe um importante grão de verdade na afirmação de Ruy Fausto: a maneira como a esquerda, especialmente o PT, tentou enfrentar o problema da desigualdade, não foi radical o suficiente para superar o problema, mas foi radical o suficiente para causar uma reação dos defensores da desigualdade social. 

Reação que contou com apoio das elites, mas também de parcela dos beneficiários das políticas moderadas de combate à desigualdade. 

Se a esquerda ou o PT tem alguma “imensa responsabilidade” é nisto: ter perdido o apoio de parte dos setores populares. 

Reconquistar este apoio é a tarefa central do período histórico aberto em 28 de outubro de 2018.

Ruy Fausto considera que “a reorganização da esquerda já se impunha antes do 28 de outubro e agora se impõe com muito maior urgência. É preciso reconstruir o discurso da esquerda, não só na forma, mas também no seu conteúdo”. 

A divergência, obviamente, está no sentido geral desta reorganização.

Ruy Fausto acha que os “os pontos principais dessa reconstrução” são “a crítica do populismo-patrimonialismo e a crítica da herança mal liquidada dos totalitarismos de esquerda”.

Por trás da linguagem empolada, está o mesmo discurso que levou parte da antiga esquerda brasileira, inclusive parte do velho Partido Comunista Brasileiro, a apostar na criação do Partido da Social Democracia Brasileira e na criação do Partido Popular Socialista, no final dos anos 1980 e durante os anos 1990. 

Dito de outro jeito: o que Ruy Fausto propõe para a “reorganização da esquerda” pós 28 de outubro é um cardápio velho e conhecido, cardápio que produziu uma centro-esquerda social-liberal que –diferente do PT – foi varrida nas eleições de 2018.

Ruy Fausto destaca o tema da “corrupção”. 

Ele reconhece que este tema não é “o único e talvez nem o mais importante - o problema da desigualdade o supera sob muitos aspectos. Mas sem repensar o tema da corrupção, ao contrário do que pretendem certas sociologias fáceis, a esquerda não tem futuro”.

Evidente que o tema da corrupção tem centralidade, mas é preciso explicar que centralidade e qual corrupção. 

O tema da corrupção fez parte da pauta da direita em 1954, em 1964 e novamente agora. 

Fausto considera este “detalhe” em sua abordagem? 

Por outro lado, a corrupção (desviar dinheiro público para finalidades privadas) é parte essencial da dinâmica capitalista há séculos, se acentuando nos períodos de hegemonia do capital financeiro, que extrai a maior parte de seus ganhos da tributação direta e indireta da sociedade. 

Desta corrupção quer Fausto falar?

Ruy Fausto também destaca a “exigência de uma recusa radical de todo autoritarismo, seja ele de direita ou de esquerda. A esquerda brasileira, como parte da esquerda mundial, continua confusa em matéria de liberdade e de democracia. Há muito autoritarismo difuso, que nos atrapalha”.

Novamente, trata-se de uma afirmação cínica.

A esquerda brasileira, especialmente o PT, foi vítima de um golpe parlamentar, midiático e judicial. Um impeachment sem crime de responsabilidade. A condenação, a prisão e a interdição de seu principal líder. Uma campanha eleitoral baseada na mentira e na violência. 

E vem Fausto falar em “autoritarismo difuso” na/da esquerda???

Na verdade, quem está “confuso” em matéria de “liberdade e de democracia” é quem imaginava que seria possível usar a extrema direita para tirar o PT, depois seria possível eleger um tucano de punhos de renda para presidir o país.

Estes estão “confusos”.

O verdadeiro problema da esquerda brasileira neste terreno não é a confusão, mas a timidez com que enfrentou as tarefas democráticas, dentre as quais punir os crimes e criminosos da ditadura militar, destruir a ditadura que o oligopólio empresarial da mídia mantém por sobre a comunicação de massas, colocar as forças armadas sob efetivo controle civil, desmilitarizar as polícias, quebrar o domínio do dinheiro sobre os processos eleitorais, ter controle social sobre o sistema judiciário etc etc.

Mas todas as vezes que a esquerda brasileira insinuou fazer isso, “gente de bem” berrava: autoritarismo!!!

Assim, para enfrentar as discussões propostas por Ruy Fausto, é preciso, como ele mesmo diz, “dar o nome aos bois”. 

Pois falas genéricas não esclarecem o que de fato esteve, está e estará em jogo.

Dar nome aos bois é algo que Fausto busca fazer, quando responde a pergunta sobre “os principais equívocos do PT e de Fernando Haddad na eleição”.

Segundo Fausto, “a responsabilidade da direção do PT em tudo isso foi enorme. O lançamento da candidatura Lula foi um erro, como declarei sucessivas vezes em entrevistas e artigos. Não quero dizer com isso que não se devesse defender Lula, mas isso não implicava na necessidade de lançá-lo como candidato. Lula tinha e, em parte ainda tem, grande prestígio, mas já teve dois mandatos como presidente”.

Que eu saiba, Fausto não é nem nunca foi filiado ao PT. 

Sendo assim, o uso da palavra “erro” é no mínimo curioso. 

Lançar Lula teria sido um erro do ponto de vista de quem? 

Do ponto de vista de Lula? Do ponto de vista do PT? Do ponto de vista dos concorrentes e adversários do PT? 

Como Fausto, há inúmeras pessoas que opinam sobre “os erros” do PT, sem deixar claro de qual lugar falam. 

E como não existe Olimpo neutro a partir do qual se possa julgar os erros dos outros, a verdade é que estas pessoas consideram que foi um erro porque resultou na derrota da opção que elas achavam a mais adequada. 

Opção que, via de regra, não envolvia qualquer protagonismo do PT.

Ruy Fausto diz que Lula “candidato era o símbolo da continuidade, e a bandeira da continuidade era, no caso, perigosa. Além do que, talvez a coisa mais importante: se o prestígio de Lula era grande, a rejeição do nome dele era tão grande quanto…”.

Novamente, o cinismo se faz presente.

Lula liderou todas as pesquisas de opinião, apesar de perseguido, apesar de condenado, apesar de preso. 

Todas as pesquisas indicavam que ele seria eleito presidente, no primeiro ou no segundo turno, derrotando a todos os concorrentes, Bolsonaro inclusive. 

Foi por isso, aliás, que o TSE o impediu de ser candidato.

Portanto, não é verdade que a direção do PT simplesmente “esqueceu“ esse “elemento fundamental”. 

A verdade é que a direção do PT tentou até o limite garantir a candidatura de Lula. 

Entre outros motivos, porque – para usar os termos de Fausto – não estamos “confusos” em termos de liberdade e democracia. 

Diferente dos que acham normal a interdição de Lula.

Ruy Fausto acrescenta o “fato de que, desde o início, se sabia que a candidatura de Lula dificilmente obteria registro legal”. 

Esta frase envolve um tema de importância capital: o “fato” de que “dificilmente” vencerá, é argumento para alguém de esquerda desista de batalhas essenciais?

Claro que havia os iludidos, mas uma parte importante do PT sabia que dificilmente Lula obteria registro legal. 

Mas a luta pelo registro era parte importante da batalha democrática; e, também, era parte importante da acumulação de forças necessária para o caso do PT ser obrigado a substituir Lula por outra candidatura.

Pois quem quer que viesse a substituir Lula, só teria chance de ir ao segundo turno e vencer, se recebesse parte importante dos votos de quem desejava votar em Lula. 

Esta tese foi comprovada nas eleições de 2018.

Portanto, Ruy Fausto está certo quando diz que a “ênfase em sua candidatura não é inocente”; mas está absolutamente equivocado quando diz que “a burocracia do partido vive do mito Lula. Ela sabe que se ele tiver um sucessor, principalmente se for um bom sucessor, ela está morta”.

Primeiro, porque Lula não é um mito. O candidato chamado de “mito” nesta campanha é outro. 

Lula é a principal liderança viva da esquerda brasileira, tendo conquistado esta condição nas lutas políticas e sociais dos anos 1970, 1980, 1990 e durante seus dois governos.

Por isso, ilude-se quem acha que Lula terá um “sucessor”.

Lula não sucedeu Prestes, não sucedeu Brizola, não sucedeu Vargas. Lula é produto de circunstâncias históricas que não se repetirão. Pode ser que outras circunstâncias históricas gerem outras lideranças que cumpram papel similar ao que Lula cumpre hoje. Mas não será um “sucessor”.

Aliás, o uso da palavra “sucessor” , assim como da palavra “mito”, tem um significado implícito muito negativo, motivo adicional para serem rejeitados, ao menos para quem defende o papel positivo de Lula para as lutas da classe trabalhadora.

Isto posto, será verdade que “a burocracia do partido vive do mito Lula”? 

Será verdade que esta “burocracia” sabe “que se ele tiver um sucessor, principalmente se for um bom sucessor, ela está morta”.

Fausto não é do PT e não sei o quanto ele conhece da vida interna do PT. A partir do meu ponto de vista, acho que há camadas de má interpretação na afirmação dele.

O PT tem dezenas de milhares de dirigentes, parlamentares, governantes e intelectuais, que se alinham em torno de diferentes posições programáticas, táticas e estratégicas. 

É um absurdo enquadrar esta diversidade numa única palavra (“burocracia”); é outro absurdo achar que a relação deste mundo de gente com Lula tem um único propósito (a auto-sobrevivência da burocracia); e é bizarro acreditar que seria isto que impediria o surgimento de um “sucessor” para Lula (desconhecendo a impossibilidade de fazê-lo).

Além de um problema de interpretação, a análise de Fausto incorre em desinformação pura e simples. 

Ele diz que “a candidatura Haddad, até onde sei, foi apoiada essencialmente por Lula. A grande maioria do partido não o queria como candidato. Quando, afinal, não houve alternativa, e Lula se pronunciou pela candidatura do professor, a direção do partido adiou, o quanto deu, a troca de candidato. Gleisi Hoffmann humilhou Haddad o quanto pode”.

Os fatos são outros. A grande maioria do Partido queria Lula como candidato. No dia 5 de agosto, Lula indicou e a direção do Partido aprovou, quase que por unanimidade, o nome de Haddad para ser candidato a vice de Lula. E no dia 11 de setembro, Lula e a direção do Partido substituíram Lula por Haddad. Não houve nenhum tipo de “adiamento” contra Haddad, o que houve foi uma tentativa “até o limite” de fazer de Lula o candidato. 

Já a afirmação segundo a qual “Gleisi Hoffmann humilhou Haddad o quanto pode” não entra na categoria desinformação, entra na categoria “campanha orquestrada e mentirosa contra a presidenta do PT”. 

Campanha motivada pelo fato dela ter sido a principal expoente de todos e todas que defendiam manter a candidatura de Lula “até o limite”.

Pois, como lembra Ruy Fausto, havia quem defendesse “a possibilidade de lançar a chapa Ciro/Haddad, desejada pelos dois, mas vetada pela direção do partido, por Lula inclusive”.

Ruy não é do PT, mas poderia ao menos ser gentil com os fatos: não foi a direção, mas a imensa maioria da base e do eleitorado do Partido quem “vetava” uma candidatura Ciro/Haddad. 

Um “veto” por diversas razões, algumas das quais ficaram claras no segundo turno.

Fausto afirma que “lançado pelo partido, Haddad foi literalmente amarrado. O mote "Haddad = Lula" foi uma faca de dois gumes, um verdadeiro bumerangue, que levou votos a Haddad por parte dos admiradores de Lula, mas tirou os de todos aqueles que o rejeitavam”. 

Não é preciso ser filósofo, para perceber que este raciocínio move-se num mundo paralelo. Pois no mundo real, foi graças ao voto dos “admiradores de Lula” que Haddad conseguiu ir ao segundo turno e quase vencer as eleições.

O problema todo é que Ruy Fausto acha que Bolsonaro é um desastre, mas acha que o PT é o grande responsável pelo desastre, e por isso sua grande preocupação é criticar o PT. 

Assim, Haddad é um bom candidato, apesar do PT. Acertou, mas teria acertado mais se o PT tivesse deixado. E assim por diante. Até que, por deslizamento conceitual, ele passa a tratar do futuro do Haddad, como se o PT (e Lula) fossem detalhes incômodos.

Notem as frases: “Haddad era um candidato muito bom. Muito melhor que a direção do PT. Claramente anticorrupção. Claramente democrático. O partido o transformou num "poste", o que ajudou muito o adversário. Haddad virou um candidato “fraco“, coisa grave na situação atual. As ambiguidades de dirigentes do partido sobre esses três pontos serviram bem à oposição”.

Podemos discutir longamente sobre os aspectos positivos e negativos da pessoa física de Haddad como candidato. Mas é impossível explicar a performance eleitoral de Haddad, se desconsiderarmos (ou considerarmos como algo negativo) o papel de Lula e do PT. 

Ruy Fausto afirma que “a direção do PT chegou à irresponsabilidade de poupar Bolsonaro (o que nem Ciro, nem Boulos fizeram, e nem mesmo Alckmin), porque muito “habilmente“ se convenceu de que Bolsonaro seria o adversário mais fraco no segundo turno. Mesmo que houvesse supostas razões para acreditar nisso, um partido político de esquerda responsável tem de pesar muito bem o que representa um adversário em termos de perigo para a democracia e, portanto, também para a sua própria sobrevivência”.

Esta questão acima envolve uma discussão muito interessante, e muito necessária, até porque muita gente acredita nesta versão torta. 

Quem “poupou” Bolsonaro? O PT ou quem tirou Lula da disputa, quando Bolsonaro estava em segundo lugar?

Quem enfrentou Bolsonaro na disputa pelos votos populares? Foi Ciro, foi Alckmin? Ou terá sido, de fato, a candidatura do PT?

Depois que fomos forçados a substituir Lula por Haddad, o que contribuía mais para enfrentar Bolsonaro era, exatamente, fazer Haddad herdar a maior parte dos votos de Lula. Isto era a maneira prática, não de laboratório, de enfrentar Bolsonaro.

E quem achava que era mais fácil enfrentar Bolsonaro no segundo turno? O PT ou aquelas candidaturas (como Alckmin) que usaram grande parte do seu tempo para atacar o PT? Ou que tratavam Bolsonaro e o PT como se fossem igualmente negativos?

Ademais, vamos lembrar que o PT foi impedido de participar de vários debates presidenciais do primeiro turno. 

Enfim, a narrativa adotada por Ruy Fausto é engenharia de obra mal-feita. 

São os golpistas que devem responder por Bolsonaro, não o PT. 

Isto não quer dizer que o PT não deva reconhecer pelo menos dois erros importantes: 

a) especialmente depois da facada, quando ficou claro a consolidação do eleitorado de Bolsonaro e que ele iria para o segundo turno, deveríamos ter iniciado imediatamente uma dura campanha de desconstrução de Bolsonaro; 

b) não bastava carimbar Bolsonaro como fascista, racista, homofóbico, misógino, antidemocrático, golpista. Era preciso enfatizar o caráter ultraliberal, antipopular, antissocial, anti-classe trabalhadora de suas propostas. 

Curiosa mas compreensivelmente, Ruy Fausto é duro contra o PT, mas “passa o pano” em Ciro. 

O cidadão, que não participou da campanha no segundo turno, que não declarou voto explicito em Haddad, que continua atacando mais o PT do que Bolsonaro, recebe de Fausto a seguinte reprimenda: “teve bom papel na campanha, mas deu uma “mancada” final tomando uma posição neutra – o PT tem muita culpa nessa história”.

Ou seja, mesmo a “mancada” de Ciro é “muito culpa” do PT. Tudo é culpa do PT. Sempre.

A questão é: será possível “resistir” e derrotar Bolsonaro sem o PT? Essa questão banal parece estar muito além da filosofia de Fausto.



SEGUE A REPRODUÇÃO DO TEXTO PUBLICADO NO SITE DA CARTA CAPITAL
Esta entrevista faz parte da série “Reflexões Políticas”, publicada entre os dias 30 de outubro e 7 de novembro no site da CartaCapital. Convidamos Fernando Schüler, cientista político, Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, e Ruy Fausto, filósofo, para refletir sobre a esquerda atual e suas perspectivas para o futuro.
Série Reflexões Políticas | Entrevista | Ruy Fausto
'Burocracia do PT vive do mito Lula. Se houver sucessor, ela morre'
por Marina Gama Cubas — publicado 07/11/2018 01h02, última modificação 06/11/2018 15h49
Para o filósofo, a esquerda tem que se habituar a dizer a verdade sem medo. 'A verdade penetra muito mais do que se pensa, ela tem uma força prática imensa'
Para Ruy Fausto a esquerda precisa fazer uma reflexão em relação à crítica do populismo-patrimonialismo e a crítica da herança dos totalitarismos de esquerda
Falar a verdade e ter flexibilidade. Essa seria uma boa receita para a sobrevivência e renovação da esquerda brasileira, segundo Ruy Fausto, professor emérito do departamento de Filosofia da USP. Para o filósofo, que estuda Marx e a esquerda contemporânea, a verdade tem o que ele chama de "força prática" que os "pseudosbababans" desconhecem. A flexibilidade, explica, está na capacidade de dialogar com o outro.
Fausto se apresenta como um membro da esquerda independente e vai além: defende que o discurso da esquerda precisa ser reconstruído não apenas na forma, mas em seu conteúdo. "Quais os pontos principais dessa reconstrução? A crítica do populismo-patrimonialismo e à herança mal liquidada dos totalitarismos de esquerda", defende.
Em seu livro, Caminhos da Esquerda (editora Cia. das Letras), Fausto faz uma longa reflexão sobre os temas que permeiam esta entrevista, concedida por e-mail. Para ele, a burocracia do Partido dos Trabalhadores impediu tanto o avanço de Fernando Haddad nas urnas com uma renovação da esquerda brasileira.
Tal burocracia, diz Fausto, só sobrevive nos dia atuais pela insistência em colocar Lula no centro dos planos futuros do partido. "Lula candidato era o símbolo da continuidade, e a bandeira da continuidade era, no caso, perigosa", afirma.
Leia a entrevista a seguir. 
CartaCapital: O que significa a vitória de Jair Bolsonaro?
Ruy Fausto: Não há como ocultar a realidade. É um verdadeiro desastre nacional. Agora há uma tendência a praticar um discurso mistificante, que deixa na penumbra o que está ocorrendo. Em nome da pacificação dos espíritos, ou sob o manto de discussões confusas que tratam das novas tecnologias e o novo capitalismo – tecnologias ultramodernas tiveram um grande papel na vitória de Bolsonaro, mas o fenômeno não é tecnológico, é político. Perdeu-se de vista o essencial e uma extrema-direita muito radical e extremamente perigosa chegou ao poder no Brasil.
CC: O que a vitória de Bolsonaro diz sobre a sociedade brasileira? E sobre os partidos políticos que se apresentam hoje?
RF: Começo refletindo sobre o evento, tentando depois indagar as suas causas, que poderiam iluminar um pouco o que se passa na sociedade brasileira. Fico pensando: 57 milhões e meio de brasileiros votaram num candidato que elogia não só a ditadura militar, mas a ala extremista dessa ditadura, aquela que se opunha a qualquer abertura mais o resto: racismo, homofobia etc.
Como isso foi possível? Tentando resumir, eu diria: os fatores fundamentais foram a utilização do tema da corrupção, o problema da violência, a orquestração desonesta em torno de temas “de sociedade", mais o uso sistemático e ilegal de certos meios ultramodernos de comunicação. Em quase tudo isto, a responsabilidade da direção do PT foi imensa. Em quê isso reflete a sociedade brasileira?
A enorme desigualdade - tema fundamental que acabou sendo mais ou menos esquecido pela esquerda, que desemboca frequentemente numa posição radical, que pode ser de esquerda, mas em certas condições - no nosso caso: vazio político, desgaste de todos os partidos, violência - pode ser de extrema direita. Foi o que aconteceu.  
CC: Como o campo progressista brasileiro pode se organizar para que um novo paradigma de senso comum, crítico e racional permeie o processo decisório popular brasileiro?
RF: A reorganização da esquerda já se impunha antes do 28 de outubro e agora se impõe com muito maior urgência. É preciso reconstruir o discurso da esquerda, não só na forma, mas também no seu conteúdo. Quais os pontos principais dessa reconstrução?
Como venho insistindo há muito tempo - e não estou sozinho nisso -, os dois pontos principais são a crítica do populismo-patrimonialismo e a crítica da herança mal liquidada dos totalitarismos de esquerda. Em algumas coisas, essas duas exigências se intersectam, mas não em tudo. 
Concretamente: é preciso levar a sério o problema da corrupção. Claro que ele não é o único e talvez nem o mais importante - o problema da desigualdade o supera sob muitos aspectos. Mas sem repensar o tema da corrupção, ao contrário do que pretendem certas sociologias fáceis, a esquerda não tem futuro. 
O segundo aspecto é a exigência de uma recusa radical de todo autoritarismo, seja ele de direita ou de esquerda. A esquerda brasileira, como parte da esquerda mundial, continua confusa em matéria de liberdade e de democracia. Há muito autoritarismo difuso, que nos atrapalha.
Isso posto, trata-se de saber como a nossa mensagem chegará ao povo. A meu ver, precisamos de duas coisas: por um lado, muita verdade. Temos de nos habituar a dizer a verdade, e sem medo. O outro lado está na capacidade de ouvir o outro, o que exige grande flexibilidade. As duas coisas não são incompatíveis. A verdade penetra muito mais do que se pensa, ela tem uma força prática imensa que os "pseudobambambans" da habilidade política desconhecem. 
No plano organizatório, precisamos de uma ampla frente dos diferentes partidos de esquerda, mais a participação efetiva da massa de homens e de mulheres de esquerda que não estão ligados a nenhum partido. O papel deles e delas se viu nas grandes manifestações de alguns anos atrás, e também no final da campanha do segundo turno: quantos milhões eles e elas representam? Cinco? Dez?
Não sei, mas são muitos, muitos mesmo. E até aqui eles e elas não foram levados em conta suficientemente. Pense-se também nos mais ou menos 42 milhões de pessoas que votaram em branco, votaram nulo, ou não compareceram aos locais de votação - claro que em parte isso se explica por outros motivos, mas uma proporção grande é, sem dúvida, de gente que pelo menos não "engoliu“ a fala de Bolsonaro, embora não aceitasse a de Haddad. Há que se preocupar com todo esse povo.
CC: A atmosfera social brasileira durante o processo eleitoral deflagrou episódios de violência motivados e potencializados pelo discurso de intolerância. Segundo o filósofo Karl Popper, a tolerância ilimitada leva, paradoxalmente, ao desaparecimento da tolerância. Como a sociedade brasileira pode estabelecer limites às ondas de intolerância?
RF: Tentemos dar o nome aos bois. Claro que do lado da esquerda – principalmente por ela agir sob o comando de certo partido hegemônico – nem tudo foi perfeito. Mas, a esse respeito, como em outros casos, a simetria é ilusória. Não há simetria. A violência, a intolerância veio e virá da extrema-direita representada por Bolsonaro e as forças que o apoiam. Se andou comparando as reiteradas declarações antidemocráticas do candidato eleito com o que disse uma vez tal ou qual deputado do PT.
Esse método é ruim. Há que compare às falas de Bolsonaro com a trajetória (claro que com pontos altos e pontos baixos) do PT nos seus catorze anos de governo. Pode ter havido muita coisa ruim, mas não houve atentado à democracia. Se quisessem tentar alguma jogada antidemocrática já o teriam feito.
E as falas do candidato eleito tiveram e têm um efeito imediato: os seus partidários caçam homossexuais, tentam amordaçar os professores, propondo que se filmem à sorrelfa as aulas, além dos assassinatos políticos. Dirão que ele mudou de linguagem depois de eleito. Um pouco, mas ele voltou a ameaçar os “vermelhos” do PT, se lançou contra a Folha de S. Paulo, e declarou ainda uma vez que a ditadura não foi ditadura.
CC: Tentando fazer uma distinção entre os erros das partes, na opinião do senhor, quais foram os principais equívocos do PT e quais foram os de Fernando Haddad na eleição?
RF: A responsabilidade da direção do PT em tudo isso foi enorme. O lançamento da candidatura Lula foi um erro, como declarei sucessivas vezes em entrevistas e artigos. Não quero dizer com isso que não se devesse defender Lula, mas isso não implicava na necessidade de lançá-lo como candidato. Lula tinha e, em parte ainda tem, grande prestígio, mas já teve dois mandatos como presidente. 
Ele candidato era o símbolo da continuidade, e a bandeira da continuidade era, no caso, perigosa. Além do que, talvez a coisa mais importante: se o prestígio de Lula era grande, a rejeição do nome dele era tão grande quanto…
A direção do PT simplesmente “esqueceu“ esse elemento fundamental. A acrescentar o fato de que, desde o início, se sabia que a candidatura de Lula dificilmente obteria registro legal. Essa ênfase em sua candidatura não é inocente: a burocracia do partido vive do mito Lula. Ela sabe que se ele tiver um sucessor, principalmente se for um bom sucessor, ela está morta.
A candidatura Haddad, até onde sei, foi apoiada essencialmente por Lula. A grande maioria do partido não o queria como candidato. Quando, afinal, não houve alternativa, e Lula se pronunciou pela candidatura do professor, a direção do partido adiou, o quanto deu, a troca de candidato. Gleisi Hoffmann humilhou Haddad o quanto pode.
Além da possibilidade de apresentar desde logo um candidato novo – e o melhor era certamente Haddad – havia a possibilidade de lançar a chapa Ciro/Haddad, desejada pelos dois, mas vetada pela direção do partido, por Lula inclusive. Lançado pelo partido, Haddad foi literalmente amarrado. O mote "Haddad = Lula" foi uma faca de dois gumes, um verdadeiro bumerangue, que levou votos a Haddad por parte dos admiradores de Lula, mas tirou os de todos aqueles que o rejeitavam.
Quanto aos erros de Haddad: custou muito a mudar, e poderia ter mudado mais. Aceitou no início o papel que o partido lhe deu. Se o deixassem mais solto, ele certamente teria se saído melhor. Ele foi mudando o seu discurso, deu bons passos no sentido da autocrítica, mas não foi, ou não pode ir mais longe, porque dependia do partido. A mudança foi tardia, mas em geral foi bastante bem. Felizmente, houve a virada final. Sem ela, talvez Haddad tivesse ficado queimado. 
CC: Acredita que o nome de Haddad saiu mais forte do pleito? Na sua opinião, ele tem chances de ser o novo nome no campo de esquerda e/ou progressista?
RF: Na minha opinião, Haddad era um candidato muito bom. Muito melhor que a direção do PT. Claramente anticorrupção. Claramente democrático. O partido o transformou num "poste", o que ajudou muito o adversário. Haddad virou um candidato “fraco“, coisa grave na situação atual. As ambiguidades de dirigentes do partido sobre esses três pontos serviram bem à oposição. 
CC: Quais aspectos Haddad deveria melhorar em si para se tornar uma liderança política nos próximos anos? 
RF: Não duvido de que gente da direção do PT, entre outras gracinhas, vá por a culpa em Haddad. Fora isso, ouve-se, por parte de alguns petistas, um discurso otimista do tipo: "Elegemos uma boa bancada federal, quatro governadores, tivemos quase 47 milhões de votos. Que beleza!".
Não desprezo, mas nada disso compensa a vitória de um candidato neototalitário. Era melhor ter a metade da bancada e a metade dos governadores, e não digo ter ganho a eleição presidencial (aí o saldo seria mesmo enorme) ou  mesmo ter perdido para qualquer candidato de centro direita, que continuaria a por em prática a mesma política reacionária, mas não poria em risco as instituições.
Não nos esqueçamos de que a direção do PT chegou à irresponsabilidade de poupar Bolsonaro (o que nem Ciro, nem Boulos fizeram, e nem mesmo Alckmin), porque muito “habilmente“ se convenceu de que Bolsonaro seria o adversário mais fraco no segundo turno. Mesmo que houvesse supostas razões para acreditar nisso, um partido político de esquerda responsável tem de pesar muito bem o que representa um adversário em termos de perigo para a democracia e, portanto, também para a sua própria sobrevivência.
CC: O que deverá acontecer com a esquerda brasileira nos próximos anos? Ou no que precisam estar preocupados para sobreviver?
RF: É preciso reorganizar as forças. Ciro, que teve bom papel na campanha, mas deu uma “mancada” final tomando uma posição neutra – o PT tem muita culpa nessa história – prepara uma aliança com vários partidos: PSOL, PDT, PCdoB, mas sem o PT.
Com relação a Boulos, candidato pelo PSOL, acho que teve bom desempenho, mas precisaria se livrar das suas ilusões bolivarianas.
Haddad prepara um outro esquema. Precisamos saber: como Haddad se relacionará com a direção do seu próprio partido? Ele será capaz de dar um outro caminho ao PT? Continuará fazendo concessões? Ou será obrigado a romper e constituir um outro movimento?
CC: Os movimentos sociais que ressurgiram nessa eleição deverão perdurar ou ocorrerá certa resignação a partir de agora? Acredita que se manterão sem uma ligação fisiológica com os partidos políticos?
RF: Até aqui, a resistência, antes e depois do resultado, tem sido boa. Não esqueçamos de que Bolsonaro tem contra si as forças vivas do país - um exemplo: mais de mil advogados assinaram uma petição pró-Haddad; menos de cem, em favor de Bolsonaro. Sobre a relação com os partidos, creio que já disse o suficiente: organizações e provavelmente partidos são indispensáveis, mas sem que haja subordinação a interesses burocráticos que jogam contra nós e até marcam gols contra.
Importante destacar em quê o governo Bolsonaro é perigoso. Não se pode prever em detalhe. Mas os “análogos“ de Bolsonaro tentaram sempre, com êxito ou não, dominar o poder, mantendo certas formas democráticas ou pseudodemocráticas.
Vejam um cenário possível para o novo governo: sem acabar com a “democracia”, ele pode atuar em várias frentes. O Ministério Público de certos estados é claramente parcial. Como serão certos Ministérios Públicos sob Bolsonaro?
De qualquer modo, não será difícil denunciar e condenar muita gente, em nome da luta contra a corrupção. Sabemos da violência da Polícia Militar em manifestações. Como será a PM sob Bolsonaro, que promete garantias excepcionais em caso de "acidente"? Ele pode também pressionar as universidades e centros de pesquisa, limitando drasticamente as verbas.
Enfim, como declarou um historiador, a Constituição de 88, apesar das suas qualidades, dá, como se sabe, certos poderes às Forças Armadas, que podem facilmente ser utilizadas por governantes, para perverter a democracia. No plano das grandes instituições, seria mais ou menos o esquema posto em prática por Viktor Orban, na Hungria. Isto acontecerá no Brasil? Não é certo. Mas, a meu ver, só não ocorrerá se “resistimos“.
Não se trata de fazer apelos à violência, mas resistir mantendo um olhar lúcido e sem concessões para o que está aí. Resistir no legislativo - através das bancadas de esquerda -, nos executivos estaduais e municipais, no judiciário, resistir na Universidade, na mídia, nas ONGs, na rua. Resistir.   




4 comentários:

  1. Um texto pra ser publicado no Sítio do PT!..
    Considero a estratégia e a tática adotadapelo PT erradas, não ao nível desse Ruy Fausto e outros....

    Estratégia: derrotar o golpe
    Tática: um passo atrás e dois na frente
    Velha e genial tática leninista.
    Infelimente o golpe venceu!..
    Trabalho redobrado agora!..
    Avante!.,,

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  2. Excelente texto. O PT foi derrotado simplesmente porque a classe dominante usou os meios para defender seus interesses dentro da luta de classes. Sobretudo, porque usou as velhas táticas de associar o partido e ascensão das classes populares a algo de ruim, e assim combater a participação na política e as conquistas de direitos que de outra forma não seria possível. Se a vitória do Bolsonaro é culpa do PT, então o que entrevistado queria, que o partido não participasse da política? Ora, a César o que é de César, a vitória da direita se deve ao esforço descomunal da classes dominante para enfrentar as conquistas representas pelo campo popular nos últimos anos.

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  3. Boa análise. Antes do segundo turno o Fausto publicou texto na Folha, já apontando dedo na cara do PT, exigindo "autocrítica". E agora, claro, sai do pedido de "autocrítica" para a condenação pura e simples. Me espanto -- mas não é de espantar -- que a Carta Capital publique um texto digno do PIG. Mas a Carta Capital é pura ambiguidade, para ser gentil.

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  4. Perfeito. As vezes gostaria muito que o PT propusesse ao invés de uma "autocrítica" uma "auto dissolução" e simplesmente desaparecesse, só para ver o que os gênios de plantão, os manéquiavéis, os profetas do fato consumado, os que sempre haviam dito (sindrome do Confuso, famoso personagem de Hannah Barbera) proporiam e, mais do que isso, o que fariam. Seria divertidíssimo.

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