Este texto foi publicado na edição digital da revista Esquerda Petista número 7.
Centenário
Voltar aos 17
Valter Pomar
Corria o ano de 1986. O PT tinha seis
anos de idade, a CUT três. As duas organizações decidiram investir na formação
política. Com o apoio direto de alguns sindicatos, adquiriram as instalações de
um hotel desativado, situado no município de Cajamar (SP), que fica entre
Jundiaí e São Paulo, na Via Anhanguera km 46,5. Naquele lugar começou a
funcionar o Instituto Cajamar, também conhecido como Inca.
O presidente do Inca era o educador
Paulo Freire. A lista de diretores incluía Arlindo Chinaglia, Avelino Ganzer,
Frei Betto, Gilberto Carvalho, Jorge Coelho, Luis Gushiken, José Luís Gon-
çalves, Luiza Erundina, Olívio Dutra, Paul Singer, Paulo Schilling, Perseu
Abramo, Rui Falcão e Walter Barelli. O cotidiano do Inca era de
responsabilidade de uma coordenação executiva integrada por Osvaldo Bargas,
Aloizio Mercadante, Devanir Ribeiro, Durval de Carvalho, Luiz Azevedo, Miguel
Rupp, Nobuko Kameyama, Pedro Pontual, Regina Festa, Wander Bueno Prado,
Wladimir Pomar e Wilson Santa Rosa.
Faziam parte do Conselho Fiscal do
Instituto Cajamar Maurício Soares de Almeida, Valderi Antão Ruviaro, Djalma de
Souza Bom, José Cicote, Epitácio Luís Epaminondas e Marcos Antonio Vitorino de
Almeida.
Na época, foi uma grande novidade.
Uma “casa de encontros” que não era de propriedade, nem tampouco gerida por
instituições religiosas. Cursos de formação que duravam uma semana ou quinze
dias. Conteúdos abordados de um ponto de vista marxista, numa instituição
dirigida por petistas vinculados à “Articulação dos 113”.
Em 1987, por ocasião do septuagésimo
aniversário da Revolução de Outubro de 1917, o Inca promoveu um seminário
internacional intitulado “70 anos de experiências da construção do socialismo”.
O seminário foi realizado entre os dias 20 a 24 de novembro de 1987. As
palestras e debates foram gravados, transcritos e publicados em um livro
editado pelo economista Carlos Eduardo Carvalho. Intitulado 1917-1987: Socialismo em debate, o livro
foi lançado em agosto de 1988. Seu expediente relaciona, além do supracitado
Carlos Eduardo, os seguintes colaboradores da edição: Marco Aurélio Garcia,
Marcos Piva, Rui Falcão, Valter Pomar e Wladimir Pomar.
A “apresentação” do livro, assinada
pelo setor de publicações do Instituto Cajamar, esclarece que “dificuldades
impostas pelo governo brasileiro na concessão do visto diplomático impediram” a
entrada no país, a tempo, do representante do Instituto de América Latina da
Academia de Ciências da URSS. E a “coincidência de datas entre a realização do
Seminário e o 13º Congresso do PC Chinês impediu a vinda de estudiosos” daquele
país.
O livro traz, ainda, uma relação dos
participantes do seminário, indicando além do nome e sobrenome, o cargo ocupado
à época. A saber: Luiz Inácio Lula da Silva (presidente nacional do Partido dos
Trabalhadores), Luís Carlos Prestes (ex-secretário geral do Partido Comunista
Brasileiro), Aloizio Mercadante (coordenador do departamento de estudos e
pesquisas do Instituto Cajamar), Apolonio de Carvalho (membro do Diretório
Nacional do PT), Benedito de Carvalho (ex-dirigente do PCB e ex-dirigente do
Partido Comunista do Brasil), Camilo Domenes (subdiretor do Centro de Estudos
da América, Havana), Cézar Alvarez (membro do Diretório Regional do PT do Rio
Grande do Sul), Clara Charf (membro do Diretório Regional do PT de SP), Claus
Germer (militante do Partido dos Trabalhadores), Clovis Ilgenfritz (membro do
Diretório Nacional do PT), Daniel Aarão Reis (historiador), David Capistrano
(militante do PT), Eduardo Suplicy (membro do Diretório Nacional do PT), Emir
Sader (historiador), Eneida Soler (presidenta do Sindicato dos Artistas do
Estado de SP), Fúlvio Abramo (Diretor do Centro Mário Pedrosa), Gilberto
Carvalho (presidente do Diretório Regional do PT do Paraná), Jacob Gorender
(historiador, ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário),
Jair Meneguelli (presidente da Executiva Nacional da Central Única dos
Trabalhadores), José Dirceu (secretário-geral do Diretório Regional do PT de
SP), Juan Valdez (chefe do Depar- tamento de América Latina do Centro de
Estudos da América, Havana), Leonardo Boff (teólogo franciscano), Lafaiete
Santos Neves (ex-presidente do Diretório Regional do PT do Paraná), Lúcio
Jimenez (secretário-geral da Central Sandinista de Trabalhadores da Nicarágua),
Luis Favre (membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT),
Luís Flávio Rainho (pesquisador do Centro Ecumênico de Documentação e
Informação), Luiz Gushiken (deputado federal do PT), Marcelo Deda (deputado
estadual do PT de Sergipe), Mário Barbosa (diretor do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema), Marco Aurélio Garcia (diretor
do Arquivo Edgar Leuenroth da Unicamp), Marcos Arruda (pesquisador e educador
popular), Marco Piva (membro do coletivo da SRI do PT), Osvaldo Bargas
(coordenador-geral do Instituto Cajamar), Paulo Azevedo (presidente do
Sindicato dos Metroviários de SP), Paulo Vannuchi (assessor de formação
política do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e Diadema), Paul Singer (membro
da assessoria econômica do DN do PT), Pedro Tonelli (deputado estadual do PT do
PR), Perly Cipriano (presidente do PT do Espírito Santo), Rui Falcão
(secretário de formação política do Diretório Regional do PT de São Paulo),
Selvino Heck (deputado estadual do PT do Rio Grande do Sul), Valter Pomar
(membro do coletivo da Secretaria de Formação Política do PT de São Paulo),
Vicente Paulo da Silva (presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e
Diadema), Vito Letizia (historiador) e Wladimir Pomar (coordenador-geral
adjunto do Instituto Cajamar).
A exposição principal sobre a
experiência soviética foi feita por Jacob Gorender, Leonardo Boff e Vito
Letizia. O debate sobre a experiência chinesa foi aberto por Wladimir Pomar e
Benedito Carvalho, um dos participantes do levante comunista de 1935. O caso
cubano foi apresentado por Juan Valdez, seguido de comentários de Emir Sader e
José Dirceu. A Nicarágua foi tratada por Lucio Jimenez e Marcos Arruda. Depois
das falas principais, ocorreram debates, de que participou grande parte dos
presentes ao seminário.
Ler o livro e recordar as polêmicas
do seminário promovido há 30 anos pelo Instituto Cajamar suscita diversas
questões, entre as quais a sensação de um “debate interrompido”.
Debate interrompido pela ofensiva
neoliberal; pela capitulação de grande parte da social-democracia europeia e do
nacional-desenvolvimentismo latino-americano; pelo colapso da União Soviética e
do tipo de socialismo que havia no Leste Europeu; e pela crise do movimento
comunista. Debate interrompido, também e paradoxalmente, pelos êxitos relativos
da esquerda brasileira, com destaque para o PT, que em 1988 foi o grande
vitorioso das eleições municipais e em 1989 quase venceu, com Lula, as eleições
presidenciais.
Quando a Revolução de Outubro
comemorou seus 80 anos (1997) e seus 90 anos (2007), havia deixado de existir
uma parte importante do mundo sobre o qual discutimos no seminário “70 anos de
experiências da construção do socialismo”. E muitas das questões que então
havíamos debatido, deixaram de ser ou deixaram de parecer essenciais, pelo
menos aos olhos de muita gente.
Nos últimos dez anos, a situação
mudou novamente. A partir da crise mundial de 2008, muitas daquelas antigas
questões voltaram a ser ou pelo menos voltaram a parecer ser essenciais. Sem dúvida
isto tem alguma relação com a impressionante concentração de efemérides. No
espaço de dez anos, entre 2014 e 2024, chegam ao centenário: o começo e o fim
da Primeira Guerra; a Revolução de Fevereiro e a Revolução de Outubro de 1917;
a Revolução Alemã de 1918; a criação da Internacional Comunista, a fundação do
Partido Comunista da China e do Partido Comunista do Brasil; o assassinato de
Rosa Luxemburgo e vários de seus camaradas alemães; o falecimento de Lenin.
Além dos 200 anos de nascimento de Karl Marx e a publicação de livros clássicos
como Imperialismo, etapa superior e O Estado e a Revolução, ambos de Lenin. Mas
para além do “efeito efeméride”, a retomada do interesse no debate sobre o
socialismo em geral e sobre a Revolução Russa em particular tem outras causas.
Em primeiro lugar, porque vivemos um
cenário internacional que possui algumas semelhanças com o que ocorreu no
início do século XX: o declínio da potência hegemônica, a ascensão de novos
polos de poder, o acirramento das contradições intercapitalistas, a importância
do capital financeiro e do imperialismo. Malgrado as óbvias diferenças, o
ambiente de 2017 lembra em vários aspectos aquele que desembocou na Primeira
Guerra Mundial. Vivemos uma profunda crise mundial e momentos assim tornam inescapável
certa “volta aos clássicos”. A Revolução Russa de 1917 é um caso clássico, do
ponto de vista dos que estudam a dinâmica do capitalismo e de suas crises. Um
caso tão clássico quanto o da Revolução Francesa de 1789, neste caso do ponto
de vista dos que estudam a dinâmica do feudalismo e de suas crises.
Em terceiro lugar, muitas das antigas
questões voltaram a ser ou pelo menos a parecer ser essenciais, porque a crise
de 2008 e o que veio depois colocaram com extrema força e urgência o debate
sobre o capitalismo, sobre as crises de acumulação, sobre o capital financeiro,
sobre o papel do Estado, sobre o imperialismo e as guerras. Temas sobre os
quais há contribuições relevantes feitas pelos revolucionários russos, como
Bukarin e Lenin, antes e depois de Outubro de 1917. E, principalmente,
contribuições práticas, tanto originadas da Revolução Russa de 1917 quanto dos
que reagiram a ela.
De maneira mais geral, a análise
marxista sobre o capitalismo voltou à moda. Análise que sempre foi muito cara
para as diferentes tradições socialistas existentes na Rússia − anarquistas,
populistas, social-democratas e comunistas, que dedicaram grande energia ao
debate acerca do modo de produção capitalista, em particular à discussão sobre
seu desenvolvimento e crises.
A história é conhecida: logo depois
da primeira edição de O Capital, foi
publicada uma tradução em russo. A situação excêntrica do Império Russo, um pé
na Ásia e outro na Europa, um pé no feudalismo e outro no capitalismo, um pé no
atraso e outro na modernidade, obrigou os pensadores russos de todos os matizes
a se debruçar sobre a relação desigual entre desenvolvimento econômico e
desenvolvimento político, a dialética entre os diferentes tempos e conteúdos da
(re)evolução política e da (re)evolução econômico-social.
Em quarto lugar, cabe lembrar que a
tradição socialista vitoriosa na Revolução de Outubro (os social-democratas da
fração bolchevique, que em 1918 adotaram o nome de “comunistas”) investiu
grande parte de suas energias no debate sobre o papel do proletariado na luta
pela democracia e pelo socialismo. Num país onde o proletariado era uma parcela
diminuta da população, isto implicou em debater de maneira integrada a rela-
ção entre “proletariado” e “campesinato”, entre “cidade” e “campo”, entre
“partido e classe”, entre “teoria” e “prática”, entre “ditadura” e
“democracia”. Questões que certas tradições acadêmicas tentam abordar
fragmentariamente, como “objetos” particulares da economia, da sociologia, da
política, da cultura, da história etc.
Cem anos depois, acompanhando a
difusão do capitalismo, a maior parte da população trabalhadora mundial é
assalariada. Um proletariado que continua “compartilhando” a condição de vítima
da exploração capitalista com outra classe, a dos trabalhadores pequenos
proprietários. Um proletariado que se tornou mais universal, mas não se tornou
mais homogêneo: tanto mundialmente quanto em cada país, segue composto por
diferentes frações econômico-sociais (por exemplo: operários e não operários),
atravessado por conflitos nacionais, étnicos, de gênero, geracionais, culturais
e religiosos. Características que fazem com que o debate sobre as formas de
luta e de organização, de comunicação e cultura, especialmente a necessidade de
partidos políticos “de novo tipo”, ganhe novamente grande importância no debate
político contemporâneo. E como fazer este debate, sem reler o que disse, por
exemplo, Lenin?
Há cem anos, como hoje, muitos
socialistas lamentavam a divisão nas forças da esquerda, as traições, as
vacilações, o ambiente de confusão e divisão existente na classe trabalhadora.
E deduziam daí que a revolução socialista seria adiada por muitos anos e
décadas, pessimismo reforçado por uma interpretação tosca acerca dos caminhos
pelos quais a quantidade se transforma em qualidade.
Outra semelhança fundamental entre
hoje e a situação vigente há cem anos: as crises do capitalismo e suas
decorrências políticas e sociais, entre as quais a obscena desigualdade.
“Voltar aos 17” é também buscar descobrir que condições objetivas e subjetivas
fizeram com que uma situação de “defensiva estratégica” fosse convertida numa
“ofensiva revolucionária” que marcou a história do século XX.
Para os que vivemos na América Latina
e Caribe, há mais uma causa que explica a retomada do interesse no debate sobre
o socialismo em geral e sobre a Revolução Russa em particular. Desde 1998 até
hoje, vários países da região são governados por partidos que pretendem estar
construindo o socialismo ou, pelo menos, caminhando em direção a ele. Isto
produziu uma retomada do debate sobre a transição socialista, debate que na
América Latina e Caribe é temperado pelos pontos de contato que existem entre o
populismo russo do século XIX e a “esquerda populista” do século XXI.
Os populistas russos, ao menos em sua
versão clássica, acreditavam que seria possível construir o socialismo sem
passar pelo capitalismo, tomando como ponto de apoio as tradições coletivistas
do campesinato russo. Lenin iniciou sua trajetória política combatendo essa
teoria, mas o curso dos acontecimentos o levou a capitanear um experimento que
foi considerado, por alguns de seus adversários no movimento social-democrata,
uma variante do “populismo”. Posteriormente, todas as chamadas revoluções
socialistas do século XX ocorreram em países em que o capitalismo estava pouco
desenvolvido. Recolocando novamente a questão: quais os vínculos entre a
construção do socialismo e o desenvolvimento do capitalismo, nos planos da
economia, da sociedade, da cultura e da política?
Responder de forma sólida a esta
questão supõe revisitar o debate sobre a Revolução de Outubro, sobre o processo
de construção da União Soviética, sobre as concepções e as práticas do
movimento comunista ao longo do século XX. Debate que está sintetizado em
expressões como: “transição”, “socialismo”, “socialismo real”, “ditadura do
proletariado”, “estado operário burocraticamente degenerado”, “capitalismo de
Estado”, “modo de produção asiático”, “stalinismo”, “totalitarismo”,
“social-imperialismo”. Debate que está diretamente relacionado com as
diferentes caracterizações que se faz, hoje, acerca da República Popular da
China.
No final de 1991, televisões de todo
o mundo transmitiram a cena: pela última vez desde então, a bandeira da União
das Repú- blicas Socialistas Soviéticas desceu o mastro onde estava hasteada,
no Kremlin. Desmoralizando as previsões dos teóricos do “totalitarismo”, a URSS
caiu devido à suas próprias contradições internas.
No mundo inteiro, no Brasil e no PT,
foram tempos para lembrar que, como tantas outras obras humanas, a Revolução
Russa de Outubro de 1917 fora carregada de tragédias e crimes, lama e sangue,
dor e violência, imperfeições e debilidades. E que nenhum processo histórico
deve ser considerado “irreversível”.
Mas foram tempos também para
defender, em certos momentos contra quase tudo e contra quase todos, que
diferente de outras obras humanas, a Revolução Russa de Outubro de 1917 fora um
esforço titânico para materializar os ideais de igualdade, liberdade e
fraternidade. Metas algum dia compartilhadas pela burguesia, mas que desde há
muito constituem parte do legado e patrimônio da classe trabalhadora.
Hoje, décadas depois do fim da URSS,
parece mais evidente que a contribuição global da Revolução de Outubro de 1917
para a humanidade foi positiva. “Convicção” que pode ser sustentada com
inúmeras “provas”, entre as quais a contribuição que a Revolução deu para a
luta pelos direitos iguais para as mulheres; para a batalha por políticas
públicas de saúde, educação, cultura, esportes, habitação e transporte; para a
adoção do planejamento econômico; além da contribuição, direta e indireta, para
a luta contra o imperialismo, contra o colonialismo, o racismo e o nazismo,
assim como a luta em favor da paz. E também, acima de tudo, a tentativa de
superar o capitalismo e iniciar a transição socialista em direção a uma
sociedade comunista.
Neste ano de centenário, centenas de
milhões de pessoas − muitas delas latino-americanas e brasileiras − vão
perguntar novamente: qual a herança da Revolução Russa de 1917?
Ao publicar uma segunda edição
fac-símile de 1917-1987: Socialismo em debate, a Fundação Perseu Abramo dá uma
importante contribuição para ajudar a responder tal questão.
Valter Pomar é professor de relações
internacionais na UFABC. Trabalhou no Instituto Cajamar durante 1987 e 1991,
nos departamentos de estudos e pesquisas, recursos pedagógicos e também como
professor nos cursos de formação política.
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