quarta-feira, 9 de maio de 2018

Marx e Zizek


Lavra Palavra publicou, no dia 2 de maio de 2018, um interessante texto de Slavoj Zizek sobre Marx.

Intitulado “Marx hoje: o fim está próximo… apenas não da forma que imaginávamos”, o texto foi publicado originalmente por Philosophical Salon e traduzido para o português por Daniel Alves Teixeira.

Segue o endereço onde o texto pode ser lido:

Comecemos pelo final, quando Zizek fala da “relevância da crítica de Marx à economia política em nossa era do capitalismo global”.

Segundo Zizek, a “crítica de Marx à economia política” e “seus contornos da dinâmica capitalista” são “totalmente atuais”.

Mais ainda: “é apenas hoje, com o capitalismo global, que, em termos hegelianos, a realidade chegou ao seu conceito”.

Entretanto, “neste exato momento de plena atualidade a limitação tem que aparecer, o momento do triunfo é o da derrota. Depois de superar os obstáculos externos, a nova ameaça vem de dentro, sinalizando inconsistências imanentes. Quando a realidade alcança plenamente seu conceito, esse conceito em si precisa ser transformado”.

Como literatura é ótimo, mas a conclusão é a seguinte: “a solução marxista clássica fracassou, mas o problema permanece”.

E segue: “o comunismo não é hoje o nome de uma solução, mas o nome de um problema, o problema dos comuns em todas as suas dimensões – os comuns da natureza como a substância de nossa vida, o problema de nossos comuns biogenéticos, o problema de nossos bens culturais ("propriedade intelectual") e, por último mas não menos importante, os comuns como o espaço universal da humanidade do qual ninguém deve ser excluído. Qualquer que seja a solução, ela terá que lidar com esses problemas”.

Até aí, já chegaram as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, que agora se chama Força Alternativa Revolucionária do Comum.

A questão, portanto, é entender o que ele quer dizer com a frase: “a solução marxista clássica fracassou, mas o problema permanece”. A resposta está no início do artigo.

Zizek, baseado em Cohen, enumera as seguintes “características da noção marxista clássica da classe trabalhadora”:

1) ela constitui a maioria da sociedade;
2) ela produz a riqueza da sociedade;
3) ela consiste nos membros explorados da sociedade;
4) seus membros são as pessoas necessitadas na sociedade.

Combinadas, estas características resultariam (diz ele) em duas outras afirmativas:

5) a classe trabalhadora não tem nada a perder com uma revolução;
6) ela pode e vai se envolver em uma transformação revolucionária da sociedade.

Mas, segundo Zizek, “nenhuma das quatro primeiras se aplica à classe trabalhadora de hoje”; por isso, as duas últimas características não poderiam ser geradas.

Feita a ressalva de algum erro de tradução, Zizek está errado. Aliás, ele intui isto, pois logo em seguida afirma que “mesmo que algumas das características continuem a se aplicar a partes da sociedade de hoje, elas não estão mais unidas em um único agente: as pessoas necessitadas na sociedade não são mais os trabalhadores, etc.”.

Para economizar, vamos admitir que os seis itens acima sejam mesmo a enumeração das “características da noção marxista clássica da classe trabalhadora”.

A classe trabalhadora constitui a maioria da sociedade?
De que sociedade estamos falando? Vamos pressupor que estamos falando da humanidade como um todo, neste ano santo de 2018.

De que maioria estamos falando? Relativa ou absoluta? Se estamos discutindo se é válido hoje o que Marx dizia em 1848 ou em 1883, então a lógica indica que estamos falando de maioria relativa.

E do que estamos falando, quando falamos de classe trabalhadora
Seguro que estamos falando daquelas pessoas que vendem a sua força de trabalho em troca de um salário. Mas não apenas dos que estão na ativa, mas também dos aposentados que vivem de suas pensões ou do salário de seus familiares. E também dos filhos e filhas que vivem do salário de seus parentes.

Pois bem: quem é a maioria relativa da humanidade, hoje? Certamente não é composta por capitalistas, por pessoas que vivem da riqueza extraída dos produtores. Será então que a maioria é composta por pequenos proprietários? É muito provável que fosse, antes do crescimento explosivo da China. Mas hoje, de quem é a maioria relativa?

Vamos supor, novamente para economizar, que houvesse no mundo um número igual de trabalhadores pequenos proprietários e de trabalhadores assalariados. Pergunto: observado historicamente, tomando como ponto de partida 1818 e como ponto de chegada 2018: quem cresceu?

A classe trabalhadora produz a riqueza da sociedade?
Já definimos antes “classe trabalhadora” e “sociedade”. E “riqueza”? Como estamos falando, ao menos supostamente, do “pensamento marxista clássico”, então por riqueza devemos entender a totalidade das mercadorias cujos valores de uso atendem ao estômago e/ou a fantasia.

No tempo de Marx, parte muito importante da riqueza da scociedade humana não era produzida por trabalhadores assalariados, mas sim por camponeses, artesãos pequeno proprietários e pelo trabalho comunitário.

Portanto, novamente por razões de simetria lógica, a definição só pode ser a seguinte: “a classe trabalhadora assalariada produz a maior parte e/ou a parte mais importante da riqueza da sociedade”?

E a resposta é ainda mais clara do que a anterior: a maior parte da riqueza da sociedade humana atual é produto do trabalho de assalariados.

A classe trabalhadora consiste nos membros explorados da sociedade?
Já definimos classe trabalhadora e sociedade. Qual a definição de “explorados”? Novamente, se estamos falando de algo que corresponda à definição clássica do marxismo, então estamos falando de uma relação social entre os que trabalham/produzem e os que vivem do trabalho/produção dos outros.

Não estamos falando de opressão. E também não estamos falando que a exploração do trabalho assalariado seja a única forma de exploração. Nos tempos de Marx, o trabalho pequeno proprietário e o escravo e o servo eram igualmente explorados. Portanto, por analogia lógica, a afirmação segue válida se ainda hoje os trabalhadores sejam explorados, ainda que não sejam os únicos explorados.

Novamente a resposta é: a classe trabalhadora faz parte dos membros explorados da sociedade.

Os membros da classe trabalhadora são as pessoas necessitadas na sociedade?
O que são “as pessoas necessitadas”? Necessitadas do quê?

Novamente, nosso ponto de partida é aceitar sem discutir que esta definição corresponda ao que Marx dizia em sua época. Pois bem, já naquela época a classe trabalhadora não era homogênea, nem permaneceu imutável, inclusive porque os socialistas e comunistas não se limitaram a interpretar, mas lutaram por mudar o mundo.

Noutras palavras: a classe trabalhadora realmente existente incluiu, em percentuais diferenciados em cada época ou região, do pauperismo lumpen até a “aristrocracia proletária”. E ainda hoje é assim. Com um detalhe fundamental: o característico, o mais frequente, o mais universal ao longo da história do capitalismo não é a aristocracia operária. E, nos tempos que vivemos, certamente não é.

A classe trabalhadora não tem nada a perder com uma revolução?

Lembremos: esta afirmação seria parte do pensamento marxista clássico. Portanto, ela não pode ser tomada ao pé da letra. A classe trabalhadora, numa revolução, perde parte de seus filhos e filhas, mortos em combate. Portanto, quando se fala em “nada a perder”, o que se quer dizer é que a classe (não cada indíviduo singular que a compõe) não tem nada a perder, ou seja, não vai perder a sua posição social. Pois não tem como “cair mais”, uma vez que já é a classe explorada.

Neste sentido, há alguma dúvida que a afirmação segue válida? Aliás, se observarmos tudo o que ocorreu de 1818 até hoje, a conclusão é: onde houve revolução, por mais tragédias que tenha havido, a classe trabalhadora manteve ou ampliou suas posição social.

A classe trabalhadora pode e vai se envolver em uma transformação revolucionária da sociedade?
Nos tempos de Marx, isto certamente foi verdade. Mas também naqueles tempos, não era verdade para todos e cada um dos integrantes singulares da classe trabalhadora, nem em cada país, nem em escala mundial. E, se de novo observarmos o que se passou entre 1818 e 2018, não houve uma única transformação revolucionária que não tenha “envolvido” a classe trabalhadora.

Portanto, Zizek não está correto quando diz que “nenhuma das quatro primeiras se aplica à classe trabalhadora de hoje”; também não está correto quando diz que as “duas últimas características não poderiam ser geradas”.

Qual a origem do erro? Uma interpretação equivocada acerca da relação entre a capacidade de sobrevivência do capitalismo e a capacidade de luta da classe trabalhadora. Que o capitalismo tenha conseguido sobreviver, que a classe trabalhadora não tenha conseguido triunfar, não decorre que a classe trabalhadora não seja capaz disso por razões estruturais, genéticas.

O capitalismo
Zizek diz que “o impasse histórico do marxismo reside não apenas no fato de que ele contava com a perspectiva da crise final do capitalismo, e portanto não conseguiu compreender como o capitalismo saiu de cada crise fortalecido”.

O debate sobre o capitalismo, sua crise e sua “crise final” é para lá de complexo, existindo tantas posições diferentes defendidas por pessoas que se reclamavam do marxismo, que é um abuso falar de “marxismo” no singular.

Ademais, se pesquisarmos a literatura sobre a história do capitalismo e de suas crises, vamos encontrar diversas explicações  feitas por marxistas, que buscaram compreender porque o capitalismo segue existindo, neste ano santo de 2018. Zizek pode não concordar com nenhuma destas explicações, é direito dele, mas é outro abuso dizer que nenhum dos “marxismos realmente existentes” foi capaz de “compreender” por quais motivos o capitalismo segue existindo. E fortalecido!

Mas o maior abuso está na afirmação inicial, acerca do “impasse histórico” do marxismo. Explico: se compreendermos por marxismo a tradição inaugurada por Marx e Engels, então temos que lembrar que esta tradição não se propunha apenas a interpretar, mas também a transformar o mundo, especificamente no sentido de acabar com capitalismo e construir o comunismo.

Assim, se as palavras fazem algum sentido, e se a tradução é fiel ao autor, só faria sentido falar de“impasse histórico” se as afirmações fundamentais feitas por Marx, Engels e seguidores acerca do capitalismo estivessem globalmente equivocadas.

E quais são estas afirmações fundamentais? O “segredo” do capitalismo, sua dinâmica da acumulação, sua tendência à superação por outro modo de produção.

Nenhuma destas afirmações está equivocada. Aliás, é o próprio Zizek, citando Streeck, quem confirma indiretamente isto. E, se quisermos ir mais longe, já em 1848 a famosa nota de rodapé do Manifesto Comunista admitia a possibilidade de destruição das classes em luta, possibilidade que deu no famoso slogan difundido por  Rosa Luxemburgo: “socialismo ou barbárie”.

Assim, a questão é, novamente citando Streeck: estamos em meio a um “processo prolongado de decadência e desintegração”. Existirá ou não um “agente para dar a esta decadência uma reviravolta positiva e transformá-la em uma passagem para algum nível superior de organização social”?

Esta questão não deve ser descrita como um impasse histórico, mas sim como a missão histórica daqueles que se pretendem orientados pelo marxismo. E, vale repetir, a possibilidade de que ao final dê tudo errado não é alheia ao marxismo.

Uma crítica vintage
Zizek diz que “a visão de Marx era a de uma sociedade gradualmente se aproximando de sua crise final, uma situação na qual a complexidade da vida social é simplificada em um grande antagonismo entre capitalistas e a maioria proletária. No entanto, mesmo uma rápida olhada nas revoluções comunistas do século XX deixa claro que essa simplificação nunca ocorreu”.

Vamos admitir, novamente por economia, que Marx fosse mesmo autor e tomasse ao pé da letra, como fenômeno histórico e político, não como descrição genérica de uma tendência de longo prazo, a ideia da “simplificação”.

Pergunto: quem melhor demonstrou que esta simplificação “nunca ocorreu” foram as “revoluções comunistas do século XX”?

A resposta é: não. Zizek confunde aqui dois processos diferentes.

A expansão capitalista sempre gera polarização. Esta polarização tende a ser mais aguda na periferia do que no centro. Quanto mais próximo da periferia, maior a possibilidade da polarização se converter numa ruptura, por dois motivos: classe dominante com maiores dificuldades para dominar, classes dominadas com mais motivos para lutar. Quando mais próximo do centro, menor a possibilidade da polarização se converter numa ruptura. Neste caso, também por dois motivos: classe dominante com maiores meios para dominar, classes dominadas com menos motivos para lutar.

Portanto, o “grande antagonismo entre capitalistas e a maioria proletária” é uma simplificação de uma tendência realmente existente. Com um detalhe interessante: em alguns momentos da história, este antagonismo se torna grande inclusive no centro.

Vejamos agora o segundo assunto: as “revoluções comunistas do século XX”. 

Vou dar de barato que por “revoluções comunistas” se pretende designar revoluções dirigidas por comunistas. Estas revoluções foram um combinado de pelo menos duas do que segue: revoluções dos trabalhadores assalariados contra a dominação do capital, revoluções camponesas ou burguesas tardias contra o feudalismo, revoluções nacionais contra o imperialismo.

Por exemplo: a Revolução de Outubro. Zizek erra quando fala que ela "explicitamente tratou os camponeses como aliados secundários”. Pelo contrário: a tradição bolchevique é toda construída a partir do debate contra os populistas, e este debate girava ao redor da questão agrária e do papel do campesinato. Nesta questão, mencheviques e bolcheviques tinham opiniões muito diferentes. Exemplo disso é que na discussão sobre a revolução de 1905, Lenin defendia uma ditadura democrático revolucionária do campesinato e do operariado. Depois, a aliança operário-camponesa seria uma das grandes novidades de 1917, contrastando com a tradição obreirista da social-democracia alemã. Aqui Zizek talvez quisesse criticar o que ocorreu no final dos anos 1920, não da Revolução de Outubro de 1917.

Mas nem toda revolução do século XX foi dirigida por comunistas. Cito, por exemplo, a mexicana e a iraniana. Mas as que mudaram mais profundamente o século XX foram dirigidas por comunistas. Dizer que estes foram “parasitas” é, para além de uma besteira retórica, uma incompreensão profunda.

Pois a questão é: o fato de que uma minoria tenha conseguido se converter em vanguarda de amplas maiorias revela não que este minoria foi oportunista; mas sim que a “pauta” desta minoria tinha aderência real. Dito de duas outras formas: a) as revoluções burguesas tardias empurram o campesinato e as massas pobres urbanas para um radicalismo igualitarismo que transborda inclusive seus interesses de pequenos proprietários; b) em certas circunstâncias históricas, para derrotar o feudalismo e o imperialismo, é preciso derrotar também o capital.

Claro, a tese de que os comunistas foram parasitas que se aproveitaram de circunstâncias excepcionais ajuda a fortalecer uma certa narrativa. Mas ela é duplamente equivocada, pois as guerras nunca foram “excepcionais” no capitalismo do século XX.

Portanto, não é apenas o "problema" do comum que permanece. 

(sem revisão)

2 comentários:

  1. Valter, falar de Marx nesses duzentos anos passando ao largo de Lênin, Stálin, Mao Tse Tung, Fidel, Ho Chi Min, Kim Il-sung, Samora Machel é piada de Trosko ou Gramisciano não achas?

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  2. Entretanto concordo com Zizek que muitos trabalhadores hoje se sentem empreendedores e isto retira sua radicalidade de despossuídos. Neste sentido não existe mais uma revolução automática.

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