quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Memorial

Publico a seguir trechos de um Memorial apresentado em setembro de 2014 como parte dos requisitos necessários a um concurso público para o cargo de professor adjunto na carreira do magistério superior.

# 

Nasci na cidade de São Paulo, em agosto de 1966. Durante meus primeiros dez anos, morei também nas cidades de Santos (SP), Fortaleza (SP), Crato (CE), Juazeiro (CE) e Belém (PA). Sempre com meus pais e, às vezes, com meus irmãos. Uma vida tranquila do ponto de vista material e tendo acesso, em casa, a muitos livros, especialmente adaptações “para jovens” de clássicos da literatura universal.

A única excentricidade deste período foi, aos sete anos, uma troca de nome, de Valter para Carlos. Os motivos ficaram mais claros no dia 16 de dezembro de 1976, quando forças policiais e militares atacaram uma reunião do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Entre os assassinados, meu avô Pedro Pomar. Entre os presos, meu pai Wladimir Pomar.

No início de 1977, acompanhei minha mãe até Brasília, para um rápido encontro com o general de exército José Ferraz da Rocha, único irmão de meu avô materno, então já falecido. Neste encontro, o general informou nada poder fazer pela sobrinha e seu marido, uma vez que “se recebesse ordem para matar, mataria”. Afora isto, a visita à casa do general serviu para descobrir que manga também se comia no prato, com garfo e faca.

De Brasília, minha mãe veio para São Paulo, encontrar-se clandestinamente com sogra e cunhados, um dos quais me abrigou em sua casa. Meses depois voltei a morar com minha mãe Rachel, depois que ela recuperou seus documentos legais e constituiu advogado para meu pai, condenado naquele mesmo ano a alguns anos de cadeia. Luís Eduardo Greenhalgh, advogado de meu pai, consta como testemunha na certidão de nascimento de Valter Ventura da Rocha Pomar, nome que só passei a utilizar quando já tinha onze anos.

Entre 1978 e 1981, fui bolsista no Ginásio do Grupo Educacional Equipe, escola criada por pedagogos e militantes de esquerda. Igualmente tranquilo do ponto de vista material, foi um período cultural e politicamente agitado. Visitei regularmente meu pai na cadeia, onde convivi com muitos presos políticos e suas famílias. Engajei-me no movimento estudantil secundarista, acompanhando também atividades universitárias. Ingressei na chamada “esquerda” do Partido Comunista do Brasil e dela fui expulso pouco tempo depois, por defender posições distintas daqueles que dariam origem ao Partido Revolucionário Comunista (entre os quais José Genoíno, Tarso Genro e Marina Silva).

Foi a partir desta trajetória pessoal e influenciado por este ambiente que comecei a ler e estudar sistematicamente, especialmente filosofia, economia, história, sociologia e política, tanto em português quanto em espanhol.

Em 1982, ingressei mediante concurso na Escola Técnica SENAI Theobaldo de Nigris e Felício Lanzara. Foram três anos de escola e um de estágio, convivendo com uma realidade diferente da existente no Grupo Educacional Equipe: colegas filhos de operários, escola tão “democrática” quanto uma empresa, estágio numa grande gráfica situada na periferia de São Paulo.

A partir de 1985, já diplomado como técnico industrial especializado em produção visual gráfica, trabalhei como diagramador, editor de arte, secretário de redação e depois gerente de produção. E, na mesma época, começo a reunir a documentação necessária para pleitear uma especialização em produção industrial de embalagens, na República Popular da China.

A intenção de ter uma carreira profissional como desenhista gráfico foi arquivada em 1986, ano em que fui convidado para integrar a equipe do Instituto Cajamar (Inca), instituição que estava sendo criada naquele mesmo ano para oferecer formação político-ideológica aos militantes do PT, da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e de diversas entidades do movimento popular. Aceito o convite para trabalhar no Inca, decidi concorrer e fui aprovado no vestibular para o curso de Economia da Universidade de Campinas.  

As instalações do Inca ficavam num antigo motel situado no km 46,5 da Via Anhanguera, nas cercanias das cidades de Jundiaí, Jordanésia e Cajamar, a menos de uma hora de São Paulo capital.

Até 1988, o Inca foi não apenas meu local de trabalho, mas também minha residência. Comecei atuando no Departamento de Recursos Pedagógicos e depois no Departamento de Pesquisas, este último dirigido então por Aloizio Mercadante. Mas em pouco tempo passei a me dedicar prioritariamente ao Departamento de Formação, primeiro como professor e depois como coordenador da equipe de formadores. Entre 1987 e 1990, tenho registro de ter planejado cursos, preparado materiais didáticos, orientado outros professores e também lecionado para mais de 2 mil alunos vinculados ao PT, a CUT, a sindicatos e movimentos sociais diversos.

Os alunos ficavam hospedados e tinham aulas nas próprias dependências do Inca. Cada turma tinha de 20 a 40 alunos. Os cursos oferecidos duravam uma ou duas semanas. Havia cursos de “formação de formadores”, “formação de monitores” e de “formação política geral”. Cada curso possuía uma grade específica de matérias, entre as quais: “história das lutas do povo brasileiro”, “história das lutas pelo socialismo no Brasil e no mundo”, “o modo de produção capitalista”, “classes sociais no Brasil”, “estratégia e tática”, “instrumental de análise de conjuntura” e “metodologia de formação”. Dei aula acerca de todos estes temas e fui docente em grande parte dos cursos oferecidos pelo Instituto.

Além dos cursos, o Inca realizava regularmente seminários sobre variados assuntos, entre os quais destaco “A relação partido sindicato”, “Poder local e participação popular” e “70 anos de experiências de construção do socialismo”. Este último foi realizado em 1987 e contou com a participação de Luís Carlos Prestes, Jacob Gorender e David Capistrano Jr.

Ademais de participar na organização, contribuí com a edição das publicações resultantes de várias destas atividades, uma vez que acumulava minhas atividades docentes com a coordenação de um pequeno setor de publicações do Inca, onde colaboravam os jornalistas Rui Falcão, Alípio Freire e o economista Carlos Eduardo Carvalho.

Lecionar foi fundamental para minha formação pessoal. Para isto contribuiu, também, o convívio que havia no próprio Instituto Cajamar, no PT e na CUT, com dirigentes políticos e intelectuais como Lula, Paulo Freire, Francisco Weffort, José Álvaro Moisés, Marco Aurélio Garcia e muitos outros, incluindo aí uma pitada de Eric Hobsbawm, que certa vez visitou e fez uma palestra para alunos do Inca. Mas o que mais contribuiu para minha formação foi o convívio com milhares de alunos e alunas que eram também educadores, no sentido mais amplo deste termo. E que me obrigavam a estudar de forma permanente.

No meu caso, tomei como “orientadores” Perry Anderson e Eric Hobsbawm. Utilizei suas obras como “roteiro” para estudar de forma sistemática a história do capitalismo, a história das correntes socialistas europeias, a história da Rússia e da China, bem como a história das organizações de esquerda no Brasil e na América Latina.

Infelizmente, não consegui conciliar esta atividade com a graduação em Economia na Unicamp. Minha jornada de trabalho no Inca era muito intensa, as aulas do curso de Economia eram diurnas e os professores rigorosos quanto à frequência, o que me levou primeiro a cursar poucas disciplinas e depois a optar por trancar a matrícula. Pelas aulas, palestras e conversas com Fernando Novaes, Liana Cardoso de Mello, Francisco Graziano e João Manoel Cardoso de Mello, tenho noção do que perdi do ponto de vista cultural e acadêmico.

A partir de 1990, os acontecimentos internacionais e nacionais provocaram um intenso debate político e ideológico em toda a esquerda brasileira, do qual participei ativamente. Não por acaso, foi também uma época de mudanças pessoais.
Interrompi meu vínculo profissional com o Instituto Cajamar, trabalhei em várias iniciativas editoriais (Editora Scritta, jornal Brasil Agora, revista Atenção, revista Teoria e Debate), de pesquisa (Programa Educativo sobre a Dívida Externa), como funcionário público (assessor do prefeito David Capistrano na Prefeitura de Santos), continuei atuando como professor em cursos de educação política para militantes sindicais, populares e partidários e, a partir de agosto de 1997, tornei-me integrante do Diretório Nacional do PT, partido ao qual sou filiado desde 1985.

Simultaneamente, concorri e fui aprovado no vestibular para o curso de História da Universidade de São Paulo, oferecido também no período noturno. No dia 3 de março de 1997, a Faculdade de História da Universidade de São Paulo me conferiu o grau de bacharel. No dia 4 de julho de 2000, defendi a dissertação de mestrado intitulada Comunistas do Brasil. Interpretações sobre a cisão de 1962. Integraram a comissão examinadora as professoras Maria Aparecida de Aquino e Odette Carvalho de Lima Seabra, além do professor Osvaldo Coggiola.  Em 1 de fevereiro em 2006, defendi a tese intitulada A metamorfose. Programa e estratégia do Partido dos Trabalhadores. Participaram da comissão julgadora os professores Emir Sader, Jorge Grespan, Reinaldo Gonçalves, Ricardo Carneiro e novamente Osvaldo Coggiola, meu orientador tanto no mestrado quanto no doutorado. Considerando ser ele dirigente do Partido Obrero argentino e apaixonado por futebol, é quase um milagre que tenhamos chegado até o final sem nenhum destes atritos entre orientador e orientando que compõem certo folclore da pós-graduação.

Estudar o PCdoB e o PT exigiu enfrentar várias questões de natureza metodológica, entre as quais a relação entre o historiador e seu objeto. No meu caso, há implicações políticas e familiares. Meu bisavô, Felipe Cossio del Pomar, integrou a Aliança Popular Revolucionária Americana, o APRA peruano, sendo amigo e biógrafo de Haya de La Torre.  Pedro Pomar, primogênito de Felipe e Rosa Araújo, ligou-se ao Partido Comunista do Brasil no início dos anos 1930. Foi membro do Comitê Central desta organização por quase duas décadas, participando da cisão que, em 1962, deu origem ao atual PCdoB, do qual foi dirigente até ser assassinado pela ditadura militar, em dezembro de 1976, no episódio conhecido como Chacina da Lapa. Wladimir Pomar, o filho mais velho de Pedro e Catharina Torres, ingressou no Partido Comunista nos anos 1950. Também participou da "reorganização do PCdoB", integrando o Comitê Central daquela organização de 1966 até 1976, quando foi preso pela ditadura militar, no mesmo episódio em que seu pai foi assassinado.

Wladimir defendeu, então, a realização de um congresso do PCdoB, com o objetivo principal de realizar um balanço crítico da experiência da Guerrilha do Araguaia. O grupo majoritário na direção do PCdoB foi contrário à realização do congresso, expulsando os dissidentes. Estes seguem diversos caminhos: boa parte decide criar o Partido Revolucionário Comunista (PRC); alguns vão para outras organizações (como o PCB); muitos optam por integrar individualmente o Partido dos Trabalhadores (PT). É o caso de Wladimir, que em 1986 será eleito para a executiva nacional do PT, coordenando a campanha de Luís Inácio Lula da Silva à presidência da República, em 1989, sobre a qual escreveu o livro Quase lá (Editora Scritta, 1990). Minha mãe Rachel, meus irmãos Pedro Estevam e Vladimir Milton, assim como minha esposa Nayara Oliveira, também são desde então e até hoje ligados ao Partido dos Trabalhadores.

Depois de 1997, como dirigente nacional do PT, integrei a coordenação do Plebiscito Popular sobre a Dívida Externa, realizado em 2000. Os debates travados a respeito, dentro e fora do Brasil, permitiram a publicação de dois pequenos livros, em coautoria com o professor Reinaldo Gonçalves: O Brasil endividado e a Armadilha da dívida, ambos publicados pela Editora da Fundação Perseu Abramo.

Em dezembro de 2001, fui convidado pela então prefeita Izalene Tiene para ser secretário municipal de Cultura, Esportes e Turismo na prefeitura de Campinas. Coordenei uma equipe de 500 servidores, distribuídos em mais de 100 equipamentos públicos, entre os quais museus, teatros, praças de esporte, casas de cultura. Uma das realizações da gestão é considerada hoje um dos “destaques” da cidade de Campinas: a Estação Cultura. Quando concluímos a gestão, em dezembro de 2004, dispúnhamos de quase 3% do orçamento municipal.

Em 2005, fui eleito para dirigir a secretaria de Relações Internacionais do PT. Até então, minha atividade internacional estrito senso havia sido limitada: uma visita a Angola, em 1990, com Paulo Vanucchi, para dar aulas na Escola Superior Dr. Agostinho Neto; assistir e proferir palestras em eventos partidários, em Cuba, Itália e Grécia; e atividades da campanha contra a dívida externa, na Espanha, África do Sul e Alemanha. Além, é claro, da fortuna de representar o Instituto Cajamar na criação, em 1990, do Foro de São Paulo, de que fui secretário executivo entre 2005 e 2013, coordenando uma instituição que chegou a reunir 141 organizações de 28 países.

Neste período, desenvolvi uma intensa atividade na área internacional, da qual prestei contas em diversos artigos e livros, tais como: Foro de São Paulo: construindo a integração latino-americana e caribenha (2013) e Uma estrela na janela (2014). Para além das atividades digamos diplomáticas, fui obrigado a acompanhar sistematicamente a situação internacional, com destaque para a evolução da situação econômica, bem como para as políticas adotadas pelos principais governos da região e do mundo. Ao mesmo tempo, tive a oportunidade de ver, a quente e em cores, parte daquele movimento socialista internacional que havia sido objeto de meus estudos, desde 1978. Reflito a respeito em três livros publicados em 2014: A foice, o martelo e a estrela; A esperança é vermelha; e Miscelânea internacional.

Em novembro de 2013, escolhi deixar de ser dirigente titular do PT. Embora continue militando ativamente, agora o faço na condição de “civil”, cuja preocupação principal é contribuir na análise do capitalismo contemporâneo, pelos motivos que expliquei no projeto de pesquisa apresentado como parte dos requisitos previstos no concurso (...) 

Concluo com uma lembrança de criança. Certa feita meu avô teve que cancelar uma visita que faria à nossa casa, por conta de minha avó ter sido hospitalizada. No lugar da visita, mandou uma cartinha datilografada, que tenho até hoje, onde dizia: “Nada temas, procura conhecer a verdade, por mais dura e desagradável que ela seja. É a verdade a coisa mais importante e bela da vida”.

Minha avó viveu mais dez anos depois desta carta. Meu avô, meses depois, foi assassinado. Mas ele tinha total razão.


Nenhum comentário:

Postar um comentário