Publico a seguir trechos de um Memorial apresentado em setembro de 2014 como parte dos requisitos necessários a um concurso público para o cargo de professor adjunto na carreira do magistério superior.
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Nasci na cidade de São Paulo, em agosto de 1966.
Durante meus primeiros dez anos, morei também nas cidades de Santos (SP),
Fortaleza (SP), Crato (CE), Juazeiro (CE) e Belém (PA). Sempre com meus pais e,
às vezes, com meus irmãos. Uma vida tranquila do ponto de vista material e
tendo acesso, em casa, a muitos livros, especialmente adaptações “para jovens”
de clássicos da literatura universal.
A única excentricidade deste período foi,
aos sete anos, uma troca de nome, de Valter para Carlos. Os motivos ficaram mais
claros no dia 16 de dezembro de 1976, quando forças policiais e militares atacaram
uma reunião do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Entre os
assassinados, meu avô Pedro Pomar. Entre os presos, meu pai Wladimir Pomar.
No início de 1977, acompanhei minha mãe até
Brasília, para um rápido encontro com o general de exército José Ferraz da
Rocha, único irmão de meu avô materno, então já falecido. Neste encontro, o
general informou nada poder fazer pela sobrinha e seu marido, uma vez que “se
recebesse ordem para matar, mataria”. Afora isto, a visita à casa do general
serviu para descobrir que manga também se comia no prato, com garfo e faca.
De Brasília, minha mãe veio para São Paulo,
encontrar-se clandestinamente com sogra e cunhados, um dos quais me abrigou em
sua casa. Meses depois voltei a morar com minha mãe Rachel, depois que ela recuperou
seus documentos legais e constituiu advogado para meu pai, condenado naquele
mesmo ano a alguns anos de cadeia. Luís Eduardo Greenhalgh, advogado de meu
pai, consta como testemunha na certidão de nascimento de Valter Ventura da
Rocha Pomar, nome que só passei a utilizar quando já tinha onze anos.
Entre 1978 e 1981, fui bolsista no Ginásio
do Grupo Educacional Equipe, escola criada por pedagogos e militantes de
esquerda. Igualmente tranquilo do ponto de vista material, foi um período cultural
e politicamente agitado. Visitei regularmente meu pai na cadeia, onde convivi
com muitos presos políticos e suas famílias. Engajei-me no movimento estudantil
secundarista, acompanhando também atividades universitárias. Ingressei na chamada “esquerda” do Partido
Comunista do Brasil e dela fui expulso pouco tempo depois, por defender
posições distintas daqueles que dariam origem ao Partido Revolucionário
Comunista (entre os quais José Genoíno, Tarso Genro e Marina Silva).
Foi a partir desta trajetória pessoal e
influenciado por este ambiente que comecei a ler e estudar sistematicamente,
especialmente filosofia, economia, história, sociologia e política, tanto em
português quanto em espanhol.
Em 1982, ingressei mediante concurso na Escola
Técnica SENAI Theobaldo de Nigris e Felício Lanzara. Foram três anos de escola e
um de estágio, convivendo com uma realidade diferente da existente no Grupo
Educacional Equipe: colegas filhos de operários, escola tão “democrática”
quanto uma empresa, estágio numa grande gráfica situada na periferia de São
Paulo.
A partir de 1985, já diplomado como técnico industrial especializado em produção
visual gráfica, trabalhei como diagramador, editor de arte, secretário de
redação e depois gerente de produção. E, na mesma época, começo a reunir a
documentação necessária para pleitear uma especialização em produção industrial
de embalagens, na República Popular da China.
A intenção de ter uma carreira profissional
como desenhista gráfico foi arquivada em 1986, ano em que fui convidado para integrar
a equipe do Instituto Cajamar (Inca), instituição que estava sendo criada naquele
mesmo ano para oferecer formação político-ideológica aos militantes do PT, da
Central Única dos Trabalhadores (CUT) e de diversas entidades do movimento
popular. Aceito o convite para trabalhar no Inca, decidi concorrer e fui
aprovado no vestibular para o curso de Economia da Universidade de Campinas.
As instalações do Inca ficavam num antigo
motel situado no km 46,5 da Via Anhanguera, nas cercanias das cidades de
Jundiaí, Jordanésia e Cajamar, a menos de uma hora de São Paulo capital.
Até 1988, o Inca foi não apenas meu local
de trabalho, mas também minha residência. Comecei atuando no Departamento de
Recursos Pedagógicos e depois no Departamento de Pesquisas, este último
dirigido então por Aloizio Mercadante. Mas em pouco tempo passei a me dedicar
prioritariamente ao Departamento de Formação, primeiro como professor e depois
como coordenador da equipe de formadores. Entre 1987 e 1990, tenho registro de
ter planejado cursos, preparado materiais didáticos, orientado outros
professores e também lecionado para mais de 2 mil alunos vinculados ao PT, a
CUT, a sindicatos e movimentos sociais diversos.
Os alunos ficavam hospedados e tinham aulas
nas próprias dependências do Inca. Cada turma tinha de 20 a 40 alunos. Os
cursos oferecidos duravam uma ou duas semanas. Havia cursos de “formação de
formadores”, “formação de monitores” e de “formação política geral”. Cada curso
possuía uma grade específica de matérias, entre as quais: “história das lutas
do povo brasileiro”, “história das lutas pelo socialismo no Brasil e no mundo”,
“o modo de produção capitalista”, “classes sociais no Brasil”, “estratégia e
tática”, “instrumental de análise de conjuntura” e “metodologia de formação”.
Dei aula acerca de todos estes temas e fui docente em grande parte dos cursos
oferecidos pelo Instituto.
Além dos cursos, o Inca realizava
regularmente seminários sobre variados assuntos, entre os quais destaco “A
relação partido sindicato”, “Poder local e participação popular” e “70 anos de
experiências de construção do socialismo”. Este último foi realizado em 1987 e
contou com a participação de Luís Carlos Prestes, Jacob Gorender e David
Capistrano Jr.
Ademais de participar na organização,
contribuí com a edição das publicações resultantes de várias destas atividades,
uma vez que acumulava minhas atividades docentes com a coordenação de um
pequeno setor de publicações do Inca, onde colaboravam os jornalistas Rui
Falcão, Alípio Freire e o economista Carlos Eduardo Carvalho.
Lecionar foi fundamental para minha
formação pessoal. Para isto contribuiu, também, o convívio que havia no próprio
Instituto Cajamar, no PT e na CUT, com dirigentes políticos e intelectuais como
Lula, Paulo Freire, Francisco Weffort, José Álvaro Moisés, Marco Aurélio Garcia
e muitos outros, incluindo aí uma pitada de Eric Hobsbawm, que certa vez visitou
e fez uma palestra para alunos do Inca. Mas o que mais contribuiu para minha
formação foi o convívio com milhares de alunos e alunas que eram também educadores,
no sentido mais amplo deste termo. E que me obrigavam a estudar de forma
permanente.
No meu caso, tomei como “orientadores” Perry
Anderson e Eric Hobsbawm. Utilizei suas obras como “roteiro” para estudar de
forma sistemática a história do capitalismo, a história das correntes
socialistas europeias, a história da Rússia e da China, bem como a história das
organizações de esquerda no Brasil e na América Latina.
Infelizmente, não consegui conciliar esta
atividade com a graduação em Economia na Unicamp. Minha jornada de trabalho no
Inca era muito intensa, as aulas do curso de Economia eram diurnas e os
professores rigorosos quanto à frequência, o que me levou primeiro a cursar
poucas disciplinas e depois a optar por trancar a matrícula. Pelas aulas, palestras
e conversas com Fernando Novaes, Liana Cardoso de Mello, Francisco Graziano e
João Manoel Cardoso de Mello, tenho noção do que perdi do ponto de vista
cultural e acadêmico.
A partir de 1990, os acontecimentos
internacionais e nacionais provocaram um intenso debate político e ideológico
em toda a esquerda brasileira, do qual participei ativamente. Não por acaso,
foi também uma época de mudanças pessoais.
Interrompi meu vínculo profissional com o
Instituto Cajamar, trabalhei em várias iniciativas editoriais (Editora Scritta,
jornal Brasil Agora, revista Atenção, revista Teoria e Debate), de pesquisa (Programa Educativo sobre a Dívida
Externa), como funcionário público (assessor do prefeito David Capistrano na
Prefeitura de Santos), continuei atuando como professor em cursos de educação
política para militantes sindicais, populares e partidários e, a partir de
agosto de 1997, tornei-me integrante do Diretório Nacional do PT, partido ao
qual sou filiado desde 1985.
Simultaneamente, concorri e fui aprovado no
vestibular para o curso de História da Universidade de São Paulo, oferecido
também no período noturno. No dia 3 de março de 1997, a Faculdade de História
da Universidade de São Paulo me conferiu o grau de bacharel. No dia 4 de julho
de 2000, defendi a dissertação de mestrado intitulada Comunistas do Brasil. Interpretações sobre a cisão de 1962.
Integraram a comissão examinadora as professoras Maria Aparecida de Aquino e
Odette Carvalho de Lima Seabra, além do professor Osvaldo Coggiola. Em 1 de fevereiro em 2006, defendi a tese
intitulada A metamorfose. Programa e
estratégia do Partido dos Trabalhadores. Participaram da comissão julgadora
os professores Emir Sader, Jorge Grespan, Reinaldo Gonçalves, Ricardo Carneiro
e novamente Osvaldo Coggiola, meu orientador tanto no mestrado quanto no
doutorado. Considerando ser ele dirigente do Partido Obrero argentino e
apaixonado por futebol, é quase um milagre que tenhamos chegado até o final sem
nenhum destes atritos entre orientador e orientando que compõem certo folclore
da pós-graduação.
Estudar o PCdoB e o PT exigiu enfrentar várias
questões de natureza metodológica, entre as quais a relação entre o historiador
e seu objeto. No meu caso, há implicações políticas e familiares. Meu bisavô, Felipe
Cossio del Pomar, integrou a Aliança Popular Revolucionária Americana, o APRA
peruano, sendo amigo e biógrafo de Haya de La Torre. Pedro Pomar, primogênito de Felipe e Rosa
Araújo, ligou-se ao Partido Comunista do Brasil no início dos anos 1930. Foi
membro do Comitê Central desta organização por quase duas décadas, participando
da cisão que, em 1962, deu origem ao atual PCdoB, do qual foi dirigente até ser
assassinado pela ditadura militar, em dezembro de 1976, no episódio conhecido
como Chacina da Lapa. Wladimir Pomar, o filho mais velho de Pedro e Catharina
Torres, ingressou no Partido Comunista nos anos 1950. Também participou da
"reorganização do PCdoB", integrando o Comitê Central daquela
organização de 1966 até 1976, quando foi preso pela ditadura militar, no mesmo
episódio em que seu pai foi assassinado.
Wladimir defendeu, então, a realização de
um congresso do PCdoB, com o objetivo principal de realizar um balanço crítico
da experiência da Guerrilha do Araguaia. O grupo majoritário na direção do
PCdoB foi contrário à realização do congresso, expulsando os dissidentes. Estes
seguem diversos caminhos: boa parte decide criar o Partido Revolucionário
Comunista (PRC); alguns vão para outras organizações (como o PCB); muitos optam
por integrar individualmente o Partido dos Trabalhadores (PT). É o caso de
Wladimir, que em 1986 será eleito para a executiva nacional do PT, coordenando
a campanha de Luís Inácio Lula da Silva à presidência da República, em 1989,
sobre a qual escreveu o livro Quase lá
(Editora Scritta, 1990). Minha mãe Rachel, meus irmãos Pedro Estevam e Vladimir
Milton, assim como minha esposa Nayara Oliveira, também são desde então e até
hoje ligados ao Partido dos Trabalhadores.
Depois de 1997, como dirigente nacional do PT,
integrei a coordenação do Plebiscito Popular sobre a Dívida Externa, realizado
em 2000. Os debates travados a respeito, dentro e fora do Brasil, permitiram a
publicação de dois pequenos livros, em coautoria com o professor Reinaldo
Gonçalves: O Brasil endividado e a Armadilha da dívida, ambos publicados pela
Editora da Fundação Perseu Abramo.
Em dezembro de 2001, fui convidado pela
então prefeita Izalene Tiene para ser secretário municipal de Cultura, Esportes
e Turismo na prefeitura de Campinas. Coordenei uma equipe de 500 servidores,
distribuídos em mais de 100 equipamentos públicos, entre os quais museus, teatros,
praças de esporte, casas de cultura. Uma das realizações da gestão é
considerada hoje um dos “destaques” da cidade de Campinas: a Estação Cultura.
Quando
concluímos a gestão, em dezembro de 2004, dispúnhamos de quase 3% do orçamento
municipal.
Em 2005, fui eleito para dirigir a
secretaria de Relações Internacionais do PT. Até então, minha atividade
internacional estrito senso havia sido limitada: uma visita a Angola, em 1990,
com Paulo Vanucchi, para dar aulas na Escola Superior Dr. Agostinho Neto; assistir
e proferir palestras em eventos partidários, em Cuba, Itália e Grécia; e
atividades da campanha contra a dívida externa, na Espanha, África do Sul e
Alemanha. Além, é claro, da fortuna de representar o Instituto Cajamar na
criação, em 1990, do Foro de São Paulo, de que
fui secretário executivo entre 2005 e 2013, coordenando uma instituição que chegou
a reunir 141 organizações de 28 países.
Neste período, desenvolvi
uma intensa atividade na área internacional, da qual prestei contas em diversos
artigos e livros, tais como: Foro
de São Paulo: construindo a integração latino-americana e caribenha (2013)
e Uma estrela na janela (2014). Para
além das atividades digamos diplomáticas, fui obrigado a acompanhar
sistematicamente a situação internacional, com destaque para a evolução da
situação econômica, bem como para as políticas adotadas pelos principais
governos da região e do mundo. Ao mesmo tempo, tive a oportunidade de ver, a quente
e em cores, parte daquele movimento socialista internacional que havia sido
objeto de meus estudos, desde 1978. Reflito a respeito em três livros
publicados em 2014: A foice, o martelo e
a estrela; A esperança é vermelha;
e Miscelânea internacional.
Em novembro de 2013, escolhi deixar de ser
dirigente titular do PT. Embora continue militando ativamente, agora o faço na
condição de “civil”, cuja preocupação principal é contribuir na análise do
capitalismo contemporâneo, pelos motivos que expliquei no projeto de pesquisa
apresentado como parte dos requisitos previstos no concurso (...)
Concluo com uma lembrança de criança. Certa
feita meu avô teve que cancelar uma visita que faria à nossa casa, por conta de
minha avó ter sido hospitalizada. No lugar da visita, mandou uma cartinha
datilografada, que tenho até hoje, onde dizia: “Nada temas, procura conhecer a
verdade, por mais dura e desagradável que ela seja. É a verdade a coisa mais
importante e bela da vida”.
Minha avó viveu mais dez anos depois desta
carta. Meu avô, meses depois, foi assassinado. Mas ele tinha total razão.
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