quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Lejeune e certos exemplos históricos

Um amigo pediu que eu lesse e fizesse comentários sobre um texto intitulado “Concepções sobre a amplitude de uma frente político-eleitoral. É tempo de reler Lênin!” 

O referido texto é de autoria de Lejeune Mirhan, que até onde sei é militante do Partido Comunista do Brasil, embora esta informação não apareça no currículo citado no próprio artigo.

O texto tem 14 páginas, que eu reproduzo ao final. Meus comentários vão se limitar aos pontos de natureza histórica.

  1. concordo com Lejeune que é tempo de reler Lênin. Ou de ler Lênin, para quem nunca o fez. Aliás, sempre é tempo de fazer isso. Mas há que lembrar que as Obras Completas de Lênin têm cerca de 50 volumes, que graças ao companheiro Vaccari eu tive oportunidade de ler, na sequência. Maiores informações estão aqui:  https://valterpomar.blogspot.com/2014/10/roteiro-para-leitura-das-obras.html
  2. entretanto, ler ou reler Lênin não nos dará respostas para os debates do Brasil de 2021. Aliás, o próprio Lenin advertia que a essência do marxismo era a análise concreta da situação concreta, o que lhe permite ser guia para a ação. Sendo contraindicado o método religioso de citar passagens, deslocadas de texto e contexto, achando que daí se extraem respostas para os dilemas atuais da esquerda brasileira.
  3. Lejeune afirma que “a tradição dos comunistas é de jamais ficarmos neutros em qualquer situação política que seja. Especialmente em eleições”. Não estou seguro que a “tradição” seja esta e não sei porque isso se aplicaria “especialmente em eleições”, mas o que me preocupa na afirmação de Lejeune é uma decorrência que se pode extrair daí. Pois “jamais ficar neutro” não implica necessariamente em tomar partido pela vitória de uma das quadrilhas em disputa.  Por exemplo: os bolcheviques não ficaram neutros durante a 1ª Guerra Mundial: diferente de outros partidos socialdemocratas, os militantes do POSDR(b) lutaram pela derrota do governo de seu próprio país, mas sem que isso implicasse em apoiar um dos bandos em guerra. Posição difícil, mas que lhes garantiu a autonomia necessária para liderar uma revolução, enquanto outros viraram agentes da restauração capitalista. Se é para reler Lenin, este caso (a posição frente a 1ª Guerra) é mais relevante do que o ocorrido nos anos 1930 e 1940, quando Lenin já não estava mais aqui. 
  4. sobre Lenin Lejeune só trata de um episódio, ocorrido em fevereiro de 1917. Ao fazê-lo, afirma o seguinte: “tomou posse como primeiro-ministro o príncipe Lvov, menchevique, do então Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR), do qual Lênin participava, que ainda não era ‘Partido Comunista’.” Confesso que não sabia que Lvov era menchevique, isto é uma grande novidade para mim. Mas se ele era menchevique, então ele não era do mesmo partido que Lenin, pois já nessa época o PSODR eram dois, pois mencheviques e bolcheviques funcionavam como dois partidos oficialmente separados entre si.
  5. Lejeune também afirma que Lenin, nas Teses de Abril, “divaga, sob a ótica marxista, sobre a questão do caráter do governo provisório. Nesse documento, ele levanta a questão da transição, ou seja, a instalação de um governo democrático-burguês, que defende certas liberdades que interessavam aos bolcheviques, mas por meio das quais jamais se poderia caminhar rumo ao socialismo”. Até onde eu lembro, nas Teses de Abril Lenin levanta a questão da transição ao socialismo, não a questão da transição no sentido de “instalação de um governo democrático-burguês”.
  6. Lejeune também afirma que “em agosto de 1917” (…) “os bolcheviques passaram a ser maioria no Soviete de Petrogrado, antes dominado por mencheviques (ala dos trotskistas)”. Acontece que em 1917 o grupo de Trotsky não era uma ala dos mencheviques, mas sim um grupo a parte. E nesta época o grupo liderado por Trotsky entra no Partido Bolchevique, o que aliás ajuda a entender a mudança de correlação de forças no Soviete de Petrogrado.
  7. a decisão de tomar o poder não sofreu a oposição de Trotsky, mas sim de Kamenev e Zinoviev. Aliás, o período entre agosto e novembro é de grande proximidade entre Lenin e Trotsky.
  8. tirando estes digamos “detalhes”, Lejeune tem razão no seguinte: Lenin defendeu várias e diferentes táticas entre abril e outubro de 1917. Mas o motivo disto não foi a “correlação de forças”, mas sim alterar a correlação de forças. Este verbo (“alterar”) é um detalhe que alguns esquecem, como se as “condições” objetivas e subjetivas surgissem do nada, quando elas só pode surgir de uma ação que parta da correlação de forças dada, mas que atue no sentido de alterar essa correlação de forças.
  9. o que isso que foi comentado até agora tem que ver com o assunto do “mal menor”, eu confesso que não consegui captar. Pois em nenhum momento Lenin aceitou defender o governo provisório; seu critério foi sempre o de lutar pela derrubada do governo provisório em favor dos Sovietes; acontece que os Sovietes não eram  uma abstração; por isso, boa parte das mudanças táticas de Lenin nesse período tem que ver com a posição dos Sovietes, leia-se, da classe trabalhadora; no limite, Lenin defendeu transformar a luta pelo poder em palavra de ordem de ação tática imediata,  quando os bolcheviques tornaram-se maioria nos Sovietes. E os bolcheviques não viraram maioria falando bem ou conciliando com o governo provisório, pelo contrário. Mesmo no famoso episódio da revolta de Kornilov, os bolcheviques defenderam a revolução, sem se curvar ao governo provisório.
  10.  agora vejamos o caso da Alemanha. Lejeune propõe estudar “o caso de 1933, na Alemanha antes de Hitler, quando ainda os sociais-democratas da República de Weimar (1920) governavam o país”. Até onde eu lembro, no período entre 1920 e 1933, os socialdemocratas (embora sempre bem votados) nem sempre foram governo. Especificamente, os socialdemocratas estavam na oposição na fase final da República de Weimar*. Portanto, a síntese de Lejeune mistura um pouco as situações. Em segundo lugar, a relação entre socialdemocratas e comunistas era reciprocamente péssima. Não eram apenas os comunistas que passavam do tom; os socialdemocratas também. Aliás, não custa lembrar que a República de Weimar que Lejeune elogia foi construída sobre o cadáver dos espartaquistas, dos comunistas alemães, Rosa Luxemburgo inclusive. E a cúpula da socialdemocracia, hoje isto está provado, foi cúmplice direta do assassinato de Rosa e Karl. Em terceiro lugar, a teoria do social-fascismo não era exclusivamente obra dos comunistas alemães, tinha amplo trânsito e respaldo em toda a Internacional Comunista. E, finalmente, não custa lembrar, quem chamou Hitler para ser Chanceler foi Hindenburg. E num certo momento Hindenburg, talvez em nome do “mal menor”, recebeu o apoio dos socialdemocratas.
  11.  Lejeune faz  uma afirmação lateral, que eu quero comentar. Ele diz que: “Woodrow Wilson – que presidia à época os EUA, que ainda não eram imperialistas e nem hegemônicos no campo capitalista (…)”. Que em 1919 os EUA não eram o que se tornariam em 1945, de acordo. Mas dizer que não eram imperialistas é algo que precisaria ser demonstrado, pois contradiz o senso comum, as provas histórias e até mesmo a média das afirmações do marxismo a respeito.
  12. Sobre Adolf Hitler, Lejeune afirma que o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSADAP na sigla em alemão), com seu resultado eleitoral, “ganharia .. o direito de ser indicado chanceler para formar o governo”. E agrega: “Presidia o país Paul von Hindenburg, que havia presidido a República de Weimar, dos sociais-democratas. Ele era claramente um social-democrata”. Não sei de onde Lejeune tirou esta informação. Hindenburg nunca foi socialdemocrata. Nunca. E Hindenburg não foi derrubado, ele faleceu. Mas antes disso contribuiu com a transferência de poderes ditatoriais para Hitler…
  13. Depois dessa digressão, a qual cabem tantos reparos, Lejeune afirma que (vou citar um trecho mais longo) “os comunistas viram claramente que jamais conseguiriam vencer o nazismo sozinhos. Levantaram a bandeira tradicional da “Frente Ampla”, que se materializaria em cada país europeu ocupado de maneira distinta e com amplitudes diferentes, claro. Essa frente teria de ser amplíssima. O único ponto que unificasse todas as correntes políticas deveria ser contra o nazismo. Não se tratava de acertar contas com a burguesia, nem de destruir o capitalismo e construir o socialismo. Nada disso. Tratava-se, sim, de derrotar o nazifascismo. Até a burguesia liberal capitalista, se quisesse lutar contra os nazistas, poderia participar da Frente”.
  14. sei que a narrativa e a pós-verdade estão na moda, assim eu recomendo que as pessoas leiam o discurso feito por Dimitrov no 7º Congresso da Internacional Comunista. Assim se verá que a Frente Popular que os comunistas passam oficialmente a defender em 1935 é um pouquinho diferente desta síntese feita por Lejeune. O discurso pode ser lido aqui:  https://www.marxists.org/portugues/dimitrov/1935/fascismo/index.htm
  15. recomendo também a síntese feita por João Amazonas, não sei se Lejeune a conhece, está aqui:  https://www.marxists.org/portugues/amazonas/1985/08/congresso.htm

    Nesta síntese, Amazonas cita vários trechos de Dimitrov, entre os quais destaco esse:  “É preciso não perder de vista que a tática de frente-única é um meio de persuadir os operários social-democratas da justeza da política comunista e da falsidade da orientação reformista, e não uma forma de reconciliar-se com a ideologia e a prática social democrata”, salientava Dimitrov, chamando à vigilância de classe”.
  16. depois Lejeune diz que Franklin Delano Roosevelt seria um “social-democrata keynesiano”. Talvez seja por eu ser do ramo da história, mas atribuir a FDR a condição de “social-democrata” é como chamar Obama de socialista.
  17. sobre a Segunda Guerra, só acrescento o seguinte: nunca houve uma aliança plena entre a URSS e os países capitalistas atacados pela Alemanha. Portanto, nem mesmo naquela circunstância foi verdadeira a “utopia da frente ampla com inimigos de classe contra o mal maior”.
  18. o mesmo vale para a China. Lejeune simplifica a história de um jeito tão brutal, que transforma em outra história. A unidade entre comunistas e nacionalistas contra os japoneses foi muito tumultuosa. Houve combates entre aliados, traições entre aliados e o tempo todo se prepararam para o que viria depois: a guerra entre os “aliados”.
  19. o final da digressão, Lejeune conclui: “Que lições podemos extrair desses dois importantes exemplos? Mais uma vez a velha correlação de forças. E avaliarmos corretamente como os embates se apresentam a cada momento é tarefa primordial pelos que primam pela análise dialética marxista”. De fato, analisar os embates a cada momento é primordial, mas infelizmente o que Lejeune nos apresenta não é esta análise, mas uma simplificação, como indiquei anteriormente. E esta simplificação ajuda a esquecer algo essencial: nós analisamos a correlação de forças, com o objetivo de alterar a correlação de forças, não com o propósito de se dobrar a ela. Exemplo de simplificação: Lejeune diz que os comunistas chineses “fizeram uma aliança tática, circunstancial, momentânea. Não foi para governar juntos. Mas para derrotar um inimigo maior”. Não é apenas isso. Os comunistas chineses fizeram essa aliança tática para derrotar hoje um inimigo e amanhã derrotar o outro inimigo (ex-aliado). E atenção: na mesma época, em outros países, havia comunistas que esqueceram deste “detalhe” e, depois da guerra contra os nazistas, ou capitularam ou foram esmagados. 
  20. A partir deste ponto, Lejeune diz que “para muitas pessoas, esses dois grandes exemplos históricos de nada valem. O que vale é o momento. O melhor mesmo seria dizer ao povo: “olha, não se iludam, nestas eleições no primeiro e segundo turnos, nenhum partido, que não seja os de esquerda, presta”. Os exemplos valem, mas a maneira como Lejeune os interpreta é para lá de questionável.
  21. como disse no início, não vou comentar a parte do texto de Lejeune que trata da conjuntura brasileira, assunto que abordo cotidianamente em outros espaços.
*mais informações sobre o período, escritos desde um ponto de vista digamos convencional, podem ser encontradas aqui: https://www.deutschland.de/pt-br/topic/politica/a-republica-de-weimar

Leia aqui o texto citado acima:
https://resistentes.org/artigos/concepcoes-sobre-a-amplitude-de-uma-frente-politico-eleitoral-e-tempo-de-reler-lenin/

Um comentário:

  1. Que maneira mais arrogante de colocar as coisas: "olha!, se quiser falar de Lênin comigo, lembre-se de que suas obras têm 50 volumes, portanto, não me venha com suas Obras Escolhidas, que isso é Lênin para principiantes". Tive os 50 volumes das Obras de Lênin em espanhol, que comprei em Brasília. Não li toda obra, pois me considerei apto a reconhecer textos que pouco teriam a acrescentar, pois se relacionavam a situações conjunturais. Mas li, digamos, o bastante, o que pude, o que o tempo me permitiu ler. Entretanto, reconheço que um militante que tenha (lido não, que lê é coisa fácil de se fazer de maneira desleixada),estudado as Obras Escolhidas de Lênin merece ser reconhecido como alguém que conhece o pensamento de Lênin, a essência da teoria politica leninista, sendo ridículo a tentativa de usar o argument "o meu é maior do que o seu", para desqualificar o seu domínio do pensamento do genial chefe do partido dos bolcheviques. Pior ficou, ademais,ao acrescentar algo deselegante, bem besta, convenhamos, como o "ouvi falar que ele é do PCdoB", quando deveria também ter ouvido falar que "Lejeune Mirhan é sociólogo, professor universitário e arabista, membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa e da Internacional Socuiological Association. É colunista de Oriente Médio do Portal Vermelho (vermelho.org.br) desde 2002 e da revista Sociologia da Editora Escala (SP). Fez mestrado na PUCC (1984). Escritor dos livros 'Conflitos Internacionais num Mundo Globalizado' (2003) e 'A Luta Antiimperialista e a Hegemonia Americana' (2004), pela Alfa Ômega; 'Sociologia e Ensino em Debate' (2005), pela Editora da Unijuí e 'Sociólogos & Sociologia: História das suas Entidades no Brasil e no Mundo' (2006), pela Editora Anita Garibaldi". Sobre conhecer Marx de trás para frente e de frente para tras, disso nos falou Lênin referindo-se a Kaustky, concluindo da inutilidade desse saber enciclopédico sobre Marx que havia no cérebro de um pensador agora defensor do liberalismo. Imagine o tempo que um operário levaria para ser reconhecido como pensador marxista se alguém tentasse lhe intimidar com o volume de livros que dormem nas estantes de sua biblioteca particular. Ainda sobre Lênin, não creio que ele tenha feito tanta confusão entre tática e estratégia como tenho lido por aí.

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