Tarso Genro escreveu uma carta pública dirigida ao governador de São Paulo, João Doria.
Doria respondeu, com um telefonema.
Que Doria falou para o Tarso?
Não sei, Tarso não contou e Doria pelo visto não escreve cartas.
Mas deve ter sido algo legal, a julgar pelo “textão” que Tarso publicou no Sul21.
A íntegra deste texto está reproduzida ao final.
Tarso gasta parte do citado "textão" falando de exemplos históricos e autores de um jeito
tal que renderiam boa polêmica.
Para quem não leu, Tarso cita, entre outros: o general Santa Cruz, Sócrates, Marx, Prestes e Olga, Vargas, Ênio Silveira, Castello Branco, Norman Mailer, Kennedy.
A referência a Ênio me parece chave: “Ênio Silveira se dirigiu diretamente ao general, sem qualquer ilusão de que ele deixasse de ser o que era – a autoridade máxima de regime de força no caminho de uma ditadura – fazendo das suas cartas instrumentos da luta democrática. Falava com o General como adversário com posições claras, mas sobretudo falava com uma vasta gama de quadros intelectuais e dirigentes políticos, que começavam uma resistência heroica ao novo regime, autoritário e militarizado, que passaria em 68 a uma ditadura militar integral”.
Imagino que Tarso se veja mais ou menos assim: se dirige a Doria, um quadro da direita, para pedir que ele ajude a evitar que as coisas piorem; ao mesmo tempo dialoga com a militância.
Não vou discutir o nobre propósito, nem o meio, mas a mensagem.
Quero lembrar o que Tarso propôs para Doria: “pela sua condição de Governador do Estado mais importante do país, no qual suas classes dominantes têm exercido uma tutela quase plena, há muitos anos, o Sr. detém hoje a legitimidade necessária para – através dos devidos processos legais – desequilibrar o jogo contra Bolsonaro. Pode reunir em torno de si um apoio significativo do empresariado mais privilegiado e rico do país, para defender seu Estado da barbárie negacionista e – por tabela – também ajudar o país: Bolsonaro não pode continuar governando, o Estado está se deteriorando e a aposta dele no 'quanto pior melhor' só favorece os assaltantes do caos”.
Se Tarso
trabalhasse no Pasquim, talvez o pedido fosse feito mais ou menos assim: Doria,
o senhor e seus amigos poderiam por favor tirar da sala o bode fedorento que vocês
colocaram dentro da sala em 2018?
Mas aí estaríamos no terreno do (bom) humor, não no terreno da política.
No terreno da política, o que -- na minha opinião -- Tarso estimula é a crença em que uma frente político-empresarial controlada pela oligarquia paulista seria capaz de “ajudar o país”.
Esta crença tem um pressuposto, que Tarso desenvolve no seu “textão” (uso aspas, pois nada tenho contra textões, muito antes pelo contrário, até porque lê quem quer e eu gosto de ler os textos do Tarso).
O pressuposto de Tarso é: “Bolsonaro, num estágio ´cesarista de poder, sem base social orgânica nas classes mais estruturadas da sociedade, mas presente em todas elas, através de um ´bloco histórico´ que opera – na política – ´cimentado´ por uma ética marginal às instituições do Estado, sem vínculos com qualquer espécie de republicanismo, mesmo aquele mais autoritário. Bolsonaro é a excrescência burguesa mais decadente no poder, compatível com aqueles setores do empresariado – grande, médio, pequeno – que há muito deixaram de ver a nação, mas contemplam apenas seus negócios em ruína ou em dificuldades, em função da nova ordem global, que lhes arrasta a serem funcionários de repasse das taxas de juros da acumulação dos oligopólios financeiros”.
Peço que releiam as frases acima. Notem que numa está dito que Bolsonaro não possui “base social orgânica” nas “classes mais estruturadas da sociedade”; noutra frase está dito que ele está presente em todas elas; e logo depois se diz que ele é uma excrescência compatível com vários setores do empresariado.
Como hoje é 3 de janeiro, vou pular a parte do debate categorial e vou direto ao fulcro: Bolsonaro tem uma forte base social, organizada, estruturada e presente em diferentes classes sociais. Mas seu projeto é, como Tarso mesmo diz, burguês.
Apesar disto, Bolsonaro pode ser derrotado por um setor da burguesia? Pode, claro, embora como o próprio Tarso diz, também possa acontecer dele se reeleger ou coisa pior.
Mas a burguesia vai querer fazer isto? E se quiser, qual o preço que eles vão querer que a classe trabalhadora pague?
A resposta para estas questões pode ser descoberta, penso eu, respondendo a seguinte pergunta feita por Tarso: “como é possível que um país como o Brasil (...) tenha caído tão baixo, a ponto do seu Estado estar próximo da putrefação, sem nenhuma reação das suas instituições republicanas, para retirar do poder o psicopata que nos desgoverna?”
Sugestão de resposta é: alguém precisa fazer o serviço sujo. Bolsonaro está fazendo. Se tudo der certo, em 2022 ou 2026, alguém mais respeitável assume a presidência, sem ter que se preocupar com os “absurdos” que o empresariado e a direita sempre denunciaram na Constituição de 1988 e no Estado brasileiro.
Por isso,
Tarso está certo quando defende “estimular” todos os movimentos de “dissenso”
contra Bolsonaro”, inclusive os de direita.
Mas está errado quando fala em “respeitar” todos os movimentos de “dissenso” contra Bolsonaro.
Pois respeitar, segundo o pai dos burros, tem no fundamental dois significados: “deferência” ou “obediência”.
Doria, Maia, Baleia e Temer não merecem "respeito", em nenhum dos dois sentidos.
No fundo, o que está em jogo é a independência da classe trabalhadora e a da esquerda.
Na época da criação do PT, nos queriam "respeitando" os liberais, enquanto durasse a luta contra a ditadura.
Se tivéssemos feito isso, os governos Lula e Dilma não teriam existido.
Agora nos querem "respeitando" os neoliberais, enquando durar a luta contra o bolsonarismo.
Se fizermos isso, a única coisa de bom é que haverá tempo de sobra para escrevermos cartas aos coroneis.
SEGUE O
TEXTO COMENTADO
Frentes e Movimentos para bloquear a infâmia: João Dória respondeu
Publicado em: janeiro 2, 2021
Tarso Genro (*)
É óbvio que um
militante político, inclusive para verificar a universalidade da sua
experiência, sempre tende a ligar momentos da sua participação pessoal nas
lutas que enfrenta, com fatos históricos relevantes que aparecem no seu
cotidiano. No meu caso, faço a ligação de um fato singular que ocorreu comigo,
uma carta pública endereçada ao Governador Dória, pela qual eu lhe estimulava a
responder em seu nome próprio e do seu Estado as agressões criminosas do
Presidente Bolsonaro. A Carta pública combinou-se com o aniversário de
dois anos trágicos do Governo “boçal” de Bolsonaro, como qualificou seu antigo
aliado o General Santos Cruz.
Este artigo
prossegue aquela reflexão, no momento que iniciamos o terceiro ano do seu
Governo, ainda com a ameaça que ele possa sobreviver aos quatro anos de mandato
e, mais trágico ainda, que seu nome possa chegar ao segundo turno das eleições
presidenciais. Sócrates, típico político militante e filósofo da antiguidade
ateniense, considerado o “padroeiro” da filosofia ocidental, que foi condenado
à morte por zombar da religião e da democracia recomendou, no fim dos seus dias
— aos seus jovens discípulos — que continuassem “questionando tudo”. Tal
postura metodológica de Sócrates inspirou Marx a apontar, como um dos seus
aforismos prediletos, “duvidar de tudo”.
Sócrates era um
inoportuno brilhante, característica (a segunda) que certamente não estará na
minha biografia, mas sinto-me obrigado a retornar ao assunto, porque recebi
várias e inteligentes mensagens sobre aquele primeiro texto (“Carta a João
Dória”), incluindo um telefonema do próprio Governador de São Paulo, que
redundou numa longa e estimulante conversação entre diferentes, sobre a crise
democrática no país. As mensagens, evidentemente, não me compararam em nada com
Sócrates, mas pelo menos me aproximam um pouco — não da sua genialidade — mas
da sua personalidade fundada em suscitar dúvidas. Estas, aliás, sempre tendo a
colocá-las publicamente para aproveitar a inteligência de outros e assim
aprimorar minhas ideias, por afirmação ou negação.
Luís Carlos
Prestes, depois de dez anos de prisão, é solto no início de 1945, após Vargas
decretar a anistia e libertar os presos políticos do regime. Sai do cárcere
para tornar-se um dos líderes do movimento “queremista”, que defendia a
permanência de Getúlio no poder. Prestes – segundo a orientação comunista –
deveria defender esta política, mesmo que o Regime de Vargas tivesse entregue
sua mulher e companheira Olga Benário -judia e comunista- para a Gestapo, onde
seria assassinada pelos nazistas.
Era o Brasil pós-guerra,
que iria consolidar sua industrialização pesada, o controle das suas fontes de
energia fóssil e a modernização da legislação laboral. Ênio Silveira, quadro
político integrante do PCB, editor de alta respeitabilidade e um dos grandes
intelectuais do país – dez anos depois (em 1965) –
fundaria a revista Civilização Brasileira, uma das maiores e melhores revistas
político-culturais da América Latina.
No n° 3 da Revista
(julho de 65), Ênio publica um texto epistolar, clássico da história política
nacional, denominado “Primeira Epístola ao Marechal: sobre a liberdade de
opinião”. A carta, destinada ao Presidente Castello Branco, contém a seguinte
passagem – depois de recomendar a leitura ao Presidente Castello, de um livro
de Norman Mailer (“Presidential Papers”) – composto de mensagens, cartas e
relatórios de autoria de Mailer dirigidos ao Presidente Kennedy: “Empolguei-me
de tal maneira com o livro, que duas ideias me ocorreram: a de editá-lo em
língua portuguesa (…) e a de iniciar correspondência semelhante com o Senhor”.
A carta fora escrita depois de uma das várias prisões de Ênio Silveira,
nos primeiros anos do Regime Militar.
Com 20 anos de
distância, são dois exemplos de quadros políticos que, em situações análogas,
independentemente do seu “gosto pessoal”, produziram gestos de interferência na
conduta dos adversários (ou inimigos) segundo a avaliação das forças em
disputa, que passariam para a História: Prestes, no pós Guerra, assumindo uma
posição de apoio Getúlio porque – segundo a visão dos seus pares comunistas –
isso ajudaria a estabilizar uma nova ordem mundial que bloquearia qualquer
ofensiva contra a URSS, com a colaboração do organismos bilaterais repactuados,
depois da vitória contra o nazismo, com os regimes democráticos em consolidação
em todo o mundo, ao lado da URSS dos “Soviets”.
Ênio Silveira se
dirigiu diretamente ao general, sem qualquer ilusão de que ele deixasse de ser
o que era – a autoridade máxima de regime de força no caminho de uma ditadura –
fazendo das suas cartas instrumentos da luta democrática. Falava com o General
como adversário com posições claras, mas sobretudo falava com uma vasta gama de
quadros intelectuais e dirigentes políticos, que começavam uma resistência
heroica ao novo regime, autoritário e militarizado, que passaria em 68 a uma
ditadura militar integral.
Estas lembranças
trazidas para o presente, nos ajudam a pensar politicamente como chega aos dias
de hoje, o Governo Bolsonaro, depois do transcurso de dois anos de inépcias,
insanidades, negacionismos, corrupção endêmica, crise radical na saúde pública
e na economia e desprestígio internacional. Depois de tentar desmoralizar as
maiores lideranças e Governadores da oposição, Bolsonaro passou também a atacar
e ser atacado pelos dissidentes dos seus grupos de extrema direita, de direita
e centro direita, rachando ideologicamente o país – tanto “entre as classes”
como “intraclasses” – como também fragmentando os grupos políticos principais e
marginais, que lhe levaram ao poder.
Chega ele,
Bolsonaro, num estágio “cesarista” de poder, sem base social orgânica nas
classes mais estruturadas da sociedade, mas presente em todas elas, através de
um “bloco histórico” que opera – na política – “cimentado” por uma ética
marginal às instituições do Estado, sem vínculos com qualquer espécie de
republicanismo, mesmo aquele mais autoritário. Bolsonaro é a excrescência
burguesa mais decadente no poder, compatível com aqueles setores do
empresariado – grande, médio, pequeno – que há muito deixaram de ver a nação,
mas contemplam apenas seus negócios em ruína ou em dificuldades, em função da
nova ordem global, que lhes arrasta a serem funcionários de repasse das taxas
de juros da acumulação dos oligopólios financeiros.
Em que situação
política chega o Governo Bolsonaro, depois de dois anos repletos de delírios e
de decomposição da República, projetada pelo grupo de insanos e medíocres que
lhe acompanham no Governo, nas barbas da nossa “refinada” burguesia? Trata-se
daquela que permite que Ermírio de Moraes seja substituído pelo “Véio da
Havan”, Paulo Renato seja substituído pelo insano Weintraub e a hierarquia
moderada da velha Igreja Católica seja substituída por pastores escroques,
achacadores das micro poupanças dos pobres, com seus achaques para vender o
céu?
Para entender onde
chegou, no plano político, este Governo poderíamos apenas remeter ao recente
artigo de José Luís Fiori no “Sul 21”, “Sob os escombros, as digitais de
um responsável”, que mostra a “monotonia” dos fracassos de
Bolsonaro, a “desintegração física e moral da sociedade” e a disseminação do
“ódio e da violência entre os próprios cidadãos”. O Governo da morte
naturalizada pela incompetência e da brutal crise econômica, que se dissemina
em todos os poros da sociedade. Um artigo de Fiori, todavia, – conhecido
acadêmico respeitado mundialmente – poderia ser apontado como “suspeito”, por
ser um membro da inteligência política do país, que nunca se rendeu à direita
econômica e ao fascismo, que hoje estão plenamente acumpliciados. Busquemos,
então, fontes mais “isentas”.
A correspondência
escrita, oral, gestual, meramente discursiva – direta ou indireta – entre
inimigos e adversários, é um capítulo estrutural na “polis” desde a
antiguidade. As mensagens, gestos, cartas formais, discursos, breves
“bilhetes”, versos, poemas – entre amigos e inimigos – adversários e
correligionários, hoje com momentos recheados pelos “twiters” e outras formas
de comunicação expedita, adquirem uma importância extraordinária para detectar
crises, estudar níveis de putrefação de instituições, prever movimentos de
organismos políticos e preparar ações e estratégias de luta, para eleger novas
condições de confronto, negociação, repulsas e afinidades “eletivas”, num
próximo capítulo da História.
Entendi desta forma
a importância de fazer uma carta-artigo, endereçada ao Governador Doria, pela
qual, muito longe de me comparar com os paradigmas intelectuais e políticos
epistolares do Século passado – Churchill, Prestes, Mandela, Ênio Silveira,
Gramsci, Norman Mailler – apenas me colocariam num novo processo de
aprendizagem política, numa situação que – com mais de 50 anos de militância –
eu jamais enfrentei: como é possível que um país como o Brasil, que já teve
Presidentes como Getúlio, JK, Jango, Fernando Henrique e Lula, militares como
Rondon, Lott e Horta Barbosa – país que teve a envergadura que lhe permitiu
montar a Constituinte que redundou na Constituição de 88, tenha caído tão
baixo, a ponto do seu Estado estar próximo da putrefação, sem nenhuma reação
das suas instituições republicanas, para retirar do poder o psicopata que nos
desgoverna?
Vejamos o que
dizem, não os inimigos originários do Governo Bolsonaro, mas os seus ex-aliados
de primeira linha depois destes dois anos de bolsonarismo: o General Santos
Cruz, seu ex-Ministro, diz com todas as letras e sem temor reverencial, que o
Governo Bolsonaro é inconsequente, “despreparado e boçal”; o Governador Doria colocou
ontem (dia 1°), na sua conta do “twitter”, que Bolsonaro gosta é do cheiro da
morte, do cheiro da pólvora e do cheiro do dinheiro das “rachadinhas” , dotado
de comportamentos que estimularam “a morte de 194 mil brasileiros para Covid
19”. Merval Pereira, insuspeito de ter qualquer aproximação com a esquerda,
eleitor de Bolsonaro dentro da tese da “escolha difícil”, já registrou sem
meias letras que seu ex-escolhido é um “projeto de ditador” e “não tem as
mínimas condições de ser Presidente.”
O enorme arco
social de repulsa do Governo, em todos os poros da sociedade, tem sido
neutralizado pela impossibilidade de amplos movimentos de rua em função da
Pandemia e pela herança política deixada pelas campanhas da Globo contra os
Governos do PT e seus aliados de esquerda que, com seus erros e acertos,
deixaram uma das melhores heranças de políticas democráticas da história
republicana: posição respeitada e soberana no concerto global, crescimento
econômico e integração de milhões na sociedade formal, distribuição e renda
inédita na história do país: avanços notáveis na educação, políticas sociais de
apoio às comunidades negras, indígenas; defesa dos direitos das mulheres,
melhorias significativas na políticas ambientais, no aumento do Salário Mínimo,
respeito ao Estado de Direito e investimentos em infraestrutura, incomparáveis
com todo os Governos anteriores.
A neutralização
desta repulsa ainda está fundada, não só na tese da “escolha difícil”, mas
também na tese -nazistamente- repetida exaustivamente, que bastaria tirar o PT
do poder para tudo melhorar, e também que o PT “inaugurou” as práticas de
corrupção no Estado brasileiro. Para isso “colar” seria necessário erguer um
Juiz medíocre e leviano à condição de herói e jurista e também enfraquecer as
resistência ao arbítrio no STF, colocando holofotes de simpatia em Ministros
que aceitassem flexibilizar suas convicções republicanas, para colocar Lula na
cadeia, através de processos manipulados que demonstraram ter esta exclusiva
destinação.
Tenho sustentado
nos círculos de debate que participo que os partidos políticos de esquerda,
organizados tal qual eram no século passado, se não mudarem as suas práticas e
as suas formas de organização — voltadas especialmente para conduzir
politicamente seus filiados e simpatizantes às próximas eleições –, vão
gradativamente reduzir a sua importância política, até a sua exaustão completa,
perdendo o mínimo de sua capacidade dirigente. É possível verificar que os
dirigentes políticos mais importantes -de esquerda e centro esquerda do país –
sem exceção, já se desligaram das práticas tradicionais e rituais de submissão
dos seus próprios partidos e incidem muito mais sobre estes – nestas relações
em rede – do que os partidos sobre as suas lideranças mais importantes.
Talvez o conceito
de “Grupo Dirigente” gramsciano, transposto para a vida da sociedade em rede,
possa servir de referência para um novo conceito de partido emancipacionista
“aberto”, também composto pelos partidos formais do século 20, que ali poderiam
exercer 24 horas por dia a sua atividade política com vocações dirigentes
compartilhadas. Não precisariam abdicar das suas análises de conjuntura, que
perdem atualidade no dia seguinte da sua publicação, em função de uma mudança
radical do “tempo” histórico, cuja velocidade é muito maior do que a sua
capacidade de alguém produzir análises sobre cada momento conjuntural, que é “
indisciplinado” pelas novas tecnologias de informação que controlam cada vez
mais as nossas vidas.
É um tema delicado
e complexo, mas coloco-o de uma maneira sumária: nas sociedades em rede a
formação da opinião, o convencimento para determinadas ações políticas e
mobilizações não são orientadas mais por decisões verticalizadas, mas por
relações horizontais de comunicações sumárias, que são orientadas por redes ou
núcleos superiores de “direção” – de participação direta na vida pública – que
não mais obedecem às determinações das burocracias tradicionais dos partidos,
mas nascem – de forma fenomênica – a partir das agruras, pulsões e perversões
da vida cotidiana, onde o mercado regula a vida e não a vida regula o mercado.
Socialistas e
sociais-democratas, republicanos democráticos e conservadores, esquerda
moderada e radical, burgueses e proletários, já se comunicam assim e é neste
terreno que Bolsonaro se mantém e avança. Adoece a sociedade, propaga a morte,
estimula as perversidades dos recalcados, oprimidos e frustrados, formando a
base social do seu fascismo atípico: impõe enunciados da vida cotidiana sobre a
História, enfraquece a resistência das instituições democráticas e debocha dos
ataques da parte significativa da grande imprensa que gerou o Monstro.
Penso que, ao lado
de formar a nossa Frente política pela esquerda, programática, democrática e
plural, devemos estimular e respeitar todos os movimentos de “dissenso” contra
Bolsonaro que estão fora desta Frente, que se comprometam com a restauração da
nossa plenitude republicana. E mais, que – desde logo – pelas diversas formas
de articulação política, compatíveis com a sociedade em rede, se comprometam
com a luta em defesa da vida, com o resgate do republicanismo democrático e com
a exclusão de Bolsonaro do poder pelo “impeachment” ou pelas eleições.
Excluir Bolsonaro
como opção, no primeiro e no segundo turno — como alternativa presidencial — é
a chave das relações frentistas ou mesmo só daquelas de respeito e civilidade
política entre organizações e líderes, para bloquear o “queremismo fascista”,
que se organiza nos porões clandestinos das milícias. Os dois anos de Governo
Bolsonaro também nos ensinaram muito: tática e estratégia, tática e ética,
alianças e desavenças, estão mais soldadas do que nunca, em qualquer “cartada”
da história presente. Mais uma vez vem o verso de Elliot, que diz algo como:
“tempo passado e tempo futuro estão fundidos no tempo presente”.
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