quinta-feira, 15 de julho de 2021

Discussão sobre como fazer "análise de conjuntura"

(sem revisão)

Todos fazemos “análise de conjuntura”, o tempo todo; mas a maioria de nós faz isso sem método, ou seja, sem um roteiro estruturado.

Isso contribui para o fato – conhecido de todos nós – de que uma mesma conjuntura seja interpretada de maneira completamente diferente, por pessoas que militam em uma mesma organização. Ou, pelo contrário, que seja interpretada de maneira igual, por pessoas que militam em organizações diferentes.

Além da falta de método, existem três outras circunstâncias que contribuem para esta multiplicidade de análises diferentes. 

Primeira circunstância, já citada, é a ausência de método. 

A segunda é a utilização de métodos diferentes. 

A terceira é a diferença nas informações disponíveis (por exemplo: as recentes manifestações em Cuba reuniram centenas ou reuniram milhares de pessoas? As manifestações na Paulista tiveram mais gente ou tem menos gente?). 

E uma quarta é o “lugar de fala”. E eu quero começar por este ponto.

Análise de conjuntura não é diletantismo, é uma ferramenta para definir e/ou ajustar a tática. E a tática está em função da estratégia. E a estratégia muda de organização para organização, de pessoa para pessoa. 

Estratégias diferentes vão enfatizar, vão valorizar diferentemente determinados componentes da conjuntura. 

Por exemplo: uma estratégia cujo objetivo é mudar o país através de políticas públicas implementadas por governos eleitos vai dar sempre enorme atenção para os processos eleitorais e para o que diz respeito aos processos eleitorais. 

É por isso que muitos dirigentes de certos partidos políticos sabem dizer pouco sobre o que está acontecendo no cotidiano da classe trabalhadora e/ou nas manifestações de rua, mas sabem dizer muito sobre o que está acontecendo nas negociações de alianças entre partidos.

Outro exemplo: uma estratégia baseada no acúmulo de forças nas instituições e nos processos eleitorais é capaz de gastar horas analisando o que o ministro Y do STF jantou ontem, o que o presidente da Câmara tomou no café da manhã e qual o significado oculto de uma frase dita por um senador no cafezinho. Já uma estratégia baseada na construção de um poder popular alternativo vai dar mais ênfase para o estado de ânimo, o nível de consciência, mobilização e organização das massas populares.

Os exemplos que dei, que certamente são caricaturais, mas não são falsos, visam enfatizar o seguinte: uma estratégia (que inclui o programa de transformações e inclui o mapa do nosso caminho para o poder), para se materializar, supõe vitórias táticas. 

Mas não supõe quaisquer vitória tática, supõe vitórias táticas que fortaleçam aquele determinado caminho estratégico. Por isso, a opção por uma determinada estratégica conduz a determinadas opções táticas e isso, por sua vez, conduz a enfatizar ou a interpretar diferentemente os acontecimentos conjunturais.

Um exemplo: como pode uma pessoa experiente, com anos de governo, subestimar a vinda do diretor da CIA ao Brasil neste momento? 

Como pode uma pessoa experiente achar que os comandantes das forças armadas estariam contrários ou mesmo neutros frente a estratégia geral do bolsonarismo? 

Como pode alguém ficar perplexo diante do fato de que os militares em 2021 absolveram Pazuello, tendo em vista o que os militares vieram fazendo no Brasil desde sabe-se lá quando?

A resposta é: no esquema estratégico de algumas pessoas, não cabe enfrentar-se com as forças armadas. 

Portanto, se buscará desesperadamente na realidade tudo aquilo que possa servir de base para esta opção. 

Assim, se o general tal foi educado e amistoso conosco em um encontro privado, LOGO ele é profissional, legalista, defensor da Constituição, um democrata etc. Detalhe: isso que eu acabei de falar não é invenção, mas são “argumentos” (!!) utilizados por algumas pessoas para defender o Villas Boas, que quase foi objeto de um manifesto de apoio assinado por pessoas de impecável passado revolucionário, que se deixaram iludir, assim como o Salvador Allende se deixou iludir pelo Pinochet. 

As pessoas veem, na tática, aquilo que a estratégia “precisa” que elas vejam.

É por isso, por exemplo, que grupos de ultra-esquerda olham para um black block (mesmo que seja um BB provocador, um P2) e enxergam ali a violência revolucionária em marcha, os sinais de uma revolução que se aproxima no horizonte.

Retomando portanto: 1/quando fazemos uma análise de conjuntura, é preciso ter claro de que ponto de vista estratégico fazemos esta análise e portanto 2/é preciso ter claro o que queremos da tática, quais são os nossos objetivos táticos, pois eles é que vão definir as 3/perguntas que faremos na análise de conjuntura.

Portanto os conceitos estratégia, tática e análise de conjuntura estão vinculados entre si, assim como todos os aspectos da luta de classes estão vinculados na realidade.

Acontece que atuamos no Brasil de 2021, onde convivem – conflituosamente ou amistosamente - diferentes partidos e diferentes estratégias. Além do mais, convivemos em espaços e em situações diferentes. Por exemplo: a campanha Fora Bolsonaro. Participam dela organizações diferentes, com estratégias e táticas diferentes. Isso necessariamente vai produzir análises de conjuntura distintas. Algumas destas análises podem ser simplesmente falsas (do tipo: as manifestações de rua já atingiram um patamar tal que torna possível obrigar o Artur Lyra a submeter o impeachment a análise da Câmara e, mais ainda, a aceitar colocar em votação uma PEC que na prática antecipa as eleições presidenciais). Outras podem ser apostas, no bom sentido da palavra: as mobilizações, se mantiverem um patamar de participação razoável, vão desenferrujando os músculos e acumulando forças, o que é útil seja no caso de ser mantido o calendário eleitoral, seja no caso de afastamento do Bolsonaro (por golpe, saúde, renúncia ou impeachment), seja no caso de um governo Mourão, seja no caso de convocação de eleições antecipadas.

Tudo isto significa, como é óbvio, que o “roteiro para análise de conjuntura” depende do quem faz e de para qual objetivo faz.

Um último comentário, antes de entrar no roteiro propriamente dito: a conjuntura é um fotograma de um filme. A maioria dos filmes não são plano contínuo, nem são filmados em um dia só. Portanto, o trabalho é interrompido e retomado. E quando se começa um novo dia de filmagens, é comum que alguma coisa tenha saído do lugar, o que gera situações cômicas para quem assiste um filme com atenção, por exemplo um artista usando duas camisas diferentes numa mesma cena, sem que ele tenha trocado de camisa. Para tentar evitar essas situações, existe o famoso contra-regra.

Pois bem: uma organização precisa de contra-regra, para não perder a memória do que foi dito na análise de ontem. Seja para percebermos os erros que cometemos, seja para não termos que repetir todos os elementos cada vez que fazemos uma análise. 

Claro que se a análise for enviesada, estiver baseada em um equívoco, isto vai produzir desdobramentos equivocados. 

Por exemplo: existe um certo personagem que certa vez vi bater na mesa e dizer que “de uma coisa tenho certeza, Bolsonaro nunca será eleito presidente”. 

O mesmo personagem disse anos antes que estava convencido de que não haveria golpe, porque as elites tinham feito as pazes com as urnas. 

E mais recentemente foi um dos que defendeu que o centro da tática era "a defesa da vida" e não o Fora Bolsonaro, como se fosse possível separar os temas.

Este personagem, que segue muito influente,  precisaria de um contra-regra, parece um serial killer analítico: comete erros em série. 

Mas por qual motivo ele comete erros em série? Penso que é porque ele tem uma interpretação errada do conjunto da obra, da história recente do Brasil e principalmente das perspectivas da luta de classes. 

Como ele não considera possível – por definição – uma mudança revolucionária, todas as análises que ele faz minimizam tudo que conduz a situações extremas, a rupturas, inclusive as que vem do lado de lá.

Alguém pode se perguntar por qual motivo uma pessoa capaz de cometer tantos erros, continua sendo tão influente. A resposta óbvia é: ele não está sozinho. A esquerda brasileira conseguiu vencer 4 eleições presidenciais, mas não conseguiu evitar um golpe. E não conseguimos evitar o golpe entre 2016 e 2018 em parte porque a maioria de nós 1/achava que golpes eram coisas do passado 2/achava que os EUA não iriam permitir 3/confiava nas instituições 4/não apostava o quanto se devia apostar na conscientização, mobilização e organização de massas. 

Pois bem: cá estamos nós em 2021 e entre nós segue existindo um bom número de pessoas que acha que 1/golpes são coisa do passado e em 2022 tudo se resolverá eleitoralmente 2/o governo Biden está noutra "vibe", isto apesar do Biden ter sido vice de Obama quando o golpe de 2016 aconteceu 3/as instituições são confiáveis: os militares, o judiciário, o parlamento, a direita gourmet 4/é mais importante acertar os detalhes da eleição do parlamentar XYZ do que trabalhar para recuperar a capacidade de mobilização e organização de massas.

Um exemplo desta reincidência no erro: no debate feito no PT sobre o programa de reconstrução e transformação, não apenas se deu um tratamento light do agronegócio e do capital financeiro, como não se incluiu NADA, insisto, NADA, sobre o tema forças armadas. Se remeteu o assunto para uma comissão, que até hoje não se reuniu. 

Enfim, alguns de nós têm um problema teórico e estratégico a resolver, sem o qual não haverá boa análise de conjuntura e boa tática.

Isto posto e para encerrar, um roteiro que acho adequado é o seguinte:

1/determinar em qual período estamos, o que implica em compreender o sentido geral da história (mundial, regional, nacional), ou seja, compreender o curso geral da luta entre os Estados e da luta entre as classes;

2/determinar em que momento estamos desta história (ascenso, descenso, equilíbrio), ou seja, determinar quais são as grandes questões que estão em jogo neste momento;

3/determinar, com base nisso, o programa estratégico (o que queremos fazer) e o mapa do caminho (como alcançar o poder necessário para implementar o programa) de cada uma das forças em pugna (Estados em âmbito mundial e classes em âmbito nacional);

4/noutros termos, tudo que foi dito antes visa definir qual a guerra que está sendo travada (Socialismo contra capitalismo? Capitalismo democrático contra neoliberalismo? Democracia contra autoritarismo? Nação contra imperialismo? Democracia contra fascismo? etc.);

5/toda guerra é feita de múltiplas batalhas, que são simultâneas. Mas há algumas batalhas que são mais importantes que outras, devido a seus efeitos militares (destruição de forças inimigas), econômicos (captura de fontes de energia, suprimentos), sociais (causam problemas no funcionamento cotidiano da retaguarda do inimigo), políticos (desorganizam a capacidade do inimigo comandar) e ideológicos (quebram a vontade do inimigo). Por exemplo: se o governo cubano caísse, isso não teria efeitos militares, econômicos, sociais e políticos sobre nós. Mas teria efeitos ideológicos imensos.

6/cada batalha exige uma tática. Ou seja: para cada batalha é necessário fazer um exame do que está em jogo, de quais são as forças envolvidas, quais são as táticas adotadas por cada um delas. E, a partir daí, determinar qual é o centro da tática. Novamente usando a metáfora da guerra: é preciso definir qual rua, qual prédio, qual choque específico vai definir o rumo da batalha. 

7/do mesmo jeito que há batalhas mais importantes do que outras, dentro de uma batalha há conflitos mais importantes que outros. Quando a agenda do Lula decidiu que ele faria X atividades antes de ir para o último debate com o Collor no segundo turno, a agenda não percebeu que aquele debate era (ou poderia ser) central na definição do rumo da batalha. 

O que chamamos de análise de conjuntura é, portanto, a definição dos elementos que compõem uma determinada batalha. 

É muito comum que, ao fazer a análise, muitas pessoas se dediquem a “contar histórias”, ou seja, fazem uma análise descritiva. Falam de tudo e... nada, pois uma descrição é uma descrição. E a análise de conjuntura não é uma descrição, a análise de conjuntura tem como objetivo orientar a ação. Portanto, tem que definir onde concentrar esforços.

Por exemplo: em nossa guerra contra o capitalismo brasileiro, há  uma batalha importante contra o governo Bolsonaro. Ou, se quiserem de outro jeito, em nossa guerra contra o governo Bolsonaro, há várias batalhas ocorrendo. Qual destas batalhas (no STF, na CPI da Covid, na luta contra as contrarreformas no parlamento, nas ruas, nas pesquisas eleitorais, na luta contra  etc.) é NESTE MOMENTO o centro da tática?

Aqui eu quero chamar a atenção para três coisas: 

*primeiro, o acaso (ou seja, aquilo que nos surpreende não porque fosse imprevisível, mas porque nossa capacidade de análise não nos permitiu ver); 

*segundo, a dúvida (nem sempre é possível definir onde a represa vai romper primeiro, até porque ela pode romper em vários lugares ao mesmo tempo e eventualmente pressão em dois pontos pode ser melhor, desde que articuladas entre si); 

*terceiro, a continuidade: a vitória em uma batalha decisiva não significa que a guerra acabou, portanto o planejamento estratégico e tático é permanente e deve sempre buscar antecipar o passo seguinte.

No concreto: a facada. A facada não aconteceu por acaso. Mas para nós pareceu obra do acaso, no sentido de que não estava na nossa previsão (o que revela uma falha grave na nossa capacidade analítica). Seja como for, o acaso pode provocar reviravoltas. Os golpistas de 1954 não contavam com o suicídio de Vargas. Neste sentido, a política em geral e a análise de conjuntura em particular são algo muito complexo, no sentido de que são “síntese de múltiplas determinações”.

No concreto: CPI da Covid ou mobilização de ruas? Ou ambas? Detalhe: quem fala que é a CPI é o centro da tática precisa lembrar que na CPI a esquerda é minoritária, fazemos parte de uma frente hegemonizada por parte da direita gourmet. 

No concreto: o que virá pela frente? 15 meses de desgaste, eleições livres e Lula presidente? Ou Bolsonaro seguirá o caminho de Tancredo, ou de Jânio, ou de Collor? Ou a situação pode melhorar e Bolsonaro pode ganhar a eleição? Ou pode perder e dará um golpe? A discussão sobre cenários – que sempre é arriscada, pois o mundo das hipóteses parece um sumidouro – é no fundo uma discussão sobre as tendências possíveis, os desdobramentos possíveis.

Voltando ao ponto, é preciso considerar: qual a guerra, quais as batalhas que compõem esta guerra, qual a tática em cada uma destas batalhas, qual a batalha central neste momento, qual a tática nesta batalha central (ou seja, qual o centro da tática).

As questões relativas a "guerra" (período, momento, programa, poder) dependem de uma análise dos conflitos estruturais, fundamentais, entre os Estados no plano mundial e entre as classes no plano nacional.

Já as questões relativas as "batalhas" remetem para a análise dos conflitos conjunturais, do momento, entre os Estados e as classes. Portanto, a “escolha” do que precisa ser acompanhado não é fixa, não é imutável. Semana passada Cuba não estava na nossa lista, agora está. Mas é óbvio que Cuba estava na lista do Biden. Conclusão: o ideal para uma organização permanente é ter um grupo de análise de conjuntura que acumule informação e análise sobre tudo de relevante o tempo todo. Ou que pelo menos saiba onde conseguir esta informação.

Se eu dispusesse dos meios para fazer isso, eu repassaria todo o dia os seguintes temas:

I-o conflito Estados Unidos x China

II-as ações dos EUA na América Latina

III-as relações EUA x Brasil

IV-a situação do grande capital (destaque para financeiro e primário-exportador)

V-a situação da classe trabalhadora (estado de animo, consciência, mobilização e organização dos diferentes segmentos: pequenos proprietários, assalariados, desempregados, subocupados, diferentes setores, homens e mulheres, juventude, moradores de periferia, negros e negras);

VI-aparatos de poder da classe dominante (forças armadas/policias/milicias, judiciário, congresso, meios de comunicação, igrejas conservadoras);

VII-Bolsonaro, seu governo, suas políticas, seus movimentos, a extrema direita;

VIII-Lula, o PT, as esquerdas;

IX-a direita gourmet; 

X-o centrão;

XI-fatos e processos impactantes (pandemia, crise energética etc.).

Quando falo repassar, eu sempre lembro: não se trata de contar uma história, descrever os fatos, se trata isto sim de verificar quais as movimentações em curso numa determinada batalha, no conjunto de batalhas, na guerra como um todo. Sempre definindo o centro da tática (onde concentrar esforços). Sabendo que o centro da tática pode mudar. Hoje é trabalhar pela derrubada imediata de Bolsonaro e por antecipação das eleições. Amanhã pode ser derrubar Mourão. Depois de amanhã pode ser a campanha Lula presidente. E depois de depois de amanhã pode ser a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

(sem revisão)

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