A entrevista de Fernando Haddad ao jornal Folha de S.Paulo, publicada no mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal agendou o julgamento do habeas corpus do presidente Lula, não inova frente a outros textos e entrevistas recentes do ex-prefeito de São Paulo.
A vitória de Dória na eleição de 2016 entra na conta dos acertos e erros dos outros. Os erros próprios são apresentados de maneira ambígua, como se fossem acertos incompreendidos: “minha administração, que deve ter contrariado também interesses, pesou também. Eu atribuo uma parte da derrota a medidas que eu tomei. Não tenho dúvidas disso. Mas tomaria igual, não me arrependo”.
Sobre as reivindicações de 2013, Haddad adota o mesmo critério: “o que eu questiono (..) foi a forma com que eles se relacionaram com o poder público. Existia uma repulsa ao debate, ao diálogo”. Nenhuma palavra sobre a demora em cancelar o reajuste da passagem de ônibus, nem sobre a bizarra decisão de fazer isto em companhia de Alckmin. Que, aliás, ganha absolutamente de graça um “nada consta” no quesito corrupção.
Outro tucano citado na entrevista de Haddad é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Seu “maior erro”, segundo Haddad, teria sido “não atacar a desigualdade. Ela permaneceu inalterada durante oito anos”.
O uso da palavra erro (e não opção política, escolha coerente com determinados interesses de classe) talvez seja um péssimo cacoete acadêmico, como se pode depreender do complemento do raciocínio de Haddad: “Vindo isso da parte de quem veio, uma pessoa com a formação que o Fernando Henrique tem, é grave. O Fernando Henrique escreveu a obra dele acadêmica voltada para essa questão da escravidão, a questão do negro, a questão da exclusão”.
Mas cacoetes acadêmicos não explicam a afirmação que Haddad faz acerca do Plano Real.
Perguntado sobre se o PT errou em não apoiar o Plano, Haddad responde que “o PT tinha uma avaliação de que o Plano Real seria mais um plano na ordem dos planos todos que fracassaram. Como ele foi feito muito no calor da eleição, imaginou-se ali que ele não teria sustentabilidade, e ele veio a ter. A falha é que o Plano Real não tinha uma dimensão social. Então minha resposta é sim e não; a parte boa do Real foi a estabilidade, mas ele não veio acompanhado de medidas sociais importantes”.
De fato havia no PT gente que criticou o Plano Real por ser eleitoreiro e que desacreditou de seu sucesso no curto prazo. Mas isto nunca foi o fundamental da crítica feita pelo PT ao Plano Real. O fundamental foi dizer que se tratava de um plano de estabilização baseado em instrumentos que causariam, como efetivamente causaram, gravíssimos efeitos de médio e longo prazo, entre os quais a privatização, o endividamento público, a perda de soberania nacional, o desemprego etc. Motivos pelos quais não faz o menor sentido elogiar a “estabilidade” e lamentar a ausência de uma “dimensão social”.
A impressão que fica é que Haddad foi capturado pela lógica implícita numa pergunta da Folha, acerca do “binômio PSDB e PT no governo”. Ou, pelo menos, que ele está coberto de razão quando diz que “depois que você passa pelo governo, você muda”.
Muda, mas nem tanto: como Haddad faz questão de lembrar, há décadas ele se considera socialista. Mas seu parâmetro de socialismo são “alguns países social-democratas europeus”, os “Países Baixos, os países escandinavos”, “nórdicos”. Seu modelo de socialismo é a social-democracia europeia. Sobre outras experiências -- algumas das quais contribuíram direta ou indiretamente para criar as condições para que o chamado estado de bem-estar social pudesse existir-- Haddad reserva crítica brutal e apelo à Nossa Senhora!!!
A generosidade de Haddad para com os tucanos persiste, mesmo quando se trata de analisar o “ódio contra o Lula”.
Os partidos de direita (PSDB inclusive), o oligopólio da comunicação (Folha inclusive), o grande capital e seus aliados estrangeiros, nada disto é citado.
O único que merece menção é o “ressentimento das classes médias tradicionais que efetivamente não mudaram de patamar. Elas viram o rico se distanciar e o pobre se aproximar”.
Ressentimento que, na opinião do ex-prefeito, teria sido alimentado pelos “escândalos”: “tanto o caso de 2005, do mensalão, quanto o caso da Petrobras”, assuntos sobre os quais Haddad dá uma resposta totalmente defensiva, rebaixada e errada.
Os partidos de direita (PSDB inclusive), o oligopólio da comunicação (Folha inclusive), o grande capital e seus aliados estrangeiros, nada disto é citado.
O único que merece menção é o “ressentimento das classes médias tradicionais que efetivamente não mudaram de patamar. Elas viram o rico se distanciar e o pobre se aproximar”.
Ressentimento que, na opinião do ex-prefeito, teria sido alimentado pelos “escândalos”: “tanto o caso de 2005, do mensalão, quanto o caso da Petrobras”, assuntos sobre os quais Haddad dá uma resposta totalmente defensiva, rebaixada e errada.
Mas o pior da entrevista aparece quando a Folha faz a seguinte pergunta: “O ex-presidente Fernando Henrique falou na entrevista que fiz com ele que o que separava o PT e o PSDB no passado era muito mais disputa de poder do que ideológica. Falou que se pudesse ter voltado no tempo teria se aproximado do Lula e de forças progressistas. Essas afirmações e movimentos fazem sentido para o senhor?”
Haddad responde assim: “Fazem. O PT tem críticas ao governo do Fernando Henrique. Vou citar uma delas, que é a agenda social. O PSDB tem uma crítica aos governos do PT, sobretudo ao governo da presidenta Dilma, porque, em relação ao Lula em 2010, você há de lembrar que o [senador tucano José] Serra não fez oposição ao Lula. Eu, por exemplo, fui criticado por ter ido à ópera com Fernando Henrique”.
Quero crer que a resposta do ex-prefeito tenha sido distorcida pela edição do jornal. Quanto ao mérito, o ponto é bastante simples. Se o PSDB fosse social-democrata no sentido clássico da palavra, é provável que petistas e tucanos tivessem construído uma sólida aliança. Acontece que o PSDB não é social-democrata no sentido clássico, o PSDB é neoliberal. É principalmente por isto que a história do Brasil, desde 1994, vem sendo polarizada pela disputa ideológica e política entre petistas e tucanos.
É compreensível que setores do PSDB gostem de disfarçar seu conservadorismo. É ainda mais compreensível vindo de um ególatra como FHC. Mas que setores do PT alimentem este trololó é algo que oscila entre o masoquismo e a estupidez.
Como Haddad não me parece sofrer de nenhuma destas características, há outra hipótese: um determinado cálculo acerca do que vai ocorrer nos próximos dias, meses e anos.
Que cálculo é este, é assunto para outro texto.
Mas me parece diferente do adotado por quem acredita que, em 2018, "a disputa deverá ser outra vez entre tucanos e PT".
Que cálculo é este, é assunto para outro texto.
Mas me parece diferente do adotado por quem acredita que, em 2018, "a disputa deverá ser outra vez entre tucanos e PT".
Segue a entrevista criticada.
• ENTREVISTA - ”Divergências não podem nos impedir de sentar e conversar, diz Haddad” - Recentemente entrevistei o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que declarou que, se pudesse reviver o passado, teria se aproximado não só do Lula, mas de forças políticas progressistas em geral. Depois que FHC foi a uma ópera na companhia do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), resolvi investigar a reciprocidade desta ideia e a saúde da nossa democracia.
• Folha - Pensando nesses muitos anos do binômio PSDB e PT no governo, o que o sr. enxerga como conquistas e erros desses dois grupos?
• Fernando Haddad - Vários aspectos da organização do Estado brasileiro vieram no bojo da estabilização monetária. Aproveitou-se aquele contexto para organizar certos setores da máquina pública. No caso do PT, organizou uma agenda de desenvolvimento inclusivo. Mesmo quando você pensa no milagre econômico da ditadura, você vê que a desigualdade ali nunca foi enfrentada para valer. A educação nunca foi prioridade no Brasil. Veja o que aconteceu com o orçamento do Ministério da Educação durante o governo Lula. O governo Fernando Henrique deixou um orçamento no MEC que era uma brincadeira. Eu deixei como um dos ministérios mais importantes da República, com mais de R$ 100 bilhões de orçamento, saindo de R$ 20 [bilhões]. Aquela ideia do Lula de não governar só para um terço da população vingou. Ela foi demonstrada na prática como viável.
o E os erros?
o Eu acho que o maior erro do governo Fernando Henrique foi não atacar a desigualdade. Ela permaneceu inalterada durante oito anos. Vindo isso da parte de quem veio, uma pessoa com a formação que o Fernando Henrique tem, é grave. O Fernando Henrique escreveu a obra dele acadêmica voltada para essa questão da escravidão, a questão do negro, a questão da exclusão. Durante oito anos, você não teve nenhum enfrentamento com a questão da desigualdade, que é o principal problema do país. Da parte do Lula, na minha opinião, também houve um erro grave, que foi não ter feito a reforma política. É óbvio que aquilo era um calcanhar de Aquiles, é óbvio que o sistema partidário brasileiro precisava de uma alteração profunda, era evidente que nós não íamos longe com aquele sistema. Eu acho que a gente estressou [insistiu] pouco. Alguém dirá "mas não era possível conseguir, não ia aprovar...". Mas nós estressamos pouco. Então nós devíamos ter dado um passo no sentido de sanear o quadro partidário no Brasil.
o O sr. acha que o PT errou em não apoiar o Plano Real?
o Eu acho que o PT tinha uma avaliação de que o Plano Real seria mais um plano na ordem dos planos todos que fracassaram. Como ele foi feito muito no calor da eleição, imaginou-se ali que ele não teria sustentabilidade, e ele veio a ter. A falha é que o Plano Real não tinha uma dimensão social. Então minha resposta é sim e não; a parte boa do Real foi a estabilidade, mas ele não veio acompanhado de medidas sociais importantes.
o Sobre as reivindicações de 2013, o sr. teve uma declaração célebre dizendo que "aproveita que está pedindo Passe Livre, também pede almoço grátis e uma viagem para Disney." O sr. acha que existe às vezes um descolamento de setores da esquerda entre o que é desejável e o que é possível?
o Eu não tenho nenhuma antipatia, muito pelo contrário, com aquela pauta de reivindicação. Eu lembro que, dois meses antes das manifestações de junho, dei uma entrevista para a Folha de S.Paulo, reivindicando a municipalização da Cide, que é um imposto que incide sobre a gasolina, para os prefeitos do Brasil inteiro terem verba para não terem que aumentar a tarifa e terem que subsidiar uma fonte nova de arrecadação. Portanto, eu seria o último a declarar aquela agenda ilegítima. O que eu questiono de 2013 foi a forma com que eles se relacionaram com o poder público. Existia uma repulsa ao debate, ao diálogo.
o Mas o sr. acha que existe, por parte de setores da esquerda, uma falta de compreensão das restrições orçamentárias?
o Olha, da parte dos governos de esquerda, existe muito mais compreensão dos limites hoje. Depois que você passa pelo governo, você muda, passar por um governo educa.
o Ao que o sr. atribui a escalada de ódio contra o Lula?
o Eu acho que aconteceu uma coisa no Brasil que precisa ser estudada com mais vagar. Os ricos ficaram mais ricos, os pobres ficaram bem menos pobres, e a camada intermediária estagnou e até perdeu posição relativa em relação aos extremos. Eu acho que isso gerou um ressentimento de pouca atenção para aquele trabalhador que tinha o filho na escola particular, porque queria dar mais qualidade de ensino do que o oferecido pela escola pública, que tinha um plano de saúde porque queria ter um atendimento médico superior ao oferecido pelo SUS. Havia um ressentimento das classes médias tradicionais que efetivamente não mudaram de patamar. Elas viram o rico se distanciar e o pobre se aproximar. A gente tinha que cuidar dessa camada social intermediária, porque às vezes não se tratava só de bens econômicos. Às vezes era um chamado para um país mais justo. Então tinha até aberto uma agenda, uma agenda política com estes setores intermediários. E esse ressentimento se acumulou, e obviamente que os escândalos acabaram alimentando esse sentimento. Acho que tanto o caso de 2005, do mensalão, quanto o caso da Petrobras alimentaram um certo ressentimento.
o Como o sr. vê os escândalos do PT, que tinha como sua principal bandeira combater a corrupção?
o É evidente que existe um gradiente de comportamentos menos graves e mais graves. Embora todo erro deva ser condenado, você não pode comparar uma pessoa que assaltou os cofres públicos para enriquecimento pessoal de uma outra que eventualmente não registrou R$ 5.000 que foram doados para a campanha dele num jantar. Dinheiro lícito. Eu acho que tem muito político que admitiu receber recursos não contabilizados para pagar dívidas de campanha, mas que não pensava que esse recurso pudesse ter origem ilícita. Acho que a Justiça precisa dar um tratamento para esse sujeito, que está previsto na lei --duro, mas proporcional ao delito.
o O ex-presidente Fernando Henrique falou na entrevista que fiz com ele que o que separava o PT e o PSDB no passado era muito mais disputa de poder do que ideológica. Falou que se pudesse ter voltado no tempo teria se aproximado do Lula e de forças progressistas. Essas afirmações e movimentos fazem sentido para o senhor?
o Fazem. O PT tem críticas ao governo do Fernando Henrique. Vou citar uma delas, que é a agenda social. O PSDB tem uma crítica aos governos do PT, sobretudo ao governo da presidenta Dilma, porque, em relação ao Lula em 2010, você há de lembrar que o [senador tucano José] Serra não fez oposição ao Lula. Eu, por exemplo, fui criticado por ter ido à ópera com Fernando Henrique.
o O sr. tem convicção da inocência do ex-presidente Lula?
o Eu tenho a convicção de quem leu o processo. Eu sempre repito que eu defendo a honra de uma pessoa independentemente de posição partidária. Fui perguntado já duas ou três vezes sobre as acusações que se faz ao governador Alckmin. Eu disse: "Olha, trabalhei quatro anos como prefeito e ele governador. Nunca ouvi nada de um empresário". Porque essas notícias nos bastidores correm, sobre quem é correto e quem não é. Então eu li o processo e eu acho insustentável aquela sentença [contra o Lula]. Bom, não vou passar mão nem na cabeça de Lula, nem de Alckmin, nem de Fernando Henrique, nem de um filho meu. De novo, uma coisa é agenda partidária, outra coisa é agenda de Estado. Defender a honra de uma pessoa que você sabe que procede de maneira correta, você não pode fazer política em torno disso.
o Se Lula for impedido de concorrer, qual sua leitura sobre a nossa democracia?
o Eu acho ruim sob todos os aspectos. Porque vai ficar mais uma mácula na nossa história democrática, e grave. Não é uma coisa qualquer o que vai acontecer, de maneira que eu preferia que isso tivesse um outro desenlace.
o O sr. considera sair como candidato a presidente caso Lula esteja impedido de concorrer?
o Eu não coloquei minha candidatura. Existe hoje um sentimento de solidariedade ao Lula tão grande dentro do PT que, estou sendo muito sincero, ninguém conversa sobre isso nem nos bastidores. A gente acredita que em algum momento a inocência dele vai ser reconhecida. Agora, existe a chance de isso não acontecer? Existe. Mas nós não estamos trabalhando com essa hipótese e não estamos elaborando cenários, no caso de ocorrer. É uma situação de risco, mas que nós quisemos assumir.
o O sr. atribui ter perdido a disputa para Doria ao fato de a rejeição ao PT ter crescido?
o Acho que uma série de coisas pesou. A recessão econômica foi muito forte. Praticamente nenhum prefeito importante do Sudeste e do Sul se reelegeu ou fez o sucessor. O fato de [Luiza] Erundina e Marta [Suplicy] terem saído candidatas, uma pelo PSOL e uma pelo MDB, também pesou. A situação do PT em 2016 era o pior momento da história do partido, e a minha administração, que deve ter contrariado também interesses, pesou também. Eu atribuo uma parte da derrota a medidas que eu tomei. Não tenho dúvidas disso. Mas tomaria igual, não me arrependo.
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