quarta-feira, 7 de junho de 2017

Voltar aos 17

Este texto foi publicado na edição digital da revista Esquerda Petista número 7.

Centenário
Voltar aos 17
Valter Pomar
Corria o ano de 1986. O PT tinha seis anos de idade, a CUT três. As duas organizações decidiram investir na formação política. Com o apoio direto de alguns sindicatos, adquiriram as instalações de um hotel desativado, situado no município de Cajamar (SP), que fica entre Jundiaí e São Paulo, na Via Anhanguera km 46,5. Naquele lugar começou a funcionar o Instituto Cajamar, também conhecido como Inca.
O presidente do Inca era o educador Paulo Freire. A lista de diretores incluía Arlindo Chinaglia, Avelino Ganzer, Frei Betto, Gilberto Carvalho, Jorge Coelho, Luis Gushiken, José Luís Gon- çalves, Luiza Erundina, Olívio Dutra, Paul Singer, Paulo Schilling, Perseu Abramo, Rui Falcão e Walter Barelli. O cotidiano do Inca era de responsabilidade de uma coordenação executiva integrada por Osvaldo Bargas, Aloizio Mercadante, Devanir Ribeiro, Durval de Carvalho, Luiz Azevedo, Miguel Rupp, Nobuko Kameyama, Pedro Pontual, Regina Festa, Wander Bueno Prado, Wladimir Pomar e Wilson Santa Rosa.
Faziam parte do Conselho Fiscal do Instituto Cajamar Maurício Soares de Almeida, Valderi Antão Ruviaro, Djalma de Souza Bom, José Cicote, Epitácio Luís Epaminondas e Marcos Antonio Vitorino de Almeida.
Na época, foi uma grande novidade. Uma “casa de encontros” que não era de propriedade, nem tampouco gerida por instituições religiosas. Cursos de formação que duravam uma semana ou quinze dias. Conteúdos abordados de um ponto de vista marxista, numa instituição dirigida por petistas vinculados à “Articulação dos 113”.
Em 1987, por ocasião do septuagésimo aniversário da Revolução de Outubro de 1917, o Inca promoveu um seminário internacional intitulado “70 anos de experiências da construção do socialismo”. O seminário foi realizado entre os dias 20 a 24 de novembro de 1987. As palestras e debates foram gravados, transcritos e publicados em um livro editado pelo economista Carlos Eduardo Carvalho. Intitulado 1917-1987: Socialismo em debate, o livro foi lançado em agosto de 1988. Seu expediente relaciona, além do supracitado Carlos Eduardo, os seguintes colaboradores da edição: Marco Aurélio Garcia, Marcos Piva, Rui Falcão, Valter Pomar e Wladimir Pomar.
A “apresentação” do livro, assinada pelo setor de publicações do Instituto Cajamar, esclarece que “dificuldades impostas pelo governo brasileiro na concessão do visto diplomático impediram” a entrada no país, a tempo, do representante do Instituto de América Latina da Academia de Ciências da URSS. E a “coincidência de datas entre a realização do Seminário e o 13º Congresso do PC Chinês impediu a vinda de estudiosos” daquele país.
O livro traz, ainda, uma relação dos participantes do seminário, indicando além do nome e sobrenome, o cargo ocupado à época. A saber: Luiz Inácio Lula da Silva (presidente nacional do Partido dos Trabalhadores), Luís Carlos Prestes (ex-secretário geral do Partido Comunista Brasileiro), Aloizio Mercadante (coordenador do departamento de estudos e pesquisas do Instituto Cajamar), Apolonio de Carvalho (membro do Diretório Nacional do PT), Benedito de Carvalho (ex-dirigente do PCB e ex-dirigente do Partido Comunista do Brasil), Camilo Domenes (subdiretor do Centro de Estudos da América, Havana), Cézar Alvarez (membro do Diretório Regional do PT do Rio Grande do Sul), Clara Charf (membro do Diretório Regional do PT de SP), Claus Germer (militante do Partido dos Trabalhadores), Clovis Ilgenfritz (membro do Diretório Nacional do PT), Daniel Aarão Reis (historiador), David Capistrano (militante do PT), Eduardo Suplicy (membro do Diretório Nacional do PT), Emir Sader (historiador), Eneida Soler (presidenta do Sindicato dos Artistas do Estado de SP), Fúlvio Abramo (Diretor do Centro Mário Pedrosa), Gilberto Carvalho (presidente do Diretório Regional do PT do Paraná), Jacob Gorender (historiador, ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), Jair Meneguelli (presidente da Executiva Nacional da Central Única dos Trabalhadores), José Dirceu (secretário-geral do Diretório Regional do PT de SP), Juan Valdez (chefe do Depar- tamento de América Latina do Centro de Estudos da América, Havana), Leonardo Boff (teólogo franciscano), Lafaiete Santos Neves (ex-presidente do Diretório Regional do PT do Paraná), Lúcio Jimenez (secretário-geral da Central Sandinista de Trabalhadores da Nicarágua), Luis Favre (membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT), Luís Flávio Rainho (pesquisador do Centro Ecumênico de Documentação e Informação), Luiz Gushiken (deputado federal do PT), Marcelo Deda (deputado estadual do PT de Sergipe), Mário Barbosa (diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema), Marco Aurélio Garcia (diretor do Arquivo Edgar Leuenroth da Unicamp), Marcos Arruda (pesquisador e educador popular), Marco Piva (membro do coletivo da SRI do PT), Osvaldo Bargas (coordenador-geral do Instituto Cajamar), Paulo Azevedo (presidente do Sindicato dos Metroviários de SP), Paulo Vannuchi (assessor de formação política do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e Diadema), Paul Singer (membro da assessoria econômica do DN do PT), Pedro Tonelli (deputado estadual do PT do PR), Perly Cipriano (presidente do PT do Espírito Santo), Rui Falcão (secretário de formação política do Diretório Regional do PT de São Paulo), Selvino Heck (deputado estadual do PT do Rio Grande do Sul), Valter Pomar (membro do coletivo da Secretaria de Formação Política do PT de São Paulo), Vicente Paulo da Silva (presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e Diadema), Vito Letizia (historiador) e Wladimir Pomar (coordenador-geral adjunto do Instituto Cajamar).
A exposição principal sobre a experiência soviética foi feita por Jacob Gorender, Leonardo Boff e Vito Letizia. O debate sobre a experiência chinesa foi aberto por Wladimir Pomar e Benedito Carvalho, um dos participantes do levante comunista de 1935. O caso cubano foi apresentado por Juan Valdez, seguido de comentários de Emir Sader e José Dirceu. A Nicarágua foi tratada por Lucio Jimenez e Marcos Arruda. Depois das falas principais, ocorreram debates, de que participou grande parte dos presentes ao seminário.
Ler o livro e recordar as polêmicas do seminário promovido há 30 anos pelo Instituto Cajamar suscita diversas questões, entre as quais a sensação de um “debate interrompido”.
Debate interrompido pela ofensiva neoliberal; pela capitulação de grande parte da social-democracia europeia e do nacional-desenvolvimentismo latino-americano; pelo colapso da União Soviética e do tipo de socialismo que havia no Leste Europeu; e pela crise do movimento comunista. Debate interrompido, também e paradoxalmente, pelos êxitos relativos da esquerda brasileira, com destaque para o PT, que em 1988 foi o grande vitorioso das eleições municipais e em 1989 quase venceu, com Lula, as eleições presidenciais.
Quando a Revolução de Outubro comemorou seus 80 anos (1997) e seus 90 anos (2007), havia deixado de existir uma parte importante do mundo sobre o qual discutimos no seminário “70 anos de experiências da construção do socialismo”. E muitas das questões que então havíamos debatido, deixaram de ser ou deixaram de parecer essenciais, pelo menos aos olhos de muita gente.
Nos últimos dez anos, a situação mudou novamente. A partir da crise mundial de 2008, muitas daquelas antigas questões voltaram a ser ou pelo menos voltaram a parecer ser essenciais. Sem dúvida isto tem alguma relação com a impressionante concentração de efemérides. No espaço de dez anos, entre 2014 e 2024, chegam ao centenário: o começo e o fim da Primeira Guerra; a Revolução de Fevereiro e a Revolução de Outubro de 1917; a Revolução Alemã de 1918; a criação da Internacional Comunista, a fundação do Partido Comunista da China e do Partido Comunista do Brasil; o assassinato de Rosa Luxemburgo e vários de seus camaradas alemães; o falecimento de Lenin. Além dos 200 anos de nascimento de Karl Marx e a publicação de livros clássicos como Imperialismo, etapa superior e O Estado e a Revolução, ambos de Lenin. Mas para além do “efeito efeméride”, a retomada do interesse no debate sobre o socialismo em geral e sobre a Revolução Russa em particular tem outras causas.
Em primeiro lugar, porque vivemos um cenário internacional que possui algumas semelhanças com o que ocorreu no início do século XX: o declínio da potência hegemônica, a ascensão de novos polos de poder, o acirramento das contradições intercapitalistas, a importância do capital financeiro e do imperialismo. Malgrado as óbvias diferenças, o ambiente de 2017 lembra em vários aspectos aquele que desembocou na Primeira Guerra Mundial. Vivemos uma profunda crise mundial e momentos assim tornam inescapável certa “volta aos clássicos”. A Revolução Russa de 1917 é um caso clássico, do ponto de vista dos que estudam a dinâmica do capitalismo e de suas crises. Um caso tão clássico quanto o da Revolução Francesa de 1789, neste caso do ponto de vista dos que estudam a dinâmica do feudalismo e de suas crises.
Em terceiro lugar, muitas das antigas questões voltaram a ser ou pelo menos a parecer ser essenciais, porque a crise de 2008 e o que veio depois colocaram com extrema força e urgência o debate sobre o capitalismo, sobre as crises de acumulação, sobre o capital financeiro, sobre o papel do Estado, sobre o imperialismo e as guerras. Temas sobre os quais há contribuições relevantes feitas pelos revolucionários russos, como Bukarin e Lenin, antes e depois de Outubro de 1917. E, principalmente, contribuições práticas, tanto originadas da Revolução Russa de 1917 quanto dos que reagiram a ela.
De maneira mais geral, a análise marxista sobre o capitalismo voltou à moda. Análise que sempre foi muito cara para as diferentes tradições socialistas existentes na Rússia − anarquistas, populistas, social-democratas e comunistas, que dedicaram grande energia ao debate acerca do modo de produção capitalista, em particular à discussão sobre seu desenvolvimento e crises.
A história é conhecida: logo depois da primeira edição de O Capital, foi publicada uma tradução em russo. A situação excêntrica do Império Russo, um pé na Ásia e outro na Europa, um pé no feudalismo e outro no capitalismo, um pé no atraso e outro na modernidade, obrigou os pensadores russos de todos os matizes a se debruçar sobre a relação desigual entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento político, a dialética entre os diferentes tempos e conteúdos da (re)evolução política e da (re)evolução econômico-social.
Em quarto lugar, cabe lembrar que a tradição socialista vitoriosa na Revolução de Outubro (os social-democratas da fração bolchevique, que em 1918 adotaram o nome de “comunistas”) investiu grande parte de suas energias no debate sobre o papel do proletariado na luta pela democracia e pelo socialismo. Num país onde o proletariado era uma parcela diminuta da população, isto implicou em debater de maneira integrada a rela- ção entre “proletariado” e “campesinato”, entre “cidade” e “campo”, entre “partido e classe”, entre “teoria” e “prática”, entre “ditadura” e “democracia”. Questões que certas tradições acadêmicas tentam abordar fragmentariamente, como “objetos” particulares da economia, da sociologia, da política, da cultura, da história etc.
Cem anos depois, acompanhando a difusão do capitalismo, a maior parte da população trabalhadora mundial é assalariada. Um proletariado que continua “compartilhando” a condição de vítima da exploração capitalista com outra classe, a dos trabalhadores pequenos proprietários. Um proletariado que se tornou mais universal, mas não se tornou mais homogêneo: tanto mundialmente quanto em cada país, segue composto por diferentes frações econômico-sociais (por exemplo: operários e não operários), atravessado por conflitos nacionais, étnicos, de gênero, geracionais, culturais e religiosos. Características que fazem com que o debate sobre as formas de luta e de organização, de comunicação e cultura, especialmente a necessidade de partidos políticos “de novo tipo”, ganhe novamente grande importância no debate político contemporâneo. E como fazer este debate, sem reler o que disse, por exemplo, Lenin?
Há cem anos, como hoje, muitos socialistas lamentavam a divisão nas forças da esquerda, as traições, as vacilações, o ambiente de confusão e divisão existente na classe trabalhadora. E deduziam daí que a revolução socialista seria adiada por muitos anos e décadas, pessimismo reforçado por uma interpretação tosca acerca dos caminhos pelos quais a quantidade se transforma em qualidade.
Outra semelhança fundamental entre hoje e a situação vigente há cem anos: as crises do capitalismo e suas decorrências políticas e sociais, entre as quais a obscena desigualdade. “Voltar aos 17” é também buscar descobrir que condições objetivas e subjetivas fizeram com que uma situação de “defensiva estratégica” fosse convertida numa “ofensiva revolucionária” que marcou a história do século XX.
Para os que vivemos na América Latina e Caribe, há mais uma causa que explica a retomada do interesse no debate sobre o socialismo em geral e sobre a Revolução Russa em particular. Desde 1998 até hoje, vários países da região são governados por partidos que pretendem estar construindo o socialismo ou, pelo menos, caminhando em direção a ele. Isto produziu uma retomada do debate sobre a transição socialista, debate que na América Latina e Caribe é temperado pelos pontos de contato que existem entre o populismo russo do século XIX e a “esquerda populista” do século XXI.
Os populistas russos, ao menos em sua versão clássica, acreditavam que seria possível construir o socialismo sem passar pelo capitalismo, tomando como ponto de apoio as tradições coletivistas do campesinato russo. Lenin iniciou sua trajetória política combatendo essa teoria, mas o curso dos acontecimentos o levou a capitanear um experimento que foi considerado, por alguns de seus adversários no movimento social-democrata, uma variante do “populismo”. Posteriormente, todas as chamadas revoluções socialistas do século XX ocorreram em países em que o capitalismo estava pouco desenvolvido. Recolocando novamente a questão: quais os vínculos entre a construção do socialismo e o desenvolvimento do capitalismo, nos planos da economia, da sociedade, da cultura e da política?
Responder de forma sólida a esta questão supõe revisitar o debate sobre a Revolução de Outubro, sobre o processo de construção da União Soviética, sobre as concepções e as práticas do movimento comunista ao longo do século XX. Debate que está sintetizado em expressões como: “transição”, “socialismo”, “socialismo real”, “ditadura do proletariado”, “estado operário burocraticamente degenerado”, “capitalismo de Estado”, “modo de produção asiático”, “stalinismo”, “totalitarismo”, “social-imperialismo”. Debate que está diretamente relacionado com as diferentes caracterizações que se faz, hoje, acerca da República Popular da China.
No final de 1991, televisões de todo o mundo transmitiram a cena: pela última vez desde então, a bandeira da União das Repú- blicas Socialistas Soviéticas desceu o mastro onde estava hasteada, no Kremlin. Desmoralizando as previsões dos teóricos do “totalitarismo”, a URSS caiu devido à suas próprias contradições internas.
No mundo inteiro, no Brasil e no PT, foram tempos para lembrar que, como tantas outras obras humanas, a Revolução Russa de Outubro de 1917 fora carregada de tragédias e crimes, lama e sangue, dor e violência, imperfeições e debilidades. E que nenhum processo histórico deve ser considerado “irreversível”.
Mas foram tempos também para defender, em certos momentos contra quase tudo e contra quase todos, que diferente de outras obras humanas, a Revolução Russa de Outubro de 1917 fora um esforço titânico para materializar os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Metas algum dia compartilhadas pela burguesia, mas que desde há muito constituem parte do legado e patrimônio da classe trabalhadora.
Hoje, décadas depois do fim da URSS, parece mais evidente que a contribuição global da Revolução de Outubro de 1917 para a humanidade foi positiva. “Convicção” que pode ser sustentada com inúmeras “provas”, entre as quais a contribuição que a Revolução deu para a luta pelos direitos iguais para as mulheres; para a batalha por políticas públicas de saúde, educação, cultura, esportes, habitação e transporte; para a adoção do planejamento econômico; além da contribuição, direta e indireta, para a luta contra o imperialismo, contra o colonialismo, o racismo e o nazismo, assim como a luta em favor da paz. E também, acima de tudo, a tentativa de superar o capitalismo e iniciar a transição socialista em direção a uma sociedade comunista.
Neste ano de centenário, centenas de milhões de pessoas − muitas delas latino-americanas e brasileiras − vão perguntar novamente: qual a herança da Revolução Russa de 1917?
Ao publicar uma segunda edição fac-símile de 1917-1987: Socialismo em debate, a Fundação Perseu Abramo dá uma importante contribuição para ajudar a responder tal questão.


Valter Pomar é professor de relações internacionais na UFABC. Trabalhou no Instituto Cajamar durante 1987 e 1991, nos departamentos de estudos e pesquisas, recursos pedagógicos e também como professor nos cursos de formação política.

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