quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

A formação e a linha política do PT

Em 1964, o meu pai foi preso pela ditadura militar. Minha mãe achou que faria bem ligar para o pai dela, que ligou para o irmão que era general* para que relaxasse as condições de prisão. Ele relaxou, meu pai foi solto e entrou na clandestinidade. 

Em 1976, o meu pai foi preso de novo e a minha mãe achou que era o caso de apelar de novo para o tio que era general. Depois, chegou a chefe do Estado Maior das Forças Armadas, não era qualquer general. Só que o pai dela já tinha morrido, então, o jeito foi ir até Brasília. 

Eu morava em Belém do Pará, tinha 10 anos de idade. Foi a primeira vez que eu fui a Brasília, primeira vez que eu entrei num apartamento funcional de elite, onde tinha, inclusive, um retrato pintado do meu tio-avô que eu não conhecia. Muito simpático, me ensinou a comer manga e pêssego com garfo e faca, mas eu não esqueço dele falando para minha mãe, depois que minha mãe fez o apelo a ele, ele respondendo para minha mãe, na minha presença, com 10 anos: “Desta vez não vou poder ajudar. Porque, se recebermos ordens de matar, mataremos”.

Essa turma tem lado, pessoal. Essa turma tem lado, não tem família. Tem compromisso de classe, compromisso político e ideológico. Eu aprendi isso deste jeito. A minha formação política a respeito do que é o comando das Forças Armadas no Brasil começou assim, desse jeito, ao vivo e em cores.

(*Pedro Pomar me alertou para o seguinte erro no que eu disse: “ Em 1964 José Ferraz da Rocha era tenente-coronel. Provavelmente: 66-69, coronel; 70-73, general de brigada; 74-77, general de divisão; 78-1981, general de exército”. A foto do cidadão segue abaixo.)

Bom, boa noite a todos, todas. Eu agradeço muito o convite para falar aqui com vocês sobre esse tema. 

Para quem não me conhece, eu me filiei ao PT em 1985, militava desde 1982, sou filiado ao PT em Campinas. Hoje, eu sou do Diretório Nacional do PT e diretor da Fundação Perseu Abramo. E sou professor de Relações Internacionais na UFABC, ali é o meu ganha-pão e a minha atividade profissional. 

Ontem, eu estava pensando no que eu ia falar aqui para atender à demanda que me fizeram e me dei conta que comecei a atuar na formação política do PT há quase 40 anos. Em 1986, o Pedro Pontual, o Aloizio Mercadante, e o Osvaldo Barros me convidaram para participar de um projeto chamado Instituto Cajamar, no qual eu trabalhei durante muitos anos. 

E, nesses 40 anos, eu fui do paraíso ao inferno. Paraíso era aquela época em que a gente tinha muita luta social, e é a luta social que forma as pessoas, não é a atividade formativa em si. Era uma época em que as instâncias partidárias funcionavam plenamente, era uma época em que a formação política era prioridade efetiva do ponto de vista financeiro e político; e era uma época que a atividade de formação era integral: havia formação política, histórica e ideológica para nossa militância. E, também, vivi momentos de inferno na vida partidária desse terreno, onde as lutas diminuíram muito, onde parte das instâncias se desmanchou, onde surgiram outras prioridades e onde a formação integral cedeu lugar a uma formação segmentada, onde o tema da formação ideológica, política, teórica perdeu muito espaço. 

Essas mudanças organizativas, na minha opinião, têm a ver com mudanças políticas. Como diz aquele ditado, a organização é política concentrada. E, portanto, mudanças na linha política do partido afetam a atividade de formação. Até porque a nossa ação política não se dá no vazio. É chover no molhado, mas é bom lembrar, a gente vive hoje uma brutal crise sistêmica do capitalismo que se reflete no terreno ambiental, no terreno econômico, no terreno social, no terreno cultural, no terreno político, no terreno militar. E essa crise brutal é que está na origem do ataque que a extrema-direita faz. 

Quando o capitalismo perde o seu charme e sua capacidade atrativa, é preciso continuar dominando a classe trabalhadora na porrada e na promessa de uma vida além da vida. Por isso, cresce o fundamentalismo e cresce a violência sob todas as formas. E o problema é que essa extrema-direita, a atual, similar ao que era o fascismo, o nazismo, é profundamente militante e profundamente ideológica. É uma extrema-direita que se organiza em defesa do capitalismo e de tudo aquilo que é contrário ao que nós representamos. 

E é por isso que não basta fatos para vencer essa extrema-direita, para ganhar o debate contra essa extrema-direita. Porque nós estamos falando com pessoas de um setor social que tem uma profunda coesão político-ideológica em torno de valores opostos aos nossos. E, por isso, para enfrentar essa direita, a gente precisa de uma esquerda também militante e, também, formada ideologicamente, capaz de lutar por uma sociedade sem explorados, sem exploradores, capaz de lutar por uma sociedade sem dominação e nem opressão, capaz de entender que a classe trabalhadora quer o poder para definir o que se produz, como se produz, como se distribui a riqueza. E, por isso, uma esquerda que seja socialista, que defenda o socialismo sem medo.

É claro que há maneiras e maneiras de defender o socialismo. Tem os que defendem o socialismo de uma forma doutrinária, achando que ser socialista é citar Marx e outros marxistas, o que é a forma mais antimarxista de defender o socialismo, porque o velho Marx e todos os comunistas e revolucionários que tiveram sucesso nesse mundo sempre disseram que o que vale é a análise concreta da situação concreta, não a repetição de dogmas e dogmas. 

Existe quem defende o socialismo em dias de festa, fala-se de socialismo nesses momentos como eu estou falando agora, mas, nos outros dias do ano, isso some da pauta. Existem aqueles que acham que socialismo é que nem o horizonte do Eduardo Galeano: quanto mais a gente anda, mais ele se afasta e a gente nunca chega nele. E, na minha opinião, a defesa que o PT fez no passado, e que deve continuar fazendo no presente e no futuro, é do socialismo como alternativa histórica, estratégica e concreta para os problemas concretos que as sociedades mundial e brasileira vivem atualmente.

O socialismo, para nós, deve continuar sendo uma resposta à dependência ao imperialismo que caracteriza a nossa história; o socialismo deve continuar sendo uma resposta à desigualdade brutal que existe no nosso país, que é um dos mais desiguais do mundo; o socialismo deve ser uma resposta concreta à democracia burguesa realmente existente nesse país. Porque, se é verdade, como a companheira Gleisi corretamente lembrou, que nós ganhamos cinco das últimas nove eleições presidenciais e ficamos em segundo lugar nas outras quatro, também é verdade que, na maioria dos governos estaduais, na maioria do governos municipais, na maioria dos parlamentos desse país, continua sendo a direita que continua comprando voto, continua usando os meios de comunicação de formas ilegais para manter o seu controle sobre o Estado, apesar de nós estarmos na Presidência da República. 

O socialismo, para nós, também é uma resposta a esse desenvolvimento incompleto que o nosso país tem, ao colapso ambiental, ao racismo, à homofobia, ao machismo, a todas as formas de opressão, dominação e exploração que existem na sociedade brasileira. 

Se depender da classe dominante brasileira, se depender dos capitalistas brasileiros e dos seus representantes políticos, isso não mudará nunca. Eles não têm o menor, o menor interesse num país que seja verdadeiramente soberano, que seja verdadeiramente igualitário, que seja verdadeiramente democrático, que seja verdadeiramente desenvolvido. Eles não têm nenhum interesse nisso! A única, a única força política e social capaz de construir um país diferente é a classe trabalhadora. E classe trabalhadora quando se dispõe a chegar ao poder e construir outra sociedade, o nome disso é socialismo. Por isso que, para nós, o socialismo é uma resposta concreta, é uma resposta estratégica, é uma resposta histórica a todos os problemas que nosso país enfrenta historicamente.

E, por isso, na minha opinião, o socialismo deve continuar a ser o fio condutor da nossa política, da nossa organização e da nossa formação política. Um dos desdobramentos práticos disso, pessoal, é que nós não podemos tratar a classe trabalhadora nem como público nem como eleitorado. A classe trabalhadora é a protagonista da transformação social do nosso país. E é nesse espírito que o partido deve atuar. Nós temos que atuar no espírito de educar, organizar e mobilizar a classe trabalhadora. Nós temos que estar a serviço disso. Por isso que nós não queremos o poder para o PT, nós queremos o poder para a classe trabalhadora. 

E, neste sentido também, eu queria dizer, para concluir e respeitar o tempo que me foi dado, que uma das batalhas ideológicas que, para mim, são essenciais nos dias que correm é a gente recuperar o direito à alegria, o direito a sonhar, o direito a uma vida melhor, o direito a uma vida diferente. O capitalismo, hoje, em particular, está privando as imensas massas do povo do nosso país e de outros países desse direito. O capitalismo nos submete ao trabalho brutal e excessivo, ocupa o nosso tempo livre com consumismo boçal, absolutamente boçal, nos submete a um estresse brutal, uma insegurança brutal, a um medo brutal. 

É por isso que hoje há uma epidemia de adoecimento mental e de uso descontrolado e absurdo de remédios legalizados que as farmácias vendem aí a qualquer preço. No fundo disso tudo, pessoal, é que as pessoas estão sendo privadas do direito de sonhar com um futuro realmente diferente. E, durante dois séculos, esse futuro realmente diferente tinha nome: era socialismo, e deve continuar sendo. Porque, sem uma sociedade baseada na propriedade social dos meios de produção, baseado numa democracia social efetiva, baseado na eliminação de qualquer forma de exploração e opressão, não vamos ter futuro. 

Como disse um companheiro no debate feito em Brasília, alguém aí acredita mesmo em sustentabilidade no capitalismo? Alguém acha que nós vamos eliminar essa catástrofe ambiental com a busca de lucro organizando a sociedade? Alguém acha que vai ter democracia efetiva se a gente não esmagar o fascismo? Alguém acha que tem futuro para o mundo se o mundo continuar capitalista como ele é hegemonicamente hoje?

Então, para mim, quando eu falo da defesa do socialismo, eu estou falando entre outras coisas da defesa do direito de a sociedade ter futuro. Nós somos a garantia do futuro da humanidade. Nós somos a garantia de um futuro diferente da sociedade brasileira. Nós somos a garantia de futuro! E isso é o tipo de sonho que o socialismo significa para mim, para nós, para a esquerda, para a classe trabalhadora, para quem lutou, entregou a vida por isso. As pessoas não entregaram a vida por conta de uma reivindicação parcial, as pessoas entregaram a sua vida porque sonhavam, e nós temos que recuperar isso com muita força no nosso discurso. 

Por isso, para não dizer que não falei de espinhos, vou aqui falar uma crítica ao nosso governo, que é o seguinte: nós fizemos campanha falando de reconstrução e transformação, e, quando assumimos, o nosso slogan virou união e reconstrução. Isso é um problema gravíssimo! Nós temos que recuperar a capacidade de transformar o país. E, para começar a recuperar essa capacidade, nós temos que recolocar o socialismo na primeira fileira dos nossos objetivos. Obrigado. 

O texto acima é uma transcrição revisada da palestra feita no dia 20 de fevereiro de 2024 e disponível no link Fala de Valter Pomar no Encontro Nacional de Formação Política do PT | Página 13

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