segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Venezuela: a CIA e o machismo-leninismo

Tem os marxistas.

Tem os leninistas.

Tem os marxistas-leninistas.

Tem os marxistas-leninistas dos últimos dias.

E também tem os machistas-leninistas.

Os machistas-leninistas são reconhecidos por apresentarem argumentos embebidos em testosterona.

O troféu desta modalidade acaba de ser concedido ao senhor Tarek Saab, que cometeu as declarações disponíveis no endereço abaixo:  

Vídeo: Procurador-geral da Venezuela diz que Lula é agente da CIA e foi “cooptado" na prisão (ampost.com.br)

Na visão deste cidadão parece que só existem duas alternativas: a-esquerda-que-pensa-como-ele e os cooptados pelo imperialismo e à serviço da CIA.

Seja como for, fica provado que na Venezuela também existe gente adepta da "diplomacia de microfone".

Melhor seria dizer, da total "falta de diplomacia ao microfone", para não falar algo mais desagradável.

Os inimigos da Venezuela e a desintegração regional agradecem.


 

Eleições 2024: Cunha quer Lira

A imprensa tem especial predileção por uma categoria de petistas: aqueles que ela chama de "conselheiros do presidente Lula".

Não faço ideia se estas pessoas transitam no Planalto com a desenvoltura que lhes é atribuída pela mídia.

Mas, por via das dúvidas, leio com atenção o que dizem.

É o caso de João Paulo Cunha, que em entrevista concedida recentemente ao Estadão defendeu entregar um ministério para Arthur Lira.

Segundo Cunha, "deixamos muito a desejar nesse processo eleitoral." O PT precisaria "atualizar a leitura do capitalismo no Brasil (...) ter a compreensão de como os trabalhadores hoje estão se organizando (...) A direita conseguiu captar com mais facilidade uma nova forma de se comunicar com a população, juntando três aspectos: concepção liberal da economia, visão conservadora dos costumes e religiosidade. O PT e o governo ainda não conseguiram enfrentar isso."

Até aí, no que diz respeito a problemática, temos algum acordo.

Os problemas mesmo começam quando Cunha se dirige para a "solucionática".

Segundo Cunha, "a direita está hoje com mais problemas do que a esquerda, está dividida, tem brigas em público. E entrou um fenômeno na pauta sobre o qual o governo precisa se atentar, que é o Centrão. (...) Uma parte grande do Centrão está no governo. O PP, o União Brasil, o Republicanos, o PSD têm ministérios, mas não têm um compromisso para 2026 mais sólido. Precisamos consolidar essa banda do Centrão que dialoga com a gente para 2026. (...) ideal é Lira assumir um ministério em 2025 porque temos de trazer o para mais perto". 

A direita está dividida, tem brigas? Sim. Mas, se a questão for 2026, as direitas têm mais margem de manobra do que nós. Por exemplo: se tirarmos Lula da equação, o PT e a esquerda terão grandes problemas. Já se tirarmos o cavernícola da equação, a direita seguirá tendo alternativas, algumas inclusive mais "palatáveis".

O Centrão é um fenômeno "na pauta"? Sim. Mas o Centrão, com este ou com outros nomes, está na pauta faz muito tempo. O impeachment de 2016, é bom lembrar, foi aprovado com o apoio de parte importante da base do governo (do governo Dilma 2 e, também, do governo Lula 3). A experiência já nos ensinou alguma coisa sobre quão "sólido" é o compromisso com esta gente. 

Trazer Lira para o governo, entregar um ministério para Lira, vai mesmo "consolidar essa banda do Centrão que dialoga com a gente para 2026"? Deixemos de lado, por enquanto, os aspectos morais desta proposta e nos concentremos na dimensão pragmática. 

Primeiro, uma pergunta: que ministério seria do tamanho adequado aos apetites de Lira, que hoje se comporta as vezes como se primeiro-ministro fosse? Aliás, como fica a norma de não se nomear alguém que não possa ser demitido?

Outra pergunta: na vida real, que tipo de efeito Lira ministro teria sobre a ação prática do governo? O que mudaria, para melhor, no atendimento de nossa base social? Que efeito isto teria sobre as políticas públicas de interesse da esquerda em geral e do PT em particular?

Mais uma pergunta: alguém acha mesmo que esta turma marchará conosco, em 2026, aconteça o que acontecer daqui até lá? 

Lendo e relendo a proposta de Cunha, a única certeza a que chego é a seguinte: diante dos efeitos negativos da política adotada até agora, tem gente que está propondo como única alternativa dobrar a aposta.

Ou seja: o pior dos pragmatismos, aquele que não oferece resultados à altura das promessas e expectativas. 

O que me recorda uma frase dita por alguém famoso: entre a desonra e a guerra, escolhestes a desonra. Mas o que tereis ao final será a desonra e a guerra.

Acho bem mais pragmático se preparar para a "guerra".







Segue texto analisado

"O ideal é Arthur Lira assumir um ministério porque temos de trazer o Centrão para mais perto", diz João Paulo Cunha – Estadão

Integrante da “velha guarda” do PT, o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha atua cada vez mais nos bastidores da política. Um dos conselheiros do presidente Lula, João Paulo tem bom trânsito tanto no Palácio do Planalto quanto no Congresso e acha que o governo precisa se preparar para enfrentar o avanço da centro-direita. O caminho apontado por ele é bem pragmático: na sua avaliação, o presidente da Câmara, Arthur Lira, deve ser alçado à equipe de Lula. Principais trechos da entrevista:

"Em número de municípios o PT sempre ficou muito aquém dos partidos de centro. A diferença é que, em alguns períodos, o PT governou muitos eleitores. Governou São Paulo, BH, Porto Alegre, grandes cidades do interior paulista e do ABC. O que me espanta agora é que a crise do PT seja mais de representação. O partido carece, nesse momento, de capilaridade, de representação social. Efetivamente, deixamos muito a desejar nesse processo eleitoral."

"Na minha visão, o PT precisa atualizar a leitura do capitalismo no Brasil, que mudou muito, e também suas bandeiras e propostas. É necessário ter a compreensão de como os trabalhadores hoje estão se organizando [...] A direita conseguiu captar com mais facilidade uma nova forma de se comunicar com a população, juntando três aspectos: concepção liberal da economia, visão conservadora dos costumes e religiosidade. O PT e o governo ainda não conseguiram enfrentar isso."

"A comunicação do governo é um problema. Eu não sei hoje, mas um tempo atrás eu vi que o presidente Lula tinha 13 milhões de seguidores, com um ano e seis meses de governo, e o Bolsonaro, com o mesmo tempo fora do governo, tinha o dobro. Como é que Bolsonaro sai, fica inelegível e tem o dobro de seguidores do Lula? A direita está hoje com mais problemas do que a esquerda, está dividida, tem brigas em público. E entrou um fenômeno na pauta sobre o qual o governo precisa se atentar, que é o Centrão."

"Uma parte grande do Centrão está no governo. O PP, o União Brasil, o Republicanos, o PSD têm ministérios, mas não têm um compromisso para 2026 mais sólido. Precisamos consolidar essa banda do Centrão que dialoga com a gente para 2026."

"O ideal é Lira assumir um ministério em 2025 porque temos de trazer o para mais perto. E, nesse pacto, em particular na Câmara, os deputados Elmar Nascimento (União Brasil), Antônio Brito (PSD), Hugo Motta (Republicanos) e Marcos Pereira (Republicanos) precisam ter uma saída honrosa. Um deles (fora Pereira, que desistiu) vai ser presidente da Câmara a partir de fevereiro. E o que se faz com os outros? É quase um combo ali."


Eleições 2024: Jessé e a cloroquina

Faz tempo que não lia nada do Jessé.

A bem da verdade, parei no A tolice da inteligência brasileira.

Quem quiser ler a respeito, pode buscar aqui: 

https://pagina13.org.br/pensando-a-longo-prazo-reune-artigos-de-wladimir-pomar/

Quando Jessé esteva empregado na mesma Universidade que eu, nunca tive a sorte de cruzar com ele.

Depois, um militante de um núcleo do PT na Europa comentou que ele estaria morando por lá, para fugir de perseguições.

Tudo isso para dizer que vale a pena ler a entrevista que Jessé deu ao Globo, acerca do resultado das eleições.

Como a entrevista é no Globo, o viés não podia ser muito diferente do que foi: uma crítica à esquerda, ao PT, ao governo Lula e a Boulos, embrulhada numa análise acerca da força que a direita e a extrema-direita tem entre os pobres.

Este combo não é exclusividade de Jessé.

Muito mais gente da esquerda tem publicado, nas suas redes, as mais variadas autocríticas.

É verdade que algumas são ao estilo Homer Simpson: “a culpa é minha, logo eu coloco onde eu quero”.

Fazer o quê: debate é assim mesmo. E, gostemos ou não, ele acontece ao mesmo tempo que o segundo turno.

Mas, também por isso, não podemos nunca perder de vista que nosso objetivo é derrotar o lado de lá. 

E para derrotar o lado de lá, é preciso conhecer e criticar as armas que ele utiliza. Pois a eficácia ou ineficácia de nossas armas dever ser medidas no confronto com as armas do inimigo.

Por exemplo: a compra de votos. 

Numa certa capital do Nordeste, está óbvio que a candidatura da direita que foi ao segundo turno usou e abusou deste expediente. O pagamento era feito via pix nas seções eleitorais. 

Outro exemplo: o financiamento empresarial ilegal. 

Em todo o país, os ricos continuaram financiando suas campanhas preferidas, não apenas através de doações pessoais (vide Ometto, o maior doador privado do primeiro turno de 2024), mas também através de contribuições ilegais. 

Detalhe: o recém-retornado-petista Randolfe, aquele que saiu do PT supostamente pela meia esquerda, no meio de um surto udenista, agora quer a volta do financiamento empresarial privado.

Um terceiro exemplo: o uso eleitoral das bilionárias emendas parlamentares impositivas. 

Claro, parlamentares de esquerda também receberam emendas. Mas além do fato destas emendas serem em si mesmas um desvio, o fato objetivo é que as direitas são as maiores beneficiárias.

Um quarto exemplo: o uso da máquina pública nas campanhas eleitorais.

Um quinto exemplo: o uso das fake news.

Um sexto exemplo: a influência dos meios de comunicação privados.

Um sétimo exemplo: a operação ilegal de corporações e instituições, tais como certas igrejas, a “família militar” etc. 

Um oitavo exemplo: a total desproporção nos recursos do fundo eleitoral.

Poderíamos continuar a lista, mas acho que o que foi dito já basta para demonstrar como é ridículo debitar o resultado eleitoral de 2024 apenas ou principalmente na conta de um único fator, de uma única variável.

Erram, também por isso, os que estão obcecados com o “identitarismo”. 

Podemos e devemos discutir e criticar o “identitarismo”, mas se não colocarmos as coisas no grau, vamos acabar adotando o mesmo “modus sin pensantis” que leva certa direita a atribuir todos os problemas da humanidade à “ideologia de gênero”.

Ou fazemos um balanço de conjunto, que pondere de maneira correta as variáveis em jogo, ou vamos seguir errando.

Feitas estas preliminares, vejamos a entrevista concedida por Jessé ao Globo.

A entrevista publicada pode ser lida aqui:

https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/10/13/entrevista-boulos-paga-o-preco-da-esquerda-legal-que-discute-genero-e-raca-e-deixou-pobres-na-direita-diz-jesse-souza.ghtml

Jessé diz que o voto obtido por Nunes e Marçal em áreas periféricas nas zonas Sul, Norte e Leste de São Paulo capital teria sido, “sem dúvida”, o voto do “pobre de direita”.

Segundo ele, faz tempo que a situação já estaria “dominada” pela Teologia da Prosperidade, neoliberal e reacionária.

E vaticina: “Passamos por um processo de idiotização das pessoas e de inação dos que deveriam fazer um trabalho de base de qualidade”. 

De fato, faz tempo que pobres votam na direita.

Isso acontece desde que passamos a ter eleições, no Brasil e no mundo inteiro.

Pobres votarem na esquerda é, na maior parte dos países e na maior parte da história, uma exceção: a “democracia burguesa” não é chamada de burguesa por birra.

Apesar disso, em São Paulo capital o PT já conquistou por três vezes a prefeitura, com Erundina, Marta e Haddad.

Além disso, nas eleições de 2022, Lula presidente e Haddad governador foram os mais votados por um eleitorado que, no primeiro turno de 2024 escolheu outras candidaturas.

Portanto, embora possa existir idiotice (no sentido grego da palavra) e embora exista um déficit do chamado “trabalho de base”, isto não basta para explicar o que ocorreu no primeiro turno, nem serve para orientar o que deveria ser feito no segundo turno.

E, no terreno da explicação, é preciso examinar melhor a natureza social do voto: a população das áreas periféricas de São Paulo capital não são homogêneas. 

Dito de outra forma, a categoria “pobre de direita” é um tipo ideal bastante enganoso.

Ainda no terreno da explicação, Jessé diz que Marçal seria um “Coringa”: seus eleitores “identificaram nele a raiva e o ressentimento, mesmo sem que lhes fosse dada explicação alguma sobre as razões dessa injustiça social”.

Não acho que essa crítica seja totalmente procedente. Afinal, uma das razões do êxito parcial do boçal e de outros expoentes da direita e da extrema-direita reside, exatamente, no fato deles apresentarem uma “explicação” acerca das “razões” da “injustiça social”. 

Não só isso: as direitas oferecem, também, uma visão acerca do futuro e uma “ética de sobrevivência” para os tempos de guerra em que vivemos. 

Parte de nossas dificuldades no enfrentamento das direitas têm origem na subestimação: quantas vezes ouvimos gente nossa falando que a “direita não tem projeto”? 

Outra parte das dificuldades têm origem no rebaixamento programático: se não apresentarmos uma visão de futuro, perderemos a disputa por WO.

Portanto, é totalmente insuficiente - para derrotar a extrema-direita - tomar medidas “para garantir o cumprimento das regras democráticas”. 

Obviamente, tanto o boçal quanto o cavernícola precisam ser tornados inelegíveis.

Mas, como o próprio Jessé afirma, “isso não evitará que outros candidatos sigam sua cartilha”. E nada garante que eles “precisarão serem mais cuidadosos, menos ameaçadores”, nem que terão “menos domínio do público”.

A repressão legal e institucional não são suficientes para derrotar a direita e a extrema-direita. E se não for feito um trabalho prévio e permanente, será cada vez mais difícil utilizar proveitosamente as eleições em favor da esquerda.

Também por isso, é preciso tomar cum grano salis a afirmação de Jessé, segundo a qual a esquerda teria sido incapaz de conversar com o “pobre de direita”.

Por um lado, ela parece óbvia, afinal a maior parte do eleitorado votou em partidos de direita e extrema-direita. 

Mas descrição não é explicação.

A explicação que Jessé oferece, obviamente nos limites de uma entrevista, é a seguinte: “a esquerda errou, e muito. Não procurou, com louváveis exceções, conquistar os corações e as mentes dos mais pobres. Se você não apresenta nada minimamente organizado e sequer tenta ir às periferias urbanas e rurais, o trabalho das igrejas evangélicas, marcado pelo anti-esquerdismo, ganha sentido político ainda mais explícito. No vazio que foi criado pela falta de mobilização e disputa de narrativas, a esquerda perdeu campo. Não estou otimista, creio que isso se aprofundará mais”.

Como se pode ler, os problemas citados acima não são propriamente “eleitorais”. As debilidades ideológicas e programáticas da esquerda são anteriores ao processo eleitoral. O mesmo vale para as debilidades de nossa presença organizada junto a classe trabalhadora. E, apesar disso, ganhamos em 2022 em muitos locais onde perdemos no primeiro turno de 2024. Sem falar que não fomos derrotados em todas as eleições. 

Portanto, mesmo nos marcos de uma situação estruturalmente negativa, é possível ter resultados melhores. Assim como é possível vencer no segundo turno, a começar por São Paulo capital.

Feita estas ressalvas, vejamos o que Jessé diz acerca dos “corações e as mentes dos mais pobres”.

Transcrevo abaixo trechos da entrevista (alerto que fiz isso com base no copiar-e-colar, portanto pode ter ocorrido algum erro. Recomendo conferir a versão publicada da entrevista):

“(…) a chave, para a direita, é a de fazer com que o pobre se acredite valorizado, respeitado, quando antes era permanentemente humilhado, vinte e quatro horas por dia. Muitas vezes, literalmente, sem nem o nome do pai na certidão de nascimento. Ele aceita assim como possibilidade de salvação ser celebrado e reconhecido por ser honesto, “de bem”, poder vencer por conta própria. No balanço, é uma reação muito mais moral do que econômica, ainda que passe pelo material. As igrejas evangélicas ofereceram a doutrina, montaram a solidariedade interna e a base social para se enfrentar a injustiça social. Porém, e aí está a chave para a esquerda, repito: jamais é objeto de discussão os porquês da injustiça. Em nenhum estrato sócio-econômico a meritocracia é tão entranhada quanto entre os mais pobres. A aposta na direita passa pela aceitação da culpabilidade da vítima. Esquece-se a falta de acesso à Educação e à Saúde, e, tão ou mais importante, a herança da escravização. O pobre de direita de São Paulo ao Rio Grande do Sul vê no ex-presidente Jair Bolsonaro um semelhante. Nestes estados, a maioria das pessoas se identifica como branca. Já no restante do país, com maioria de pobres mestiços e pretos, a identificação não é tão direta. Bolsonaro consegue expressar o sentimento social do branco que trabalha duro e crê estar bancando o outro pobre, o do norte, o menos branco, com assistencialismo, com o Bolsa Família. No caso dos pobres de direita negros e evangélicos do Sudeste e do Sul, há o imenso desejo de embranquecer. Sem exceção, nas entrevistas com os pobres de direita, me deparei com o racismo entranhado. Eu, que sou potiguar, ouvi seguidamente que “nordestino é preguiçoso. O racismo reprimido seguirá guiando este voto para o bolsonarismo, com sua arminha voltada para o jovem preto, a partir da pauta da segurança, tão cara a esses eleitores. Os pobres são os que mais sofrem com os preconceitos que a elite criou para oprimi-los. Ele acredita que é um incapaz. E aí ou ele usa essa "faca envenenada” nele mesmo ou no “outro pobre”. Esse “outro pobre” é o maconheiro, o macumbeiro, o LGBTQUIA+, o nordestino, o que vota no PT, o bandido, cabe tudo naquele que é percebido como transgressor. O lulismo ainda consegue tocar o eleitorado pobre acima de São Paulo, mais mestiço, que foi crucial para derrotar Bolsonaro em 2022. Mas esse voto passa por um processo de criminalização. Esse eleitor sofre, desde a Lava-Jato, com a pecha de ser cúmplice da corrupção. E o pobre prefere morrer a ser corrupto. O voto na esquerda teria sido uma burrice, mais uma prova da incapacidade do andar de baixo. Isso está entranhado em muitos pobres de direita hoje”.

Há muita coisa interessante, assim como há lacunas e insuficiências nas especulações acima. Uma destas insuficiências, na minha opinião, é explicar por quais motivos a direita e a extrema-direita assumiram, desde pelo menos 2013, um caráter tão militante, “para tempos de guerra”. Quais que sejam os motivos, o fato é que operamos – há pelo menos uma década - num ambiente que não será enfrentado adequadamente por uma esquerda padrão Woodstock.

Especificamente sobre as eleições de São Paulo capital, Jessé diz que o “identitarismo” teria sido “um erro completo. E Boulos está pagando o preço desse equívoco agora em São Paulo. Não basta essa esquerda “legal”, que discute gênero e raça. Ainda importa contar ao eleitor por que um cidadão ganha R$ 100 mil enquanto outro R$ 100, por que há pessoas tão diferentemente aparelhadas para a competição social, para além das diferenças de gênero e raça. Se não perceber isso logo, a esquerda deixar este pobre na direita”.

Admitamos, para facilitar a conversa, que o “identitarismo” fosse “um erro completo”. Alguém acha mesmo que nossa situação nas eleições em São Paulo capital decorreria disto? Quem quer que tenha acompanhado a eleição paulistana sabe que, na lista de erros que possam ou tenham sido efetivamente cometidos, o “identitarismo” (seja lá o que for) não seria o maior deles. 

O mais grave, entretanto, é a alternativa defendida por Jessé: “um encontro do PT com o varguismo”.

Copio e colo (repetindo o alerta que já fiz antes): “O identitarismo ecoa na classe média e na elite, não no pobre, jogado na lata de lixo pelo preconceito racial e agora vítima de racismo cultural. Não se ganha eleição no Brasil sem o voto da maioria pobre e a esquerda precisa pelo menos tentar voltar a disputar este voto. Sei que vou levar cacetada, mas está na hora de o PT aprender com Getúlio Vargas. Validar esse pobre é importante. É o que Getúlio fez, inclusive do ponto de vista racial. Para redimir o humilhado, é preciso celebrar suas virtudes, afirmar que eles não são lixo, o que a direita faz hoje, ainda que de modo enviesado. O PT nasceu dando de ombros para a herança getulista, opondo o sindicato livre ao peleguismo trabalhista. Tudo bem. Mas, sendo simplista, PT e PSDB são mais parecidos do que imaginamos, nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele, o PT pode estar destinado à mesma — pouca — relevância do PSDB hoje. A não ser que volte a conversar com os pobres. E não só pela ótica econômica. É ilusão o governo Lula achar que as pessoas irão espontaneamente, em 2024, identificar no aumento real do salário mínimo um projeto do PT. Não é assim que funciona a cabeça humana na sociedade contemporânea, e muito menos a transmissão de ideias e de informação. A esquerda precisa fazer o que fiz ao escrever este livro: ir à periferia e se desesperar. O Bolsa Família foi importantíssimo, mas a esquerda não ofereceu o escape da humilhação que é estar na posição de delinquente no mundo de hoje. O pobre que ganha R$ 4 mil criminaliza o “nordestino miserável que mama no Bolsa Família” e crê de fato que o sustenta. Friso, só há um jeito de se sair da armadilha do pobre de direita e disputar de verdade seu voto: explicar a ele as razões das injustiças sociais e de sua escolha momentânea equivocada por um moralismo repressor”.

Repito, novamente, que há especulações interessantes, insuficiências e lacunas no combo acima. 

Isto posto, destaco como revelador o seguinte trecho: “A esquerda precisa fazer o que fiz ao escrever este livro: ir à periferia e se desesperar”.

Confesso que “desesperador” é ler alguém dedicado profissionalmente ao estudo, afirmar que PT e PSDB "seriam mais parecidos do que imaginamos, nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele, o PT pode estar destinado à mesma — pouca — relevância do PSDB hoje”.

Sobre as falsas afinidades entre PT e PSDB, sugiro ler:

https://elahp.com.br/download/historia-do-petismo-volume-i/

Isto posto, não tenho dúvida que o PT corre risco. Mas o que Jessé sugere como solução é veneno puro. Nada contra “aprender”, mas transformar o petismo em trabalhismo não resolverá nada.

O trabalhismo histórico é uma das criações da era Vargas e expressava a politica populista de colaboração de classes, entre um setor da classe dominante e um setor da classe trabalhadora. O peleguismo é um desdobramento disto. Quando, especialmente em 1954 e 1964, o trabalhismo de esquerda tentou dar passos mais radicais, veio o golpe. 

O populismo, tanto de direita quanto de esquerda, não foi capaz no passado, não é capaz no presente e não será capaz no futuro de oferecer uma alternativa para o Brasil.

Que há aspectos do populismo de esquerda que devem ser compreendidos e customizados por nós, não tenho dúvida. Até porque funcionariam como antídoto para práticas populistas de direita que muita gente boa anda adotando, sem pudor e vergonha.

Mas o principal é que não existe bala de prata para as dificuldades programáticas, estratégicas, táticas e organizativas enfrentadas pelo PT.  

Nem tampouco será a cloroquina - varguista, populista ou quetais - que vai fazer o PT se manter de esquerda, socialista e recuperar maioria na classe trabalhadora.  

Claro que nada disso caberia numa entrevista ao Globo.













domingo, 13 de outubro de 2024

Eleições 2024: a “teoria” Pędłowski

Quem venceu as eleições de 2024? Depende do resultado do segundo turno.

Quem venceu o primeiro turno? Quem teve mais votos, conquistou mais prefeituras e mandatos de vereança, ou seja, o campo político que vai da centro-direita até a extrema-direita.

Entre os que admitem isso, há quem acrescente três complementos:

-que o PT não teria vencido, mas também não teria sido derrotado;

-que a vitória teria sido da “democracia”;

-que o governo Lula teria saído vitorioso.

O primeiro complemento não encontra amparo nos dados divulgados pelo Grupo de Trabalho Eleitoral do PT (GTE).

Segundo o GTE, "em 2020, o PT estava presente em 1.584 municípios, elegendo 183 prefeitos e prefeitas, 206 vices em coligação com aliados, e 2.663 vereadores e vereadoras. Agora, elegendo 248 prefeitos(as), 222 vices e 3.118 vereadores(as), além dos 13 municípios em que vai disputar o segundo turno. O PT estará presente em 1.742 municípios". 

Também segundo o GTE, o PT recebeu 6.909.779 votos em 2020 e 8.884.677 votos em 2024. 

Mesmo considerando que o eleitorado total de 2024 é maior do que o de 2020,  o PT cresceu. Isto é verdade. E se o PT fosse uma pessoa buscando superar seus próprios problemas, o resultado da eleição de 2024 teria sido, sem dúvida, um progresso em relação a 2024.

Mas o PT não é uma pessoa buscando superar suas próprias metas, o PT é um partido em luta contra outros. E o problema é que estes outros partidos cresceram muito mais do que nós. 

Em números absolutos de votos válidos, o PT ficou em sexto lugar, atrás do PL, do PSD, do MDB, do União e do PP. E se considerarmos apenas estes 6 partidos, o PT ficou em quinto lugar em taxa de crescimento. O PT cresceu 25% em relação a 2020. Já o PL cresceu 233%, o PSD cresceu 33%, o MDB cresceu 30% e o PP cresceu 29%.

Além disso, o PT conquistou 183 prefeituras em 2020. Acontece que muitos prefeitos se filiaram ao PT, antes da eleição de 2024. Quando a campanha de 2024 começou, tínhamos 265 prefeituras. E na eleição de 2024, conquistamos 248 prefeituras. Logo, se for para ser rigoroso, não teríamos crescido 82, teríamos diminuído 17 prefeituras...

Além disso, 188 destas prefeituras são em cidades com menos de 20 mil habitantes. E só 2 ficam em cidades com mais de 200 mil habitantes. Claro, isto pode mudar drasticamente a depender do que ocorra no segundo turno. Mas os números realmente existentes não autorizam falar em vitória ou crescimento do PT.

Já a ideia de que a vitória teria sido da “democracia” parte do pressuposto de que golpistas seriam os do 8 de janeiro, a turma do cavernícola e do boçal. Já os demais setores da direita seriam democratas.

Aceito este pressuposto, restaria verificar qual foi o desempenho - no primeiro turno - das candidaturas ligadas explicitamente à extrema-direita. 

O Partido Liberal, por exemplo, foi o que recebeu maior número de votos entre todos os partidos. Ademais, o PL cresceu 233% em relação ao resultado obtido nas eleições de 2020. Se a isso acrescentarmos resultados como os obtidos pelo boçal na eleição de São Paulo capital, a conclusão é que é a extrema-direita cresceu, mesmo estando fora do governo. 

Por outro lado, cabe questionar o pressuposto apontado anteriormente. Em muitas cidades do país, houve alianças de primeiro turno entre direita e extrema-direita. Em São Paulo capital, por exemplo, Nunes foi apoiado por Bolsonaro. O mesmo vale para Melo, em Porto Alegre. A lista é imensa. Ou seja: a direita "democrática" no Brasil não é tão democrática assim.

Claro, há quem pense o contrário, como é o caso do ex-deputado federal João Paulo Cunha, que já está defendendo que Lira entre no governo Lula. 

A entrevista de Cunha está aqui: Estadão 🗞 | ENTREVISTA | Integrante da “velha guarda” do PT, o ex-presidente da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha atua cada vez mais nos bastidores… | Instagram

Sobre o governo Lula, há quem lembre que as eleições são municipais: não estavam diretamente em jogo nem o governo, nem Lula. 

Além disso, há quem diga que como o governo de Lula é de “frente ampla”, ele só poderia ser considerado derrotado se candidaturas explicitamente oposicionistas tivessem sido vitoriosas.

Finalmente e paradoxalmente, há quem argumente que mesmo um resultado final problemático poderia ser revigorante para uma candidatura de Lula à reeleição, em 2026.

Os resultados do segundo turno vão responder se estes argumentos e outros similares procedem ou não. Mas não é preciso esperar o dia 27/10 para discutir a procedência da “teoria Pedlowski”.

A tal “teoria” está exposta aqui: 

https://blogdopedlowski.com/2024/10/12/apesar-das-aparencias-lula-foi-o-grande-vencedor-do-1o-turno-das-eleicoes-municipais/

Reproduzo abaixo dois trechos representativos desta teoria: 

-“avalio que a estratégia eleitoral determinada por Lula e pela cúpula dirigente do PT era algo que ia no sentido de “entrar em campo para jogar, fingindo que se quer ganhar, mas  fazendo uma força danada para perder”;

-“discordo de quem diz que a política da “Frente Ampla” de Lula foi derrotada no primeiro turno das eleições municipais de 2024. Na verdade, essa política ficou fortalecida ao apontar para um cenário em 2026 em que novamente será o PT (e seus aliados) contra o conveniente fantasma da extrema-direita”.

Segundo a “teoria” acima, queríamos perder. Logo, os erros cometidos pelo PT e pelo governo Lula teriam sido propositais; e as derrotas teriam sido autoinflingidas.

O incrível nesta “teoria” não é sua semelhança com as narrativas conspiratórias que se escutam, por exemplo, na Jovem Pan. 

O incrível é que seu autor não perceba que, a depender dos resultados dos dois turnos de 2024, o que poderemos enfrentar em 2026 é uma “frente ampla” sem o PT e contra o PT.





sábado, 12 de outubro de 2024

Eleições 2024: Cappelli e o mordomo

De quem é a culpa?

Do mordomo! Desde Shakespeare ou até antes, a culpa é do mordomo.

E de quem seria a "culpa" dos problemas da esquerda brasileira em 2024?

Do "identitarismo", é claro!

Pelo menos esta é a opinião de várias pessoas, entre as quais Ricardo Cappelli, conforme pode ser lido aqui: Ricardo Cappelli: “o identitarismo nunca foi uma política de esquerda” | Brasil 247

Transcrevo um trecho: (...) Cappelli atribui o fortalecimento [da direita e centro-direita] a uma desconexão da esquerda com as pautas mais relevantes para a população. Ele criticou o que chamou de "foco exacerbado em questões identitárias", que, segundo ele, não são históricas da esquerda no Brasil. “A questão do identitarismo é recente e nunca foi central para a esquerda brasileira. A esquerda sempre se pautou pela luta de classes e pelo desenvolvimento econômico, focando em políticas públicas universais” (...).

A desconexão existe? Certamente. Aliás, quando o chapa-branquismo campeava, várias Cassandras já falavam deste problema.

Parte da desconexão tem relação com as posições defendidas pela esquerda? Seguramente que sim, embora haja outras causas.

No que diz respeito às propostas, seria verdade que haveria um "foco exacerbado em questões identitárias"? Olhando para a realidade, não vejo provas de que isso seja verdade.

Quem é responsável pelas falhas na ação política do governo? O "identitarismo" ou, por exemplo, a mistura entre falso republicanismo e frente amplíssima?

Quem é culpado pelas dificuldades que temos para implementar uma política de desenvolvimento econômico? O "identitarismo" ou, por exemplo, o agronegócio, o capital financeiro e as concessões que fazemos a eles?

Quem prejudica nosso foco nas políticas públicas universais? Seria o "identitarismo" ou, por exemplo, a influência do socialiberalismo, a dificuldade em superar as terceirizações e privatizações e as restrições orçamentárias autoimpostas pelo déficit zero?

Quem impede que sejamos pautados pela luta de classes? O "identitarismo" ou, por exemplo, o rebaixamento programático?

Claro, quem acha que nossa estratégia e nossas táticas estão corretas, precisa achar um "mordomo" em quem por a culpa. 

E alguns apontam o dedo acusador para o "identitarismo". 

As vezes o mordomo é mesmo cheio de culpas. Mas, no caso das eleições 2024, nossos problemas reais vem de outro lugar. 

Eleições 2024: Quaquá e Sahra

Na Alemanha, a esquerda rachou.

Deste racha surgiu, no dia 8 de janeiro de 2024, um novo partido, cujo nome é Aliança Sahra Wagenknecht – Razão e Justiça.

Sahra Wagenknecht é a principal liderança do Partido.

Sim, é isto mesmo: o Partido tem o nome de sua principal liderança.

O motivo do surgimento deste novo partido é o seguinte: seus criadores, especialmente Sahra, consideravam que a esquerda alemã estava perdendo o apoio da classe trabalhadora para a direita. O que é um fato.

E como recuperar este apoio? Segundo Sahra, dando ênfase para as pautas tradicionais, deixando de lado as questões “identitárias” e assumindo palavras de ordem parecidas com a da direita, em temas como a imigração, a guerra e a pandemia.

Deu certo?

Deu: no curto prazo, o partido da Sahra teve mais votos que o antigo partido da esquerda.

Mas isso se deu num contexto em que a direita e a extrema-direita venceram as eleições.

Ou seja: esta tática serviu para o partido da Sahra se beneficiar do crescimento da direita, mas não serviu para deter o avanço da direita.

Isto posto, sugiro assistir e ler o conteúdo disponível nos seguintes endereços:

https://veja.abril.com.br/politica/a-dura-autocritica-do-vice-do-pt-sobre-relacao-do-partido-com-o-povao/

https://www.instagram.com/reel/DA_78IgN5Oo/?igsh=eHRsZnhnODdlNHA3

Nos endereços acima há entrevistas com Washington Quaquá, deputado federal do PT, eleito prefeito de Maricá nas eleições de 2024. Eleito, é bom que se diga, com uma votação superior a 73% dos votos.

As duas entrevistas foram divulgadas pelo próprio Quaquá, no grupo de zap do Diretório Nacional do PT. Portanto, ele avaliza a edição.

Noutro texto, vou comentar em detalhes ambas entrevistas. 

Por enquanto, quero destacar o que considero ser uma afinidade entre a abordagem de Quaquá e de Sarah.

Ambos partem de um problema real (a perda de apoio na classe trabalhadora) e ambos sugerem alternativa similar (uma convergência com posições da direita).

É uma abordagem também similar as de Aldo Rebelo, Ricardo Capelli e Rui Pimenta, entre outros.

Focando no caso brasileiro a essência do problema transcende as aproximações de Quaquá com o bolsonarismo, que incluem declarações escandalosas, a mais recente das quais foi a seguinte: “Não toleraremos domínio armado do território. Quem portar fuzil vai pra vala, e a palavra é essa: quem portar fuzil vai pra vala!”

A essência do problema está, na minha opinião, na estratégia defendida por Quaquá, que ele resume aqui: “O governo tem pouco rumo e pouco comando. Um comando que não atua no dia a dia do país. A economia vai bem, o [Fernando] Haddad vem tocando bem a economia. O Haddad e o governo Lula vêm conseguindo aprovar as pautas econômicas. A economia está andando, mas falta articulação política e comando político no governo. Acho que o presidente Lula precisa construir um projeto de desenvolvimento nacional que possa ser um projeto de longo prazo, pra além do governo dele. Precisamos chamar o empresariado brasileiro, o centro político do Brasil, os partidos de centro, pra construir um projeto de 20 anos de crescimento”.

Alguém pode se perguntar: mas esta estratégia que Quaquá defende não é a mesma que vem sendo defendida pelo grupo atualmente majoritário no Diretório Nacional do PT, grupo ao qual pertence Quaquá?

A resposta a pergunta acima é: em termos. No sentido mais geral, trata-se da mesma estratégia, baseada na aliança com um setor do empresariado e da direita. Esta estratégia vem sendo implementada há décadas e está no fundo dos problemas que temos enfrentado, por exemplo, no governo e nas eleições de 2024.

Mas, como vimos entre 2003 e 2015, o grupo majoritário possui diversas frações. Nenhuma delas defende mudar a economia política do governo. Aplaudem Haddad hoje, como antes toleraram Palloci. Mas há diferenças importantes entre estas frações: uma delas reside no modus operandi dos governos encabeçados pelo PT.

Algumas frações são adeptas do “republicanismo”, outras defendem - corretamente - que o governo seja parte muito ativa da disputa política. Quaquá é adepto desta segunda postura. 

Que Quaquá seja, agora, um dos maiores porta-vozes desta postura e que o faça da forma como faz, com os argumentos que utiliza, com as alianças que pratica, com o estilo que lhe é peculiar, é apenas mais uma evidência dos limites da estratégia como um todo. 

Se o Partido não estiver disposto a construir outra estratégia - que não inclua alianças estratégicas com o grande capital e que reconstrua nossa presença organizado e cotidiana junto à classe trabalhadora, independente de estarmos ou não em governos - vamos continuar prisioneiros de alternativas que, por caminhos diferentes, não vão desembocar na “vitória final”.


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Candido Vaccarezza: não há motivo para surpresa

O cidadão que aparece nesta foto abaixo já foi de esquerda. Muito de esquerda. Depois foi indo para a direita. Primeiro, dentro do PT. Depois, fora do PT. Hoje, apoia Nunes em São Paulo.



Quem quiser saber mais sobre o cidadão da foto, pode ler aqui, neste texto escrito em 2015: Valter Pomar: Vaccarezza: um problema de olfato?



Gaza: comentários sobre o texto de Clara Ant

Poder360 publicou, no dia 10 de outubro de 2024, um texto da companheira Clara Ant.

O texto pode ser lido aqui: Clara Ant | "Netanyahu é um vitorioso da morte e um negacionista da paz" (poder360.com.br)

O objetivo do texto, segundo entendi, é atacar o genocídio, defender o cessar fogo, criticar Bibi Netanyahu e os setores da comunidade israelense que o apoiam.

Talvez para ser melhor ouvida por esses interlocutores, Clara introduz em seu texto algumas afirmações que merecem reparo.  

Por exemplo: o primeiro parágrafo do texto diz que o alvo do ataque do Hamas foram "civis israelenses numa área de fazendas coletivas fronteiriças à cidade palestina de Gaza", "famílias de moradores israelenses cujas relações cotidianas de vizinhança com famílias de moradores palestinos eram estreitas". Sei de pelo menos um caso de uma família de comunistas, contrários à ocupação, que foram assassinados pelo Hamas durante o ataque. Mas, até onde eu sei, isto é uma exceção entre os colonos israelenses, parte importante dos quais é composta por "extremistas", como diz a própria Clara. Óbvio que nada disto justifica assassinar civis, sejam colonos, sejam os jovens que estavam na rave. Alguns dos quais, segundo investigações da própria polícia israelense, foram vítimas de "fogo amigo".

Ainda no primeiro parágrafo, Clara fala que "o Hamas massacrou, torturou, estuprou e queimou vivas mais de 1.000 pessoas, entre elas: crianças, mulheres e idosos. Sequestrou mais de 200! As imagens desse episódio foram registradas pelo próprio Hamas e divulgadas em todo o mundo". Do jeito que está escrito, alguém pode entender que o Hamas teria registrado e divulgado imagens de mais de 1 mil israelenses sendo massacrados, torturados, estuprados e queimados vivos. Isso, como é óbvio, não ocorreu. Sem falar que há questionamentos diversos sobre o que de fato teria ocorrido. Mas, repetimos, qualquer ataque contra civis e qualquer das práticas citadas deve ser condenada e punida.

Mais adiante, o texto destaca que "o que foi anunciado como uma retaliação transformou-se em destruição de bairros inteiros e deslocamento de centenas de milhares de civis palestinos", "o assassinato de mais de 40.000 pessoas", "potencial início de uma guerra regional". E, na sequência, pergunta: "seria possível acreditar em uma solução como a alegada por Netanyahu e possivelmente aprovada por uma parte dos israelenses, já que são eles que vivem debaixo da rota dos mísseis dos iranianos, do Hamas, do Hezbollah e dos houthis?"

O "já que" passa a impressão de que o apoio que uma parte da população de Israel dá ao genocídio deriva dos mísseis enviados por quem apoia a resistência palestina. Acontece que Israel ocupa ilegalmente a Palestina há décadas. E desde o início usa métodos inaceitáveis. O apoio à ocupação, inclusive na sua forma mais genocida, não é culpa dos que se opõem a Israel. A autoria intelectual dos crimes cometidos pela ocupação é sionista.   

Netanyahu é um criminoso de guerra. Mas o problema de fundo é a ocupação. Não basta ter cessar-fogo. Tem que ter paz. E para ter paz, a ocupação precisa acabar.


GL3: a deplorável e desequilbrada nota do Itamaraty

No dia 7 de outubro, o Itamaraty soltou uma nota referente aos ataques do Hamas.

A nota é de 7/10/2024.

Os ataques ocorreram há um ano, em 2023.

A nota pode ser lida aqui: Um ano dos ataques do Hamas: Governo repudia terrorismo e pede libertação dos reféns — Agência Gov (ebc.com.br)

A nota registra com "profundo pesar" que os "ataques terroristas" resultaram "na tomada de 251 reféns e na morte de cerca de 1.200 pessoas", entre os quais brasileiros "assassinados no dia da invasão do território israelense por terroristas a partir da Faixa de Gaza".

Tomem nota da sutileza: "a partir da Faixa de Gaza".

A nota fala ainda das "dezenas de israelenses ainda em poder do Hamas em Gaza" e solidariza-se "com a família de todas as vítimas e com o povo israelense", reiterando "absoluto repúdio ao recurso ao terrorismo e a todos os atos de violência".

A última frase da nota é a seguinte: "O Brasil volta a exortar pela libertação imediata de todos os reféns e por negociações que levem ao cessar-fogo em Gaza e no Líbano".

Nenhuma palavra contra o terrorismo de Estado de Israel contra Gaza.

Nenhum pesar pelas mais de 40 mil vítimas palestinas e, também, nada sobre as vítimas libanesas.

Do ponto de vista humano, é uma nota deplorável.

Do ponto de vista diplomático, é uma nota totalmente desequilibrada.

Do ponto de vista político, é a prova de que no Brasil - e no Itamaraty - também existe um Deep State.

Primeiro as declarações de José Múcio, agora isto. Qual será a próxima?


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Eleições 2024: orientação da tendência petista Articulação de Esquerda

Orientação para o segundo turno

A executiva nacional da tendência petista Articulação de Esquerda, reunida no dia 9 de outubro de 2024, aprovou a seguinte orientação para o segundo turno.

1.Em primeiro lugar fazemos uma saudação à toda a militância da esquerda, que defendeu nossas cores, nossa bandeira, nossas propostas e nossa estrela no primeiro turno das eleições de 2024. O primeiro turno demonstrou, mais uma vez, a necessidade de reconstruir nossa atuação militante. É da militância que dependeu, depende e continuará dependendo a vitalidade e o futuro do nosso Partido e da classe trabalhadora brasileira. 

2.A eleição ainda não terminou. No primeiro turno, as direitas conseguiram uma vitória em termos de votação e número de eleitos. Devemos trabalhar para que, no segundo turno, a vitória seja da esquerda. Caso sejamos vitoriosos nas cidades em que disputamos, especialmente nas capitais de São Paulo, Porto Alegre, Fortaleza, Cuiabá e Natal, o balanço global do processo eleitoral será positivo para o governo Lula, para a esquerda brasileira, para o Partido dos Trabalhadores e para a classe trabalhadora.

3.Orientamos a militância - inclusive a que mora em cidades onde a eleição já terminou dia 6 de outubro - a contribuir nas campanhas de segundo turno, de todas as formas que forem possíveis: financeiramente, através das redes sociais, deslocando-se pessoalmente para as cidades onde está ocorrendo a disputa.

4.Orientamos a militância também a, depois do segundo turno, realizar um balanço completo do processo eleitoral: em cada cidade e em cada estado, o desempenho de cada partido e das Federações, as eleições proporcionais e as eleições majoritárias, a política de alianças, a escolha das candidaturas, a tática de campanha, a comparação entre o desempenho atual e nas eleições passadas, a mobilização militante, a influência dos governos encabeçados por petistas, o uso e a deformação das pesquisas, o fundo eleitoral, a agenda das lideranças e inclusive do presidente Lula, a influência das emendas parlamentares, a compra de votos, a influência do crime organizado, dos meios de comunicação e das igrejas. 

5.O jornal Página 13 e nosso site publicarão os balanços parciais – pessoais e de instâncias – que nos forem enviados. O processo de balanço será concluído na plenária nacional da AE, que vai realizar-se nos dias 22, 23 e 24 de novembro de 2024, em São Paulo capital. É importante que compareça, nessa plenária, a militância que protagonizou as campanhas de 2024.

6.Preliminarmente, apontamos que o desempenho no primeiro turno confirma a necessidade de uma mudança urgente na linha do Partido e na linha do governo. Os números (aproximados) são os seguintes:  

*91 milhões de votos em candidaturas vindas das direitas, 22 milhões de votos para candidaturas lançadas pelas esquerdas;

*4726 prefeituras conquistadas por candidaturas vindas das direitas, 740 prefeituras conquistadas por candidaturas lançadas pelas esquerdas;

*48.106 mandatos de vereança conquistados por candidaturas vindas das direitas, 10.308 mandatos conquistados por candidaturas lançadas pelas esquerdas.

8.Há casos paradigmáticos, que merecem análise detalhada, como é o caso da derrota em Salvador e em diversas outras grandes cidades da Bahia; a derrota em primeiro turno em Teresina; o resultado eleitoral em São Paulo, onde elegemos no primeiro turno apenas três cidades, que somadas não chegam a 80 mil eleitores; a presença do PT, inclusive como vice, em chapas encabeçadas por partidos de direita; a anulação do Partido no Rio de Janeiro e em Recife, apresentada como positiva – em nome de derrotar a extrema-direita – mas que traz no seu bojo um desastre estratégico; o desempenho do PT no Rio Grande do Sul, em particular a relação entre as enchentes, a ação do governo federal e o resultado das eleições; e os desempenhos regionais do Partido, por exemplo na região amazônica.

9.Merecem análise detalhada, também, os resultados positivos obtidos já no primeiro turno. Ampliamos a votação das esquerdas em relação a 2020, embora em certos casos isso possa ser um efeito estatístico resultante do crescimento do eleitorado nacional. Elegemos mais prefeituras e vereanças do que em 2020, embora este crescimento tenha sido modesto. Ganhamos no primeiro turno em algumas cidades simbólicas, como Juiz de Fora e Contagem, Bagé e Rio Grande. Fomos ao segundo turno em Camaçari/BA, Caucaia/CE, Fortaleza/CE, Anápolis/GO, Cuiabá/MT, Olinda/PE, Natal/RN, Pelotas/RS, Santa Maria/RS, Porto Alegre/RS, Diadema/SP, Mauá/SP e Sumaré/SP. Elegemos ou projetamos novas lideranças, especialmente nas Câmara Municipais. E, mesmo onde perdemos, mobilizamos centenas de milhares de pessoas, que dedicaram parte do tempo de suas vidas para defender nossas bandeiras, nossas cores, nossa estrela. Apontar estas vitórias é importante, porque elas demonstram que nosso resultado - já no primeiro turno - poderia ter sido muito melhor do que foi. Mas, como já foi dito, é inegável que – quando consideramos o resultado do primeiro turno como um todo – as direitas foram vitoriosas.

10.As vitórias e as derrotas sempre têm várias causas. Uma delas é a linha de campanha. Tudo indica que a linha política adotada no primeiro turno não contribuiu, na maioria das cidades, para a vitória que desejávamos. Precisamos, no segundo turno, corrigir a linha política do Partido e do governo. Destacamos a necessidade de Lula estar presente em todas as cidades onde o PT está no segundo turno. E enfatizamos a necessidade da unidade partidária e da busca do voto popular.

11.Nas cidades onde o segundo turno está sendo disputado entre forças de direita, é preciso deixar que as direções municipais do Partido, consultando formalmente a base partidária, decida o que fazer no segundo turno, levando em conta a situação local. Faz muito mal para o Partido o ultracentralismo, que transfere, em caráter preliminar, todas as decisões para a direção nacional. E é preciso compreender, de uma vez por todas, que estamos enfrentando várias direitas, havendo situações em que a melhor postura é não comprometer nossa história e nosso voto com nenhuma delas.

12.Passado o segundo turno, na mesma plenária em que vamos realizar o balanço do processo eleitoral, também vamos discutir nossa tática para a eleição direta das direções partidárias. São óbvios os problemas da atual direção. Mas nossos problemas não serão solucionados pela mera substituição de pessoas e/ou de tendências. A eleição demonstrou, mais uma vez, que temos três graves problemas: em primeiro lugar, um déficit de compreensão acerca da realidade brasileira, das classes e da luta de classes neste momento da história do Brasil, em particular a análise sobre a influência da extrema-direita sobre os setores populares; em segundo lugar, uma reduzida presença cotidiana junto à classe trabalhadora, o que explica parte da dificuldade que enfrentamos nas campanhas eleitorais; em terceiro lugar, uma orientação estratégica equivocada, que não dá conta dos tempos de guerra em que vivemos. O PED de 2025 será útil se, além de substituir quem precisa ser substituído, também ajudar o Partido a perceber e começar a corrigir estes problemas.

13.Mas, antes de tudo, é preciso vencer o segundo turno das eleições. Essa é nossa tarefa prioritária, de todo o Partido, nas próximas semanas: vencer!

Brasília, 9 de outubro de 2024

GL3: quem nos defende de José Múcio?

José Múcio carrega o título de ministro da Defesa.

Mas a quem mesmo ele defende?

Há vários motivos para a dúvida.


Trata-se de uma fala de Múcio, feita em um evento da Confederação Nacional da Indústria.

Múcio quer que o governo brasileiro autorize a compra de equipamentos militares israelenses. 

Até aí, direito dele. 

Mas a maneira como ele apresenta a questão é totalmente absurda, especialmente num evento público.

Palavras de Múcio: "A questão diplomática interfere na Defesa.  Houve agora uma concorrência. Venceram os judeus. O povo de Israel. Mas por questão da guerra, do Hamas, os grupos políticos, estamos com esta licitação pronta, mas por questões ideológicas não podemos aprovar".

A confusão que Múcio faz entre o "Estado de Israel" e os "judeus" é reveladora. 

Quem faz esta confusão é a extrema direita, com o objetivo de tratar qualquer crítica a Israel como se fosse antisemitismo.

Também é reveladora a referência ao "Hamas" e aos "grupos políticos". 

Israel está praticando um genocídio contra o povo palestino, usando o Hamas como pretexto. Múcio repercute o pretexto e, ademais, trata o genocídio como "guerra".

Neste contexto, comprar armas de Israel é ser cúmplice, contrariando a política definida pelo presidente Lula. 

Mas Múcio desqualifica a justa posição adotada até agora e a reduz à interferência de "grupos políticos" e "questões ideológicas", termo que na boca dele tem sentido depreciativo. 

Na nossa, pelo contrário, tem valor positivo: trata-se de não contribuir com a extrema-direita, o sionismo, o nazismo, o genocídio.

Em seguida, Múcio trata do potássio, pretexto que ele usa para atacar o que a Constituição estabelece acerca dos povos indígenas.

Depois o ministro reclama da orfandade da Defesa, afirmando que "se muita gente debita às forças armadas o golpe de 64, precisava ter creditado às forças armadas não ter havido o golpe em 2023, foram as forças armadas que preservaram, que seguraram a nossa democracia".

"Muita gente" acha que Múcio não deveria ter sido nomeado ministro da Defesa.

"Pouca gente" acredita na capacidade do ministro cuidar dos temas da sua pasta.

Mas a responsabilidade das forças armadas no golpe de 64 não é assunto em debate; não se trata de saber se "pouca" ou se "muita" gente pensa isto.

Trata-se de um fato histórico.

Que um ministro da Defesa coloque este fato em dúvida, equivale a um ministro da Saúde colocar em dúvida o SUS.

Mas o mais grave não é a opinião de Múcio sobre o 1 de abril de 1964.

O mais grave é a opinião dele sobre o 8 de janeiro de 2023.

Primeiro, porque a crença de que as forças armadas seriam a mão forte e o braço amigo que defende a democracia, foi exatamente um dos argumentos utilizados para justificar o golpe de 64.

Ao contrário do que possa parecer, Múcio reverbera uma ameaça, uma chantagem, como se dissesse: agradeçam aos militares por terem agido assim, pois eles poderiam ter agido assado.

Segundo, porque Múcio disse uma mentira. 

Parte importante da cúpula do exército, mas também de outras forças, foi cúmplice passivo ou ativo da intentona de 8 de janeiro de 2023. 

Enquanto todos estes criminosos não estiveram presos, seguiremos correndo risco.

Na sua fala, Múcio também refere-se à frustrada venda, para a Alemanha, de munições que seriam transferidas para a Ucrânia usar contra a Rússia. 

Múcio considera que um "grande negócio" foi prejudicado por um "embaraço diplomático".

Embaraçoso é ter Múcio como ministro.

E tê-lo como ministro da Defesa é mais que embaraço: é um alto risco.

Mas tem gente que gosta de viver perigosamente.


 







terça-feira, 8 de outubro de 2024

Eleições 2024: sobre a nota da Executiva Nacional

A Comissão Executiva Nacional do PT, reunida no dia 8 de outubro, soltou uma nota sobre as eleições municipais.

A nota pode ser lida aqui: Nota da Comissão Executiva Nacional do PT sobre as eleições municipais | Partido dos Trabalhadores

Como é óbvio, esta nota não é um balanço do processo eleitoral, que só será possível depois que concluir o segundo turno. 

Aliás, nosso esforço principal, neste momento, é ganhar o segundo turno onde estamos disputando. Se tivermos êxito nisso - especialmente nas cinco capitais - nosso balanço será bem diferente daquele que é possível fazer agora.

Feita esta ressalva geral, alguns comentários pontuais sobre o que é dito na nota da executiva.

Primeiro, a nota está correta criticar as "emendas parlamentares bilionárias" e o uso das "máquinas públicas municipais" (e estaduais, faltou dizer. Em São Paulo, por exemplo, o governo Tarcísio foi fundamental para a ida de Nunes ao segundo turno das eleições).

Mas é preciso ir além: a distorção no sistema político é mais profunda do que isto. Para dar alguns exemplos, continuam existindo o financiamento privado, o dinheiro ilegal, a compra de votos. A violência política, o oligopólio da comunicação e as empresas de fake news agiram com toda força. E, no caso dos vereadores, o voto nominal favorece a direita. É esse conjunto de fatores que ajuda a explicar por quais motivos, quando nós somos governo, o efeito disto é um; quando a direita governa, o efeito é outro.

Segundo ponto: compreensivelmente, a nota da executiva nacional escolheu não falar nada acerca da nossa cota de responsabilidades, embora admita "eventuais equívocos".  Não sei se "equívocos" é a palavra mais adequada, mas precisamos mesmo debater questões como a escolha de candidaturas, a linha de campanha, a política de alianças, os critérios na distribuição do fundo eleitoral e a agenda do companheiro Lula. Cada um desses aspectos e outros que não foram citados, precisam ser objeto de análise detalhada de nossa parte. 

Terceiro ponto: o texto da executiva fala que o resultado de 2024 foi "o início da recuperação eleitoral do PT nos municípios". Acho prematuro concluir isso. Pois se existir um "equívoco" na linha política, a "recuperação" só vai ocorrer se a linha mudar. Aliás, mudança que na minha opinião precisa começar ontem, seja quando nos posicionarmos naqueles segundos turnos de que não participamos, seja para vencermos o segundo turno onde há candidaturas petistas disputando.

Quarto ponto: o texto da executiva fala que as eleições ocorreram num "cenário que mais uma vez favoreceu a eleição ou reeleição de candidatos das legendas da centro-direita e direita dominantes no Congresso Nacional". O problema desta formulação é que o cenário das eleições de 2024 inclui elas terem sido realizadas no meio do governo Lula 3. E nossos resultados, desta vez, foram piores do que os resultados obtidos no meio do governo Lula 1, no meio do governo Lula 2, no meio do governo Dilma 1 e foram piores, inclusive, do que os resultados que obtivemos em 2016, depois do golpe. 

Moral da história: precisamos falar do governo Lula, incluindo a sua relação com as tais "legendas dominantes" no Congresso.

Quinto ponto: o documento elenca uma série de pontos positivos no desempenho do PT. Alguns destes pontos precisam ser melhor analisados (por exemplo, a alta concentração das prefeituras em pequeno número de estados); outros pontos precisam ser debatidos em profundidade (como o desempenho desastroso em Salvador, a não ida para o segundo turno em Teresina, assim como as alianças em Recife e Rio de Janeiro); alguns precisam deixar de ser naturalizados (como é o caso de termos eleito inúmeros vices de partidos de direita). Mas há um ponto citado de passagem, que merece ser especialmente rediscutido pelo nosso Partido: trata-se da Federação, que em geral causou mais danos que vantagens.

De toda forma, são assuntos para debatermos depois do segundo turno. Até porque será melhor, para o país e para nosso Partido, que o balanço seja feito em ambiente de real vitória.


Estratégia: rascunho 2

Este texto é o segundo de uma série dedicada a debater qual deve ser a estratégia do Partido dos Trabalhadores.

Em discurso realizado na ONU, dia 24 de setembro de 2024, Lula afirmou que “2023 ostenta o triste recorde do maior número de conflitos desde a Segunda Guerra Mundial”. Os dois principais conflitos têm como epicentro a Ucrânia e a Palestina, respectivamente.

No dia 24 de fevereiro de 2022, teve início a “operação militar especial" contra a Ucrânia. Quase três anos depois, prosseguem os combates que envolvem de um lado tropas da Federação Russa e, de outro lado, tropas da Ucrânia com amplo apoio da OTAN, em particular dos Estados Unidos.

No dia 7 de outubro de 2023, combatentes do Hamas atacaram Israel, que ocupa ilegalmente território palestino desde 1948. Pretextando o direito a defender-se, Israel vem desde então promovendo terrorismo de Estado, não apenas contra a população de Gaza, de onde partiram os ataques do Hamas, mas também contra a Cisjordânia, o Líbano, a Síria e o Irã. Igual a Ucrânia, Israel conta com o apoio dos Estados Unidos.

No quesito conflitos militares, 2024 deve terminar pior do que 2023. Isso está vinculado a dois fenômenos distintos, mas interligados. Por um lado, a indústria militar e as guerras são componentes cada vez mais importantes da dinâmica capitalista moderna, especialmente nos momentos de crise. Por outro lado, a ameaça de guerra e/ou a guerra propriamente dita constituem parte essencial do esforço que os Estados Unidos fazem para tentar reverter o declínio de sua hegemonia.

A situação atual poderia evoluir para algo semelhante às duas guerras mundiais ocorridas no século passado, com o agravante de que agora armas nucleares possam vir a ser utilizadas? Ou o que teremos pela frente seria um processo mais ou menos longo de conflitos de pequena e média intensidade, regulares e irregulares, capazes de provocar grande letalidade e todo tipo de horror, mas sem chegar ao ponto de uma guerra total como a Primeira e a Segunda?

Há muitas e diferentes respostas para estas duas perguntas. A rigor, não há como ter certeza sobre o que pode vir a ocorrer, entre outros motivos porque até mesmo as justificadas medidas protetivas adotadas por quem é contra as guerras, servem de pretexto para uma escalada por parte de quem é a favor da guerra.

Mas não é certo que tudo seja incerto.

Por exemplo: em última análise, na base da militarização está a dinâmica capitalista, ou seja, a subordinação de toda a vida social ao objetivo de valorizar o Capital; as decorrências sociais e políticas das crises periódicas; o papel da indústria armamentista na acumulação em geral e nos momentos de crise em particular; a ação do imperialismo; as disputas interimperialistas e intercapitalistas. A afinidade entre capitalismo e guerra mundial é tão profunda que podemos concluir o seguinte: enquanto o capitalismo não for superado, a guerra seguirá nos assombrando.

Outro exemplo de que nem tudo é incerto: ao menos neste momento da história, a derrota do capitalismo passa por enfrentar os Estados Unidos. Os EUA são, ao mesmo tempo, epicentro do capitalismo mundial e da militarização. Seja por seu papel na desordem capitalista mundial, seja pelo estoque acumulado de armas e histórico de violência, seja pela importância que a indústria militar tem na sua dinâmica econômica, seja por usarem das armas como ferramentas para tentar interromper e reverter seu declínio como potência hegemônica, a conclusão é a seguinte: a eliminação ou pelo menos a redução dos conflitos militares passa pelos Estados Unidos.

Nesse sentido, há três possibilidades fundamentais:

i/uma pax americana, resultante da derrota da China, da Rússia e dos demais inimigos estadunidenses. Mas esse cenário seria uma paz precedida por enormes cemitérios e, muito provavelmente, acompanhada de insurgências variadas mundo afora;

ii/outra possibilidade seria uma mudança na conduta dos Estados Unidos, seja por uma vitória da esquerda estadunidense, seja por uma derrota militar do imperialismo gringo, seja por uma correlação de forças mundial que obrigasse os Estados Unidos a adotar uma postura mais comedida. A primeira hipótese ainda não se vislumbra, a segunda pressuporia a já citada pax dos cemitérios, a terceira é de difícil execução.

Sobre esta terceira possibilidade, a dificuldade reside basicamente em dois pontos:

i/os Estados Unidos não aguardam parados que se construa, ao redor deles e para nos proteger deles, um “cordão sanitário”. Pelo contrário, tomam medidas para impedir que a situação chegue ao famoso “ponto de não retorno”, a partir do qual a camisa de força se tornaria hipoteticamente insuperável;

ii/os Estados Unidos enfrentam imensas dificuldades para reverter o seu declínio nos terrenos econômico e tecnológico. Por isso, precisam criar conflitos militares, precisam deslocar os conflitos para o terreno das armas, onde ainda contam com vantagem relativa.

Os dois pontos citados anteriormente explicam por que os EUA atacam sempre, tornando de difícil execução a criação de um “cordão sanitário” que os obrigue a maior comedimento. Ao contrário de uma atitude passiva ou reativa, os Estados Unidos adotam, há tempos, a “teoria do dominó” e o “ataque preventivo”. E não se importam muito com a natureza política e social dos seus oponentes. O que lhes importa é saber se são oponentes. Motivo pelo qual sempre foi ilusão achar que seríamos tratados de forma qualitativamente diversa caso nos limitássemos a implementar um programa respeitoso ao capitalismo mais ou menos neoliberal e/ou aos marcos da democracia eleitoral modelo USA.

A natureza do nosso programa e as características de nossa democracia são variáveis importantes no que diz respeito a ganhar maioria entre nosso povo. Mas a variável principal que decide a atitude dos Estados Unidos a nosso respeito é a postura que adotamos frente ao lugar dos EUA no mundo. Na prática, um socialista revolucionário e um socialdemocrata sincero serão tratados da mesma forma caso enfrentem as regras unilaterais USA e caso questionem o papel do dólar.

A esquerda brasileira não tem uma atitude única frente aos Estados Unidos e a seus aliados. Dentre o leque de posições existentes, destacamos três:

i/aquela que não reconhece a existência do “imperialismo” ou, pelo menos, não opera com esta categoria no momento de construir e aplicar sua respectiva política externa (de governo) e internacional (de partido ou movimento). Os que pensam assim não constroem uma política para lidar com o imperialismo enquanto política de Estado; no máximo, adotam políticas para lidar com atitudes imperialistas adotadas por determinados governos. Mormente, reduzem o imperialismo ao militarismo; quando, na verdade, este último é uma decorrência daquele primeiro.

A conduta acima descrita é muito forte no ministério do governo Lula 3, inclusive entre os representantes da esquerda. É isto que explica, ao menos em parte, as expectativas (frustradas) que muitos manifestaram em torno da “revolução” que, supostamente, seria feita pelo governo Biden; as ilusões em torno da política interna e externa do Partido Democrata dos EUA; a tolerância com que são tratados os escandalosos vínculos de nossas forças armadas e de segurança com o Pentágono e com Israel; e a aposta que setores do Itamaraty seguem fazendo no relacionamento com a Europa, por exemplo no neocolonial acordo de livre comércio UE-Mercosul.

Evidentemente, tanto o imperialismo quanto as guerras do século XXI possuem diferenças frente ao que existiu no passado. E não há dúvida de que se pode e se deve explorar as divergências existentes entre os imperialismos e no interior de cada nação imperialista. Mas colocar em dúvida a existência e a relevância do imperialismo é negacionismo. E não estruturar nossa política internacional em torno do combate ao imperialismo nos torna desguarnecidos frente aos seus inevitáveis ataques. Vide, aliás, o que ocorreu no governo Dilma 2.

ii/a segunda posição é aquela que não reconhece o imperialismo estadunidense como nosso inimigo principal, atribuindo à Rússia e à China uma conduta que também deveria ser combatida com ênfase se não igual, pelo menos similar.  

Esta segunda posição - tratar todos os integrantes do Conselho de Segurança da ONU como “farinha do mesmo saco”, por serem igualmente capitalistas e/ou imperialistas - é muito forte em alguns partidos de ultraesquerda, mas também dentro do PSOL e do PT.

Evidente que nossa política internacional não pode nem deve ser “seguidista” de ninguém. Não apenas por razões de princípio, mas também porque o inimigo de nosso inimigo nem sempre é, tampouco precisa necessariamente ser nosso amigo, além de poder vir a ser o inimigo de amanhã.

Evidente, também, que há e seguirá havendo muito debate acerca da natureza do Estado e da sociedade chinesa, bem como acerca de como caracterizar sua projeção externa. Ainda a esse respeito, vale lembrar que nos anos 1960 e 1970, o Partido Comunista da China chegou a classificar a URSS como “social-imperialista”. Contudo, sem prejuízo deste debate de fundo, a questão é relativamente simples: do nosso ponto de vista – brasileiro e latino-americano – não faz sentido algum tratar de forma similar a Rússia, a China e os EUA.

Perguntamos: quantos golpes, quantas invasões, quantas ações de ingerência a República Popular da Chin e a Federação Russa (antes dela, a URSS) praticaram na América Latina e Caribe?

No caso da China, é preciso levar em conta a objeção segundo a qual a expansão econômica dos chineses seria, em si mesma, imperialista. Para facilitar o debate, admitamos que fosse assim, ainda que neste caso tivéssemos que falar de um “imperialismo com características chinesas”, que entre outras diferenças não seria acompanhado – ao menos na América Latina - da ingerência política e militar típicas do imperialismo estadunidense.

Mesmo aceita a hipótese acima, ainda assim ficaria evidente que China e EUA não são casos similares, entre outros pelos seguintes motivos: a/no plano político e militar, é para nós muito mais fácil lidar com a China do que com os EUA; b/no plano econômico, existe a possibilidade – inexistente no caso dos EUA – de propor aos chineses e com eles tentar construir outro padrão de relacionamento entre nossos países, no sentido de contribuir para a reindustrialização do Brasil; c/ademais e principalmente, China e Rússia se enfrentam, em maior ou menor medida, com os EUA. Na ausência deste enfrentamento, a pressão sobre nós e sobre a América Latina seria muito maior. Do ponto de vista estritamente pragmático, China e Rússia podem ser nossos aliados contra os EUA. Logo, se decidíssemos praticar alianças diretas ou indiretas com os EUA, tendo como alvo China e Rússia, essa decisão seria útil apenas para os Estados Unidos, não para nós.

iii/uma terceira posição é aquela que propõe organizar a política internacional da esquerda em torno da luta contra a extrema-direita (ou neofascismo, ou simplesmente fascismo). Esta terceira posição é influente inclusive entre os que são anticapitalistas, entre os que reconhecem a existência e o papel deletério do imperialismo, entre os que enfrentam os EUA, mas consideram que haveria um inimigo principal a ser combatido: o fascismo/neofascismo/extrema-direita.

Para debater esta terceira posição, é preciso começar lembrando de algo óbvio: em grande parte, senão na totalidade dos países capitalistas, convivem dentro da classe dominante diferentes posições. Dentre elas, a extrema-direita, que continuou existindo mesmo depois da derrota do nazifascismo em 1945. Continou existindo, é bom lembrar, porque foi tolerada, protegida e utilizada em nome de combater o comunismo, especialmente a União Soviética.

Pois bem: o desaparecimento da URSS, em 1991, gerou, em muitos setores da esquerda, a expectativa de que teríamos mais paz e mais liberdades democráticas. Os expectantes imaginavam que a corrida armamentista seria detida e os imensos gastos militares seriam reconvertidos em investimentos produtivos e sociais. E a derrota final (ou, pelo menos, o tremendo enfraquecimento) do socialismo como alternativa sistêmica ao capitalismo tornaria possível uma tremenda ampliação da democracia, não apenas na URSS e no Leste Europeu, mas também em muitos países capitalistas. Afinal, não estando mais em risco o capitalismo, se tornariam desnecessários os golpes, as fraudes e as distorções que maculavam os chamados regimes democráticos. Como resultado disso, aumentariam as chances de a esquerda chegar ao governo pela via eleitoral. No caso da América Latina e Caribe, onde existia uma interdição de princípio contra a chegada da esquerda aos governos nacionais, os golpes virariam coisa do passado e tudo dependeria de a esquerda ganhar para si o apoio das massas.

As expectativas eram mais ou menos essas. Mas não foi propriamente isso o que aconteceu. A coincidência entre crise do socialismo soviético, ampliação das liberdades democráticas formais e ascensão do neoliberalismo gerou efeitos colaterais que resultaram num cenário muito mais complexo do que o imaginado por muita gente de esquerda.

Acontece que o neoliberalismo implica em ampliar a exploração da classe trabalhadora pelos capitalistas e, também, ampliar a exploração da periferia do mundo pelas metrópoles capitalistas. Em decorrência, o que ocorreria seria uma escalada de conflitos, menos paz e menos democracia, sem falar das agressões ao meio ambiente.

Claro que o processo não foi linear, nem homogêneo. Mas como apontou Lula no discurso na ONU, depois de décadas de neoliberalismo, cresceu em todo o mundo a presença da guerra e da extrema-direita.

A ascensão da extrema-direita não deveria ser motivo de surpresa. Algo parecido ocorreu nas décadas de 1920 e 1930. O fato é que, em inúmeros países, o acumulado econômico e social de quatro décadas de neoliberalismo tornou muito mais difícil hegemonizar a classe trabalhadora através de fórmulas tipo “trabalhe e melhorarás de vida”, fórmulas que tinham por detrás a crença de que o capitalismo permitia a ascensão social. Os bisavós e avós das atuais gerações acreditavam que sua prole tinha grandes chances de melhorar de vida. Já a atual geração tem a certeza de que sua prole tem grande chance de ter um futuro pior do que o passado. Até porque as pessoas, quando conseguem trabalho, trabalham cada vez mais e não conseguem melhorar de forma correspondente.

Se a classe dominante não fizesse nada a respeito, esta percepção poderia servir de combustível para o crescimento da esquerda. Mas, como sabemos, a classe dominante quase nunca deixa de fazer o que precisa ser feito em benefício dela mesma. Mesmo depois da URSS desaparecer, os Estados capitalistas vêm reforçando seu aparato militar externo e de segurança interna. Mesmo depois do desmanche do socialismo soviético e da adoção de políticas de mercado na China, os oligopólios de comunicação e cultura mantiveram e ampliaram sua campanha ideológica anticomunista, inclusive tratando como farinha do mesmo saco os socialismos revolucionários remanescentes e as políticas de bem-estar social de tipo socialdemocrata. Em inúmeros países, verificou-se o fortalecimento dos mecanismos de controle sobre os processos eleitorais, via oligopólio da comunicação, marketing despolitizante, regras restritivas e grana, muita grana. Investiram pesado na destruição e desmoralização de partidos, movimentos e organizações que tivessem vínculos com a emancipação da classe trabalhadora. Estimularam organizações de tipo empresarial e religioso. E onde nada disso foi suficiente para impedir vitórias eleitorais da esquerda, retomaram fórmulas mais ou menos vintage para controlar, sabotar, cooptar e quando necessário derrubar eventuais governos de orientação popular. No final das contas, a ampliação das liberdades democráticas se limitou ao plano dos procedimentos formais: depois de 1991, mais pessoas passaram a participam de processos eleitorais ao estilo estadounidense.

Frente a tudo isso, houve diferentes reações na esquerda. Uma destas posturas foi a de mudar de lado. Outra foi rebaixar o programa. Uma terceira foi a integração no sistema político eleitoral americanizado. Mas houve também quem resistiu a isto, das mais variadas formas.

Mas quando se olha a situação do ponto de vista da classe trabalhadora, das grandes massas do povo, o que se percebe é que cresceu muito a descrença quanto aos processos eleitorais, enquanto mecanismos idôneos para melhorar a vida dos setores populares.

Claro que sempre houve setores populares absenteístas, assim como sempre houve setores populares cooptados pela classe dominante. Em cada país, apenas uma parte da classe trabalhadora tem consciência de classe. Entretanto, a hegemonia neoliberal também fez crescer a descrença com o sistema político eleitoral.

Mesmo em países como o Brasil, em que candidaturas de esquerda venceram 5 das 9 eleições presidenciais realizadas desde 1989, é óbvio que há uma crescente insatisfação com o sistema político, uma crescente degradação das liberdades democráticas, com campanhas cada vez mais custosas, com o empresariado privado seguindo na compra de mandatos, com o oligopólio da comunicação manipulando consciências, com o crime organizado interferindo, com o crescimento da violência política, com a judicialização da política e a partidarização da justiça, com a interpretação criativa da legislação eleitoral etc. Sem falar no cerco institucional e dos poderes fáticos que dificultam a vida de um governo de esquerda que queira cumprir seu programa.

Frente a tudo isto, simplesmente não dá para levar a sério quem teoriza acerca da superioridade abstrata da democracia realmente existente no mundo capitalista. Assim como não dá para aceitar a hipocrisia ou cegueira dos que exigem “normalidade exemplar” de processos eleitorais realizados sob sanções econômicas e cerco militar.

A degradação do sistema político e eleitoral típico da “democracia burguesa” não ocorre apenas na periferia do mundo capitalista. Vide o que está ocorrendo nos Estados Unidos, na disputa sem quartel entre trompistas e democratas. Não se trata de um problema deste ou daquele país, deste ou daquele líder, deste ou daquele partido. O problema é mais de fundo e já foi demonstrado nos anos 1920: em períodos normais, a democracia eleitoral burguesa talvez seja mesmo o melhor método para os capitalistas exercerem sua hegemonia; mas, em momentos de crise, parte crescente dos políticos profissionais a serviço da classe capitalista apela para a manipulação e relativização escancaradas de muitos resultados eleitorais. Vide a formação do recente governo francês.

É nesse contexto – de crise daquilo que alguns chamam de democracia liberal - que crescem as forças políticas de tipo fascista. Foi assim na década de 1920, está sendo assim um século depois.

À classe dominante, o neofascismo oferece mão dura e muita fé para manter a paz social, num ambiente de crescentes contrastes entre ricos e pobres. Aos setores médios, o neofascismo oferece menos lei e mais ordem contra os pobres. Aos setores mais lascados do proletariado, o neofascismo oferece um coquetel explosivo que inclui coachs, bets, crime, teologia da prosperidade e empreendedorismo popular. Tudo devidamente embalado como crítica de direita ao sistema. E tendo como som de fundo algo ao estilo Dança das Valquírias: o culto à violência e à morte.

Devido a esta natureza multifacetada, é ilusão achar que se pode combater e derrotar o neofascismo apenas fazendo apelos à paz e à democracia. Assim como também é ilusão acreditar que ele possar ser superado apenas pela oferta ampliada de empregos e políticas sociais. Vide o que vem ocorrendo no Brasil desde o final de 2022 até hoje. Os indicadores melhoram, mas a popularidade do governo Lula e a votação na esquerda não correspondem. Derrotar o neofascismo exige recompor o tecido econômico e social, mas no contexto de uma revolução política e cultural. Pois o neofascismo é um sintoma de um processo muito mais profundo.

Isto posto, é fato que a extrema-direita é mais ameaçadora para a esquerda, do que a direita gourmet. É mais ameaçadora, entre outros motivos, pelo círculo vicioso decorrente da existência dela: i/a extrema-direita disputa contra nós a influência sobre amplos setores populares; ii/a extrema-direita, quando vitoriosa, reduz ainda mais as liberdades democráticas do povo; iii/em nome de derrotar a extrema-direita, parcelas amplas da esquerda e da direita tradicional fazem concessões à direita; iv/e ao ficar cada vez mais parecida com a política tradicional, a esquerda perde ainda mais influência sobre amplas camadas do povo.

No plano da política externa, entretanto, a coisa é mais confusa. Tanto nos EUA quanto na Europa, o enfrentamento com a China e o apoio a Israel contra a Palestina unifica a maior parte da classe dominante. Já no caso da Ucrânia, há mais divergências. Na Alemanha, por exemplo, o partido neonazista diverge do apoio sem limites que vem sendo dado à Ucrânia contra a Rússia. Trump faz o mesmo.

A confusão também comparece no plano econômico. Na América Latina, as principais estrelas do neofascismo – Milei e Bolsonaro, por exemplo - são neoliberais, ultraliberais, libertarianos. Já na Europa e nos EUA, a extrema-direita tende a ser nacionalista e protecionista. Aliás, há crescentes sinais, em todo o espectro político vinculado à classe dominante dos grandes países imperialistas, de que o Estado como agente econômico direto está sendo reabilitado.

Moral da história: está correto tratar o neofascismo como inimigo principal; mas é indispensável enfrentar a principal causa do fortalecimento do neofascismo, a saber, as políticas econômicas neoliberais e a consequente degradação das liberdades democráticas. Por isso, o antifascismo consequente é também anti-imperialista, vincula democracia com soberania, democracia com bem-estar, democracia com desenvolvimento.

Por isso, erram os que – a pretexto de derrotar o neofascismo - adotam a “defesa da democracia” desvinculada do anti-imperialismo como critério fundamental nas alianças internacionais.

Aliás, é muito comum vermos defensores deste ponto adotando como “modelo” o sistema político existente nos EUA ou nalgum país da Europa. Ao fazerem isso cometem pelo menos três erros. O primeiro é aceitar modelos. O segundo é ocultar ou minimizar os imensos problemas existentes nos EUA e na Europa, inclusive no terreno das liberdades democráticas. E o terceiro e principal erro é não perceber que a tal “democracia eleitoral” está fazendo água por todas as partes.

Um sinal disto é que, no presente ano de 2024, a cúspide de conflitos militares coincide com uma “supermaratona eleitoral”: “da África à Ásia, das Américas à Europa (...) mais de 40 eleições nacionais ou transnacionais pelo mundo, em países que concentram mais de 40% da população mundial”. [A fonte da afirmação acima está aqui: 2024: o superano de eleições pelo mundo - Opera Mundi (uol.com.br)]

As eleições citadas são variadas e com resultados também variados. Muitas delas estão sendo diretamente afetadas pelas guerras, como é o caso das eleições nos Estados Unidos e nas europeias, onde “Palestina” e “Ucrânia” motivaram não apenas fortes debates, mas também explicam o comportamento de fatias importantes do eleitorado. Importante dizer que, nos casos citados, o comportamento de parte importante do eleitorado é forjado num ambiente em que operam mais ou menos livremente grandes empresas privadas de comunicação pró-Israel e pró-Ucrânia; ao mesmo tempo em que muitas vezes são censuradas e banidas posições em contrário ou meramente equilibradas. Aliás, em vários países autoproclamados democráticos, acontece de ser criminalizado quem se manifesta contra o sionismo.  Sem esquecer que na “democrática” Ucrânia o mandato de Zelenski expirou em 20 de maio de 2024; e o democrático Israel é conduzido por um cidadão que provavelmente estaria preso, não fosse a guerra.

A maneira como parte da mídia pró-Estados Unidos trata as ações de Israel contra a Palestina contribui para naturalizar não apenas a guerra, mas também o genocídio. Por um lado, isso legitima o desvio de crescentes recursos públicos em favor das empresas que produzem armamentos: como lembrou Lula na ONU, os “gastos militares globais cresceram pelo nono ano consecutivo e atingiram 2,4 trilhões de dólares”. Por outro lado, isso alimenta um ambiente político-cultural fascista, contribuindo para o crescimento da extrema-direita e da violência política nos processos eleitorais.

Resumo da ópera, pelo menos para nós aqui no Brasil e na América Latina e Caribe, é que precisamos saber de que lado cada movimento, partido e governo está, na batalha principal, que é contra o imperialismo. E precisamos pensar em termos de força real, não apenas institucional. Porque, no final das contas, será esta força real que vai decidir a parada, e não apenas a força institucional medida nos termos da democracia liberal.

Assim sendo, uma estratégia para estes tempos de guerra precisa prever:

-a construção das condições necessárias à defesa de nossa soberania nacional, incluindo aí forças armadas que não estejam subordinadas aos EUA, como é o caso (hoje) do alto comando das nossas;

-a construção de alianças fortes com as forças políticas antiimperialistas que atuam no nosso entorno imediato (América Latina e Caribe), motivo pelo qual o Foro de São Paulo deve continuar sendo uma prioridade na nossa política internacional e a integração regional deve ser reconstruída como viga mestra de nossa política externa;

-a construção de relações com as forças políticas antiimperialistas que atuam no chamado Sul Global (África, Ásia), com prioridade para China e Rússia;

-a solidariedade com todas as forças que lutam contra os Estados Unidos e seus aliados, a começar pelo povo palestino.

Evidentemente, há contradições entre nossos potenciais aliados anti-imperialistas. Assim como há, dentre esses aliados, forças que coincidem mais ou menos conosco no que toca à defesa do socialismo e das liberdades democráticas. Mas o tratamento dessas “contradições no seio do povo” não pode nos levar, nunca, a fazer alianças com aqueles que empurram o mundo para a catástrofe.