Num grupo de zap, li no final de 2024 a seguinte mensagem, que transcrevo tal e qual foi publicada:
“(…) umas das nossas diferenças está no entendimento do papel da militância na interpretação da realidade. Voce vê a militância como um patamar superior que eleva a compreensão da realidade a outro plano. Eu vejo muito mais como uma limitação que vincula a atividade intelectual a compromissos de poder, necessidades de sobrevivência pessoal e expectativas de promoção e ascensão social do que a uma interpretação mais independente e critica da realidade. Em alguns casos a militância se combina ainda com uma visao religiosa de mundo que tambem é propria de facções ou torcidas organizadas. Alias por isso que as universidades e não os partidos políticos ainda são o espaço de referência para debater a realidade. E por isso a estabilidade no emprego e tao importante para garantir a independência mimima na interpretação da realidade (…)”.
Será mesmo verdade que “as universidades e não os partidos políticos ainda são o espaço de referência para debater a realidade”?
Vejamos o caso do Brasil. Temos, creio, 29 partidos legalmente registrados. Na maioria dos casos, são vinculados a diferentes setores da classe dominante. Seu principal papel é escolher e inscrever candidaturas aos processos eleitorais. Sua contribuição ao debate acerca da realidade brasileira é marginal (em alguns casos, totalmente marginal).
No caso dos partidos vinculados à classe trabalhadora, acontece algo diferente. Há uma evidente preocupação em debater a realidade brasileira. Mas, ao menos nos dias que correm, não é possível dizer que tais partidos constituam um “espaço de referência” para aquele debate. E mesmo que fossem, a esquerda é minoritária no mundo dos partidos brasileiros.
E quanto às “Universidades”, seriam elas tal “espaço de referência”?
Responder a esta pergunta, no Brasil de 2025, exige começar lembrando que parte do sistema universitário é fábrica de diplomas. Na parte restante há de tudo um pouco. Inclusive “compromissos de poder, necessidades de sobrevivência pessoal e expectativas de promoção e ascensão social”, sem falar de facções, torcidas e religiões.
Mesmo assim, ao menos no caso do Brasil parece acertado dizer que, comparando “Universidades” e partidos políticos, as primeiras se saem melhor enquanto “espaço de referência para debater a realidade”.
Entretanto, há um “detalhe” que precisa ser lembrado: salvo para os diletantes radicais, “debater a realidade” não é e nunca foi um fim em si mesmo.
Donde surge a questão: como incidir na realidade, inclusive para garantir que as “Universidades” possam seguir sendo um “espaço de referência”?
Fazendo docência, pesquisa e extensão, certamente. Mas mesmo supondo que isso fosse suficiente, as condições em que isto é feito, para não falar do impacto efetivo na realidade, dependem em imensa medida de variáveis externas à “Universidade”: numa palavra, dependem da política.
Para alguns, política é uma espécie de “profissão”, exercida por pessoas eleitas e por suas assessorias formais e informais. Quem pensa assim, limita-se quando muito a votar uma vez a cada dois anos. E, fora desses momentos eleitorais, comporta-se como se política fosse algo alheio ao seu cotidiano.
Todavia, embora às vezes esta possa ser a aparência, a essência é outra. Numa sociedade como a nossa, todo mundo “faz política” o tempo todo, queira ou não, saiba ou não, comporte-se ou não como “idiota”.
Embora todo mundo participe, a política brasileira é historicamente hegemonizada por uma pequena parcela da sociedade que, por isto mesmo, é denominada “classe dominante”. A classe dominante segue hegemônica mesmo quando um dos seus não ocupa a presidência da República.
Já a classe trabalhadora, seja para ter alguma influência, seja para buscar converter-se em classe dominante, precisa fazer um enorme esforço ideológico, organizativo e de luta.
Noutras palavras, a classe trabalhadora precisa de muita “militância”, de todo tipo, cor e sabor. Não apenas militância partidária, enfatize-se. Mas por razões óbvias, a militância partidária tem importância fundamental na disputa política mais ampla, que diz respeito a disputa pelo (e contra o) Estado.
Sendo assim as coisas, seria muito grave se a militância (especialmente a partidária) fosse mesmo “uma limitação” que dificulta uma adequada interpretação da realidade. Neste caso ou teríamos que nos conformar com uma militância de bússola quase sempre falha, ou seria necessário buscar em algum outro “espaço” a interpretação da realidade indispensável para orientar a ação da militância.
E que espaço seria este, na opinião do autor da mensagem que transcrevi no início deste texto?
Se entendi direito a opinião dele, of course my horse, seria a “Universidade”!
Que a “Universidade” contribuiu e segue contribuindo na educação de muitos militantes, partidários ou não, é um fato (embora parte importante desta educação política não seja obra e graça de procedimentos formais, mas sim da atividade militante estudantil e sindical, com tudo que esta atividade proporciona como “efeito colateral” no plano intelectual).
Que muitos partidos, mas também sindicatos e movimentos buscam apoio nas “Universidades”, todo mundo sabe.
E tampouco há dúvida que muito mais pode e deve ser feito, pelas “Universidades”, em favor da classe trabalhadora, inclusive para “compensar” o que as “Universidades” sempre fizeram em favor da classe dominante.
Aliás, é nas “Universidades” que ocorreu e segue ocorrendo a formação politica de boa parte dos quadros políticos da classe dominante. Sem falar nos que são cooptados: o famoso dito - “não há mais nada parecido com um Saquarema do que um Luzia no poder” - vale para muita gente que, quando se licencia para trabalhar em governos, faz muito diferente do que se imaginava, tendo em vista o que predicava na “Universidade”.
Seja como for, na sociedade em que vivemos, no período histórico em que estamos, a “Universidade” nunca dará conta das necessidades intelectuais da classe trabalhadora, especialmente naqueles temas que dizem respeito ao objetivo estratégico e histórico de superar o capitalismo.
Tais necessidades são imensas, são urgentes e exigem, para seu debate e formulação, outro tipo de abordagem, de propósitos e de institucionalidade. Exigem, em resumo, partido e militância partidária.
Portanto, embora compreenda os motivos que levam muita gente a não querer se engajar neste tipo de militância, não vejo como justificar estes motivos com uma “teoria” que afirma a suposta superioridade das “Universidades” na solução de uma problemática que está fora de seu escopo.
Para além da impossibilidade pura e simples, existem pelo menos dois outros aspectos a considerar nesta polêmica entre "Universidade" e "militância".
O primeiro aspecto: o “espaço” mais adequado para formular acerca da atividade militante, com o propósito de orientar esta atividade, é a própria atividade militante. Ressalto que isto deveria ser óbvio para alguém que se considera marxista.
Aliás, a obra de Marx e de muitos outras pessoas engajadas na luta da classe trabalhadora é inseparável de sua atividade militante, é incompreensível fora deste contexto, só sobreviveu e ampliou sua influência graças à militância de centenas de milhões de pessoas, desde os anos 1840 até hoje.
Se a militância no Brasil, em 2025 e nos próximos anos, será capaz ou não de elaborar uma teoria à altura das necessidades históricas, aí já são outros quinhentos.
Mas se esta militância não for capaz, não adiantará de quase nada que outros - supostamente fora e acima das mesquinhezas e contradições da luta política em geral e da militância partidária tal como ela é - se proponham a dar conta da tarefa.
Afinal, isso que chamamos de “militância” são centenas de milhares, milhões ou dezenas de milhões de pessoas que constituem a vanguarda da classe trabalhadora.
Achar que este coletivo, que denominamos de “militância”, está por definição impossibilitado de interpretar corretamente a realidade, é decretar por antecipação que a emancipação da classe trabalhadora ou não seria possível, ou que seria algo absurdo, a saber, uma “emancipação” que não seria obra da própria classe trabalhadora, nem mesmo daquela parcela que tem consciência acerca dos objetivos da classe.
O segundo aspecto: a intelectualidade profissional (docentes, jornalistas, trabalhadores da arte e da cultura etc.), mesmo aqueles que possam não gostar muito disso, são parte ativa da luta de classes. Mesmo quando escolhem aparentemente abster-se, continuam sendo parte ativa.
A parcela da intelectualidade que, para além de ser objetivamente trabalhadora, também se identifica com a classe trabalhadora, deveria buscar militar, senão em algum dos partidos de esquerda, pelo menos junto aos sindicatos e movimentos existentes.
Digo “deveria”, porque no limite é contraditório ser de esquerda e não “tomar partido” (no sentido amplo do termo, não necessariamente estar num partido estrito senso).
Talvez por este motivo, alguns dos que criticam os partidos realmente existentes acabam construindo, no ambiente acadêmico, "simulacros" de partidos. Ao fazerem isso, criam todo tipo de distorção, como sabe muito bem quem lida com estes simulacros no movimento sindical docente.
Seja como for, fica evidente que mesmo no caso dos que não se identificam e optam por não militar em partidos estrito senso, há gradações.
Aliás, ninguém é obrigado a militar em partidos. Se não fosse por outro motivo, porque toma tempo e dista muito de ser uma atividade agradável, subjetivamente falando.
O que, a meu juízo, deve ser considerado inaceitável é atacar e/ou depreciar a noção mesma de “militância”. Nesse caso se está costeando o alambrado. Pois na prática se está questionando a necessidade e a possibilidade da classe trabalhadora construir sua própria intelectualidade orgânica.
Um último comentário: a “estabilidade no emprego” é importante por diversos motivos. Mas não é esta estabilidade em si mesma que garante a “independência mínima na interpretação da realidade”.
Dentro de certos limites, a tal estabilidade possibilita, mas de nenhuma forma garante, que aquela tal interpretação seja “independente” em relação a classe dominante, ou seja, não garante que seja correta no sentido de corresponder ao ponto de vista dos interesses da classe trabalhadora.
Quem quiser “independência de interpretação” neste sentido de classe, deveria valorizar ao máximo o engajamento e a militância, mesmo que isso não caiba nos “lattes” da vida.
Sobre a última frase do texto: assisti uma palestra do César Lattes (há muitas décadas) na qual ele criticava o modelo "positivista" dos currículos acadêmicos e a necessidade de reuni-los em um banco de dados accessível. Perguntado sobre a inclusão de atividades militantes nesses currículos ele sorriu e disse que primeiro devíamos enfrentar a censura vigente e as práticas meritocráticas, uma vez que eram usados somente para disputar pontuações em concursos. Lamentavelmente, quando a informática permitiu fazer esse banco a opção das autoridades da educação foi exatamente o que ele criticava - e ainda deram o nome de Currículo Lattes em homenagem póstuma a seu proponente!
ResponderExcluirEm vez de Universidade, penso mais em Educação como potência para a mudança, para a Revolução que não houve: aquela que produz o ser humano novo.
ResponderExcluirGramsci, Confúcio, Rousseau, Paulo Freire, Ferrer Y Guardia e tantos outros pedagogos que ainda não li não tem dúvida que é o que alimenta nossa consciência e nos forma como seres sociais pode realmente mudar o mundo e salvar a civilização.
O sábio ou filósofo não precisa do Estado ou partido, é o oposto.