Existe a direita truculenta, de Bornhausen (“acabar com esta raça”), Antonio Carlos Magalhães (“chamem os militares”) e Fernando Henrique Cardoso (“a ética do PT é o roubo”). Mas existe também outra direita, disposta a emprestar a bijouteria, para manter gordos os dedos e intocada a prataria da Casa Grande.
O melhor exemplar desta outra direita, que chamaremos aqui de sagaz, é o deputado federal Antonio Delfim Netto, ex-ministro dos governos militares e colaborador permanente da revista Carta Capital.
A direita sagaz parte do pressuposto de que Lula será reeleito, no primeiro ou no segundo turno. Sendo assim, mais importante do que enfrentar Lula na eleição presidencial, é criar as condições para influenciar seu futuro mandato e preparar o caminho para retomar o controle total do governo federal, nas eleições de 2010, quando Lula não poderá ser candidato à presidência da República.
Tanto os truculentos, quanto os sagazes estão de olhos postos em 2010. José Serra, Aécio Neves e o próprio Geraldo Alckmin sabem que o fim da verticalização estimulará, daqui há quatro anos, a pulverização de candidaturas presidenciais. Sabem, também, por experiência própria, que as facilidades da reeleição se transformam muito facilmente nas dificuldades do segundo mandato. Sabem, finalmente, que não existe candidato natural à sucessão de Lula. Pelo contrário, a tendência é que haja acirrada competição pelo posto, tanto no interior do PT quanto nos partidos aliados.
As duas direitas sabem, também, que para terem chance de vitória em 2010, será necessário que o segundo mandato de Lula seja –do ponto de vista do povo-- inferior ao primeiro mandato. Por isso, apostam sua ficha na eleição de parlamentares e governadores vinculados à oposição, tanto para dificultar a gestão cotidiana do futuro governo federal, quanto para impedir vôos mais ousados. No que seguirão contando, já sabemos, com o apoio da maior parte do Judiciário e dos grandes meios de comunicação.
Os sagazes e os truculentos coincidem, igualmente, na percepção de que o segundo mandato de Lula transcorrerá numa conjuntura bastante diferente da atual. Tanto a burguesia, quanto os setores populares (militantes ou não) terão outro comportamento, frente a um governo que não será mais novdade. A esquerda política e social terá mais experiência e capacidade de lidar com a máquina governamental. A conjuntura latino-americana, apesar de todas as contradições, estará marcada pelo predomínio de governos de centro-esquerda, não de centro-direita. E, principalmente, o cenário internacional será muito mais difícil, tanto na economia quanto na política.
Frente a este cenário, o próximo governo, qualquer que seja, terá que apostar num caminho “neo-desenvolvimentista”. A questão é: qual a natureza deste “neo-desenvolvimentismo”? Ou ainda: quem pagará a conta?
Se depender das duas direitas, será um “desenvolvimentismo” feito de costas para a América Latina, impulsionado pelo setor privado e financiado pelo Estado, sem aumento de impostos e sem redução nos encargos da dívida. Noutras palavras: sem redução da desigualdade social e sem ampliação da democracia política. Pelo contrário, será um desenvolvimentismo financiado através de cortes sociais, da redução dos direitos trabalhistas e contenção dos movimentos sociais.
Aqui começam as diferenças entre as duas direitas. Enquanto os truculentos estão convencidos de que um segundo mandato Lula enveredará inevitavelmente pelo caminho do que eles chamam de “populismo”, os sagazes acreditam que é possível cooptar o futuro governo para suas teses (que Delfim Netto expõe pacientemente em suas colunas semanais na revista Carta Capital). Mais que isso: os sagazes acreditam que é possível fazer “Lula se desgarrar do PT e formar uma coalização de partidos de centro-esquerda, para governar e promover as reformas”. No topo das reformas, para variar, estaria a reforma da previdência (as vezes parece que a utopia da direita é um mundo onde não haja vida após-o-trabalho).
Outros são ainda mais ousados e sonham com a criação de um partido lilás, originado da fusão do PT com o PSDB. Este sonho, é bom lembrar, não vem de agora e nem é limitado as fileiras da direita.
Já na campanha de 1994, Francisco Weffort, quando ainda era petista, comemorava publicamente o fato daquela eleição presidencial estar sendo disputada –dizia ele-- por dois candidatos de esquerda. No início do governo FHC, José Genoíno e outros trabalharam por uma aproximação entre o PT e o PSDB, que se traduziu numa êfemera revista comum e na oposição baixo-perfil que foi feita contra o governo Covas, no estado de São Paulo. Naquela época, dizia-se que o PFL era a “parte ruim” do governo fernandino. Já no governo Lula, o PSDB recebeu vários afagos: desde a indicação do presidente do Banco Central, passando pela manutenção de parte da equipe de Malan, até a recusa em promover uma devasse nos oito anos de mandarinato tucano. Mesmo em 2005, quando os ataques contra Lula e contra o PT estavam no seu ponto máximo, Luís Gushiken defendia publicamente a aliança entre os dois partidos.
Declarações recentes de Tarso Genro, ministro das Relações Institucionais Tarso Genro, vão na mesma linha. Nas palavras da revista Época, Tarso “tirou do balaio a agulha e a linha que cerziriam esse Frankenstein político”. Exagero? Certamente. Mentira? De jeito nenhum, como se pode constatar da leitura do artigo “Concertando a reforma”, assinado por Tarso Genro e publicado na Folha de S. Paulo no dia 11 de junho de 2006.
Tarso começa este artigo (ver principais trechos no box) com uma analogia cujo alcance ele não parece perceber completamente: a comparação entre a Constituição brasileira de 1988 e a Constituição de Weimar de 1919. Para quem não lembra, as desventuras da república de Weimar abriram passo ao surgimento do nazismo. Conclusão que deve repercutir muito bem entre aqueles setores da direia que identificam o PT com o totalitarismo.
Sempre segundo Tarso, os princípios da nova ordem estabelecida pela Constituinte de 1988 teriam sido bloqueadas, “entre outras causas, por uma distribuição elitizante da renda privada e dos gastos do Estado”: “globalização financeira e rentismo neutralizaram a evolução de 88”.
Curiosamente, na hora de dar exemplos, Tarso não fala dos encargos da dívida, que destinam metade do orçamento nacional para os cofres de 25 mil famílias e prefere falar das diferenças salariais existentes no funcionalismo público. Exemplo coerente com a lógica que enxerga no gigantismo do Estado (e não na ganância da especulação financeira) a origem principal dos problemas brasileiros.
Tarso critica tanto os que “dispensam a política e o direito e apostam no mercado como regulador autônomo da vida social”, quanto os que “sustentam que a aplicação mecânica dos princípios da social-democracia européia ou do 'socialismo real' resolveria todos os problemas”. Mas, para ele, a “radicalidade do discurso oposicionista -seja de 'esquerda' ou de 'direita'- não impede a construção de um 'novo contrato social'. As cláusulas básicas desse novo contrato seriam constituídas por uma concertação sobre temas relevantes -de reforma política e do Estado-, que comporiam uma agenda imediata”.
Como se vê, Tarso encontra-se aqui no mesmo terreno da direita sagaz: a construção de uma pauta comum. Nas suas palavras, sua “implementação legislativa formaria maiorias e minorias nos diversos pontos de divergência, mas a natureza da agenda orientaria as alianças políticas no próximo período. Ela não proporcionaria qualquer 'assimilação' ou 'integração', sem princípios, entre oposição e governo, mas indicaria uma pauta de trabalho do Executivo e do Parlamento”. Um “pequeno elenco de reformas destinadas a abrir um ciclo de democratização e modernização do Estado, sem as quais as demais reformas, que proporcionam divisões programáticas de fundo, não têm nem sequer chance de serem discutidas”.
Quais seriam estes questões? Tarso cita as seguintes: a) votação em lista e fidelidade partidária; b) teto máximo de remuneração nos três poderes, fixado em valor que não exceda 30 vezes a remuneração mais baixa paga pelo respectivo poder federado; c)redução em um ponto percentual por ano a carga fiscal do Estado, num primeiro momento, até cinco pontos; d)Orçamento Participativo Nacional; e)proposta de responsabilidade fiscal que combine, no Plano de Metas, um patamar máximo de inflação com um patamar mínimo de crescimento, primeiramente nos próximos quatro anos.
Esta pauta, ou qualquer outra que os adeptos da estratégia de centro-esquerda construam em sua busca permanente pelo santo graal (ora chamado de pacto, ora de contertação, acordo, coalizão etc.), desconsidera várias coisas, entre as quais especialmente duas: o brutal fosso social existente no país e a necessidade de preenchê-lo, antes que ele nos engula; e a existência da direita truculenta, que muito sabiamente não quer correr o risco de pagar para ver.
Por uma ou por outra coisa, por mais convictos de que estejamos acerca de nossa vitória em ouubro, não podemos colocar salto alto, não podemos baixar a guarda e muito menos perder a ofensividade. E seguir orando e vigiando, pois muita gente importante, na esquerda e no governo, não aprenderam com a lição de 2005 e seguem acreditando que é possível mudar profundamente o país, sem enfrentar a ditadura do capital financeiro.
BOX
Concertando a reforma
Tarso Genro
(a versão integral deste artigo foi publicado na Folha de S. Paulo de 11 de junho)
A CONSTRUÇÃO DE instituições democráticas sólidas no Brasil está em curso desde a Constituição de 88. A arquitetura jurídica da Constituição Cidadã permitiu que o país, analogicamente, se reencontrasse com o que havia sido produzido na Alemanha em 1919, por meio da Constituição de Weimar.
De certa forma, 88 no Brasil também é um 1919 tardio. A aplicação dos princípios dessa nova ordem, porém, foi bloqueada, entre outras causas, por uma distribuição elitizante da renda privada e dos gastos do Estado.
Globalização financeira e rentismo neutralizaram a evolução de 88. Muitos têm respostas "absolutas" para esse descompasso. São os que dispensam a política e o direito e apostam no mercado como regulador autônomo da vida social. Outros sustentam que a aplicação mecânica dos princípios da social-democracia européia ou do "socialismo real" resolveria todos os problemas.
Qual é esse "descompasso"? É aquele no qual os direitos formais do contrato social são inviabilizados pela Constituição não-escrita: as relações de poder e força oriundas das brutais desigualdades sociais e regionais. São relações que se reproduzem no Estado quando este, por exemplo, organiza diferenças nos seus padrões salariais que vão de 1 para 60 vezes, entre o menor e o maior salário.
A radicalidade do discurso oposicionista -seja de "esquerda" ou de "direita"- não impede a construção de um "novo contrato social". As cláusulas básicas desse novo contrato seriam constituídas por uma concertação sobre temas relevantes -de reforma política e do Estado-, que comporiam uma agenda imediata.
Sua implementação legislativa formaria maiorias e minorias nos diversos pontos de divergência, mas a natureza da agenda orientaria as alianças políticas no próximo período. Ela não proporcionaria qualquer "assimilação" ou "integração", sem princípios, entre oposição e governo, mas indicaria uma pauta de trabalho do Executivo e do Parlamento.
Entendo que pela natureza dos problemas a serem resolvidos, a aliança mais forte seria formada por partidos de "centro" e de "esquerda", unidos na utopia de colocar o país em um novo patamar civilizatório democrático: menos desigualdades, mais crescimento, mais empregos e mais federalismo. Para alguns, seria um "programa máximo", para outros, um "programa mínimo".
Independentemente do que fosse, a retomada da própria perspectiva socialista não seria originária de uma divisão da pobreza e da socialização da carência, mas de uma vontade civilizatória, originária da democracia. A perspectiva democrática, no capitalismo, também não aceitaria ser erguida sobre a exclusão de milhões.
O Brasil, com seus avanços e recuos, fez muito desde a Revolução de 30. Tanto é verdade que somos um país respeitado mundialmente, temos estabilidade institucional e as demais condições objetivas para um crescimento acelerado. A Espanha, por exemplo, tornou-se um país desenvolvido nos últimos 30 anos, com sucessivos governos de "direita" e "centro-esquerda", que adotaram, com propostas de conteúdo diferente, a mesma agenda política e social.
Creio que seria possível agendar, para o próximo período, um pequeno elenco de reformas destinadas a abrir um ciclo de democratização e modernização do Estado, sem as quais as demais reformas, que proporcionam divisões programáticas de fundo, não têm nem sequer chance de serem discutidas. Penso em questões aparentemente fáceis, mas que são difíceis de "desdobrar", diante dos fortes interesses regionais e corporativos que elas suscitam. (...)
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