segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Que apito toca o fio de Rudá?

O PT fez 43 anos.

Muita gente escreveu a respeito.

Por exemplo, o Rudá Ricci.

Foi uma amiga que me chamou a atenção para o “fio” do Rudá sobre o PT.

O fio está aqui:

https://twitter.com/rudaricci/status/1624804486752440321?t=LP5azjY_TxBv8Eywlm4GQA&s=08

Neste fio Rudá começa reconhecendo que "a contribuição do partido à democracia brasileira é inquestionável".

Em seguida, ele procura "analisar as mudanças no ideário e prática petistas nessas 4 décadas".

O começo é um pouco insólito.

Ele diz que o PT "nasceu em 1979" e que a sigla "tinha sido definida como política dos trotskistas das diversas edições da 4ª Internacional. Um encontro dessas correntes criou o PT por aqui, mas logo se deram conta que faltavam justamente os líderes das greves metalúrgicas. Deram um passo atrás".

Diz também que "PT existe na Espanha (1979), Uruguai (1984), Costa Rica. Temos Partido Socialista dos Trabalhadores na Argentina, todos trotskistas. A sigla está no México (1975), Panamá (1983, de inspiração trotskista), Peru, Reino Unido".

Em seguida Rudá afirma que "o PT criado em 1980 nasceu como um freio de arrumação na iniciativa de 1979 e, logo se descobriu o jeito metalúrgico de fazer política. Num piscar de olhos, os trotskistas ficaram numa posição menor que a de sindicatos, movimentos sociais, católicos e intelectuais".

Ou seja, segundo Rudá o PT não teria nascido para ser uma expressão política do setor mais combativo da classe, mas sim para ser um "freio de arrumação" na iniciativa de um setor minoritário...

Na sequência, Rudá comenta que "na foto clássica de fundação do PT num colégio paulista, Paulo Skromov aparece na mesa principal do evento. Skromov era trotskista e foi presidente do Sindicato dos Coureiros do Estado de São Paulo. Foi um dos organizadores do Movimento pelo PT de dezembro de 1979. Skromov presidiu a plenária de fundação do PT no Colégio Sion, em 10 de fevereiro de 1980. Era trotsksista desde 1968 e fez parte da Organização de Mobilização Operária (OMO) e a Organização Marxista Brasileira (OMB)”.

Para resumir a ópera, Rudá adota um específico ponto de vista, como sendo o melhor observatório do ponto de conjunto. O resultado é, na minha opinião, bastante anedótico, mas para lá de insatisfatório enquanto relato histórico.

Sigamos o fio.

Rudá afirma que a “concepção inicial do PT passa por uma primeira fase, de 1980 a 1983. No primeiro momento, articulou forte vertente basista e anti-institucional baseada na Teologia da Libertação, embora o sindicalismo ‘autêntico’ (que daria origem à CUT) tivesse influência de marxistas”.

Depois escreve que “em 1982, o PT participou de sua primeira campanha eleitoral com campanha nitidamente classista. Os candidatos apareciam como militantes de esquerda, muitos se diziam ex-guerrilheiros ou ex-presos políticos. Lula, candidato ao governo paulista, fez 10% dos votos. É no bojo do baque que as eleições de 1982 causaram no PT que surge o famoso “Manifesto dos 113”. O número se deve às assinaturas que subscreveram este documento. O Manifesto logo se torna um divisor de águas no partido”.

Rudá reproduz então algumas passagens do tal Manifesto: “O Manifesto começa afirmando que ‘defendemos o PT como partido de massas, de lutas e democrático. Combatemos, por isso, as posições que, por um lado, tentam diluí-lo numa frente oposicionista liberal, como o PMDB’. Prossegue e critica a ‘ação predominantemente parlamentar-institucional’, algo que criaria uma cisão interna nas direções petistas atuais. Segue se opondo aos que ‘se deixam seduzir por uma proposta socialista sem trabalhadores, como o PDT.’ Continua: ‘Também combatemos aqueles que (...) se encerram numa proposta de partido vanguardista tradicional’.”

Chegando neste ponto, Rudá afirma que “o PT se definia como socialista, antissoviético e antipopulista. É de se estranhar que, hoje, neopetistas citem a experiência soviética como alinhada ao PT”.

Não sei quem seriam esses “neopetistas” que Rudá critica.

Mas sem dúvida o que ele fala é de estranhar mesmo.

É de estranhar porque, entre outros motivos, palavras como soviético ou antisoviético não comparecem no Manifesto dos 113.

O alvo do Manifesto dos 113 foi duplo: os que desistiam do Partido pela direita e os que tentavam aprisionar o PT nos moldes das pequenas organizações autoproclamadas revolucionárias e supostamente de vanguarda.

Ser vanguardista tradicional não era um ato soviético, ser crítico a “proposta de partido vanguardista tradicional” não era um ato antissoviético.

Aliás, basta ler os nomes de alguns dos signatários do Manifesto para suspeitar isso...

De 1983, Rudá pula para 1989.

É um salto e tanto, uma vez que foi neste período (1984-1988) que o PT começou a formular a denominada estratégia democrático, popular e socialista.

Mas enfim, não se deve pedir peras ao olmo, digo, aos fios.

Sobre 1989, Rudá afirma que “a candidatura de Lula foi para o 2o turno, disputando com Collor e, por pouco, não vence a eleição. Eu participei como coordenador da elaboração do programa agrário e posso atestar que sabíamos que a vitória seria ameaçada pela extrema-direita. Passadas as eleições de 89, o debate interno na corrente majoritária – a Articulação – apontava para o PT se preparar para ganhar as eleições como possibilidade concreta. Significava ampliar as alianças, abrandar o marco socialista e se aproximar do alto empresariado. As campanhas de 1994, 1998 e 2002 seguiram este marco de alteração significativa do ideário original do PT. Mas, o que mudou de mais importante a partir de 1994? Vou listar 4 mudanças que consideram mais radicais”.

Vejamos.

“A primeira mudança foi a relação com movimentos sociais. A relação original era umbilical. Não era de mera escuta, mas de alinhamento. A partir de 1994, a relação passou a ser de, no máximo, consulta. Outra mudança foi no processo de tomada de decisão do partido. Antes, a base mandava. Os famosos núcleos de base do PT tinham mais poder que parlamentares petistas. Eu mesmo vivenciei este poder durante a Constituinte e quando fui coordenador de sub-região em SP. A partir de 1994, as decisões passaram a ser mais centralizadas. Os militantes e intelectuais do partido perderam força e os dirigentes da corrente majoritária e marqueteiros passaram a dominar o cenário”.

Façamos uma pausa. Sem dúvida houve mudanças na relação entre o Partido e os movimentos sociais. Mas dizer que antes havia uma relação “umbilical”, de “alinhamento” e depois passou a ser uma relação de, no máximo, “consulta”, me parece simplificar demasiado a coisa. Sem falar que desconsidera a vida real, na qual estava em curso um refluxo das lutas sociais, sob impacto do neoliberalismo.

Mas o esquisito mesmo é dizer que antes a base “mandava”, mas a partir de 1994 os “militantes e intelectuais” perderam força e “os dirigentes da corrente majoritária e marqueteiros” passaram a dominar o cenário.

Para começo de conversa, a corrente majoritária entre 1995 e 2005 nunca passou de 60% dos votos nos encontros nacionais ou nas eleições diretas.

E – mesmo discordando de seus métodos e de suas posições – os tais “dirigentes” da “corrente majoritária” neste período citado eram dirigentes... porque tinham imensa base social, influência política, apoio na militância de base e inclusive na chamada intelectualidade partidária.

Negar isso e contrapor militantes e intelectuais a dirigentes e marqueteiros é pior que uma simplificação.

Rudá diz que “dessa mudança decorreu o institucionalismo. Se havia rejeição ao campo institucional nos primeiros 15 anos do PT, a partir da segunda metade dos anos 1990, o campo institucional passou a ser prioritário, alinhado à meta de vencer eleições. Vejam que uma mudança leva à outra”.

O jeito com que Rudá descreve os fenômenos é assaz curioso.

Como é possível dizer que “havia rejeição ao campo institucional” nos primeiros 15 anos do PT, se nesses primeiros 15 anos o PT participou das eleições de 1982, 1985, 1987, 1988, 1989, 1990, 1992 e 1994? Se o PT participou do Congresso Constituinte? Se o PT governou inúmeras cidades?

Talvez o que Rudá esteja querendo dizer é que o lugar do “institucional” na estratégia do PT se alterou.

Mas dizer que antes havia “rejeição” e depois deixou de haver “rejeição” é simplesmente falso.

Assim como é falso insinuar que só a partir de 1995 passamos a ter a “meta de vencer eleições”, como se antes disputássemos sem querer ganhar.

Mas o pior está por vir.

Palavras de Rudá: “Finalmente, o ideário e o programa do partido. De socialista o PT passou a adotar um viés socialdemocrata. Depois, eliminou a palavra ‘socialista’ de seu discurso e, finalmente, já no século XXI, caiu de boca no ideário social-liberal, afeto aos interesses do mercado”.

O socialismo perdeu peso? Certamente.

Cresceu o “viés socialdemocrata”? Certamente.

Apareceu uma turma “social-liberal”? Certamente, aliás Palocci é o exemplo clássico.

Mas simplesmente não é verdade que a palavra “socialista” tenha sido “eliminada” do discurso do PT, a partir de 1995.

Basta ler as resoluções do 3º Congresso do PT ou do 6º Congresso do PT (este realizado em 2017), para ver que isto não é fato.

É verdade que se deixar na mão de algumas pessoas ou setores, o termo “socialismo” simplesmente sumirá.

Mas ao menos por enquanto o termo “eliminou” é incorreto.

Tampouco é fato que o PT “caiu de boca no ideário social-liberal, afeto aos interesses do mercado”.

Se isto fosse verdade, o tal mercado não teria tido motivos para estimular e apoiar o golpe de 2016, a fraude contra Lula e a eleição do cavernícola.

Segundo Rudá, “o lulismo passou a ser a marca desta mudança. Para além da figura de Lula, é uma concepção de Estado e de política que adota o referencial do parlamentarismo como eixo. Outra inspiração evidente é o rooseveltianismo, aquela concepção de alavancou o New Deal”.

Como diria um amigo, Rudá nos oferece uma salada e tanto.

Primeiro tem este componente chamado “lulismo”, acerca do qual já se escreveu muito, mas se esclareceu pouco.

Depois tem o FDR; sem dúvida há um amplo setor da esquerda brasileira que tem o New Deal como inspiração para suas políticas econômicas.

Infelizmente para este setor, não foi o New Deal que tirou os EUA da crise dos anos 1930, mas sim o envolvimento dos EUA na Segunda Guerra.

E, finalmente, tem o mais complicado: será verdade que no PT existe uma concepção de Estado e de política que adota o “referencial do parlamentarismo como eixo”?

Minha opinião: em 1993 um setor importante do PT defendeu o parlamentarismo e foi solenemente derrotado.

Prevaleceu no Partido, em 1993, o bom senso: era mais fácil ganhar a presidência do que fazer maioria no Congresso.

Entretanto, nem os presidencialistas, nem o conjunto do Partido, conseguiu resolver o problema de conjunto, a saber: como ganhar a presidência e ao mesmo tempo fazer maioria no congresso.

Como o problema não foi resolvido adequadamente, foi se constituindo a tal “política de governabilidade”.

Chamar esta “governabilidade” de “parlamentarismo” é simplesmente forçar a mão.

Rudá passa destas afirmações para outras ainda mais maraquexe (não confundir com mequetrefe).

Diz ele que “a concepção social-liberal do lulismo preserva o mercado. O alto empresariado, ao contrário, flerta com o ultraliberalismo que desagrega a sociedade. O lulismo não gera risco algum ao mercado financeiro”.

Que há social-liberais no PT, não tenho dúvida.

Que Lula não quer destruir o “mercado”, também não tenho dúvida.

(Aliás, eu também não quero destruir o mercado, entre outras coisas porque o mercado não pode ser “destruído”, ele pode ser “superado” numa fase muito avançada do socialismo.)

Que o alto empresariado é ultra-liberal, também não tenho dúvida.

Mas dizer que Lula é social-liberal e que não gera “risco algum ao mercado financeiro” é puro negacionismo.

Neste ponto do seu fio Rudá faz os elogios de praxe (afinal, é aniversário): “O PT é o maior partido brasileiro, o que chegou 7 vezes ao segundo turno das eleições presidenciais desde o fim do regime militar, ganhando duas. É o partido que mantém sempre uma das principais bancadas federais e o que efetivamente dita a agenda nacional. No ano passado, o Datafolha revelou que o PT é o partido preferido de 28% dos brasileiros entre os 3.666 ouvidos em 191 cidades entre os dias 13 e 16 de dezembro”.

Sobre o elogio acima, duas correções.

O PT chegou ao segundo turno em 1989, 2002, 2006, 2010, 2014, 2018 e 2022. E ganhou 5 vezes (2 com Dilma e 3 com Lula), não duas vezes.

E o PT não dita a agenda nacional. Quem dera isso fosse verdade. O PT disputa, polariza, influencia, mas não dita.

Mas depois de elogiar, Rudá enfia a faca.

Suas palavras: “Não dá para comparar com nenhum outro partido brasileiro. Sua importância é incontestável. Porém, não se trata mais de um partido de esquerda. A questão posta não é o da legitimidade e importância do PT, mas que apito ele efetivamente apita no século XXI. (FIM)”

Realmente, é o fim.

“Não se trata mais de um partido de esquerda”.

Como diria o mineiro: cumbasenoqueocebaseaestabesteira?

Se Rudá dissesse que o PT não é mais revolucionário ou não é mais socialista, ainda seria compreensível, mesmo que questionável.

Mas dizer que o PT não é de esquerda??

Ele seria o que?

De centro?

De direita?

As categorias de esquerda e direita expressam posições relativas.

Na política brasileira, goste ou não Rudá, o PT lidera um bloco contraposto a outro bloco.

O nome dado aos blocos pode variar, mas eles expressam forças sociais contrapostas. E os nomes precisam indicar isso.

Se Rudá quiser chamar o bloco liderado por nós de direita, teria que chamar o outro bloco de esquerda. E assim por diante.

Podemos debater o que significa concretamente ser de esquerda, mas dizer que o PT não é de esquerda levaria a dizer que, no Brasil de 2022, o bolsonarismo e o neoliberalismo não são de direita.

Isto posto, só me resta apelar ao velho e bom alemão: ao se deparar com uma ideia, pergunte sempre a quem ela presta serviços.

A quem presta serviços, a quem interessa, dizer que o PT não é de esquerda?

Que apito toca o fio de Rudá?


TEXTO SEM REVISÃO

 

 

 

 


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