Este
texto é um subsídio para que nossos militantes reflitam sobre as várias
mediações que existem entre nossa ação
cotidiana e nossos objetivos de longo prazo.
Entre
estas mediações, destacamos o papel da análise concreta da realidade concreta,
a análise das classes e da luta de classes, a análise da formação social e
econômica do Brasil, a definição do programa, da estratégia, das táticas, das
formas de luta e organização.
Militância
Frederico Engels -- socialista alemão que escreveu com Karl Marx o
famoso Manifesto Comunista, publicado em 1848 -- dizia que um
trabalhador consciente possui três tarefas permanentes: estudar, organizar e lutar.
Vladimir Lenin -- principal dirigente da Revolução de Outubro de 1917 --
dizia que o segredo da vitória da classe trabalhadora estava na capacidade
de ação coletiva.
Estudo, organização e luta coletiva: estes são os três aspectos que
integram a ação de cada trabalhador e de cada trabalhadora consciente.
Estudar, organizar e lutar coletivamente, de forma cotidiana e
permanente, é o que faz das pessoas militantes.
Militância implica em convencimento individual, engajamento
individual e responsabilidade individual.
Mas uma "uma andorinha só não faz verão".
A ação da classe trabalhadora só tem êxito quando dezenas, centenas,
milhares, milhões de trabalhadores e de trabalhadoras se engajam, se convertem
em militantes.
Os motivos que levam um indivíduo a se engajar são os mais variados: por
exemplo, a influência familiar, a influência dos vizinhos, a influência dos
colegas de trabalho. Acontece muitas vezes de uma pessoa ser envolvida pelos
acontecimentos, no início sem entender direito o que está ocorrendo.
Mas por quais motivos milhões de trabalhadores e de trabalhadoras se
engajam na luta?
Em certo sentido, os motivos que levam milhões de pessoas a se engajar
na luta constituem a somatória de milhões de motivos individuais.
Mas há uma diferença importante.
Todo dia alguns indivíduos despertam para a luta. E todo dia, alguns
indivíduos abandonam a luta, “adormecendo”.
Mas existem momentos na história de um país ou do mundo em que milhões,
dezenas ou até centenas de milhões de pessoas “despertam” ao mesmo tempo.
Isto não ocorre sempre. E quando acontece, constitui um fenômeno muito
mais intenso e qualitativamente superior ao simples despertar individual, que
ocorre todos os dias e que muitas vezes é neutralizado pelo “adormecimento” individual
de tantas outras pessoas.
Em geral, o que motiva o despertar simultâneo de milhões e dezenas de
milhões ao mesmo tempo é uma agressão praticada pelos ricos e
poderosos, algo que passa da conta, algo que ultrapassa os limites do
tolerável, do aceitável, do suportável, do “sempre foi assim e sempre será
assim”.
Quanto milhões, dezenas de milhões ou até centenas de milhões de
trabalhadores e de trabalhadoras passam a estudar, organizar e lutar
coletivamente, é porque chegou a hora em que as grandes mudanças políticas,
sociais e econômicas podem tornar-se realidade.
Para falar de outra forma: as grandes reformas e as grandes revoluções
sociais ocorrem quando as “massas” de ontem tornam-se as militantes de hoje.
Massas
A palavra “massas” é um termo que deve ser utilizado com muito cuidado.
Massa é um tipo de alimento muito típico na gastronomia italiana, que
para ser comestível deve primeiro ser cozinhado em água fervente, transformando
o sabor, a textura e a forma.
Em espanhol, o termo equivalente a massa é pasta.
Um dos significados da palavra pasta em português é uma mistura de algum
pó (por exemplo, farinha) com um líquido (por exemplo, água, leite ou óleo),
resultando daí um estado físico intermediário.
Uma massa de bolo, por exemplo, que poderá ser comida depois de batida e
levada ao forno para cozinhar.
A palavra massa também é utilizada nas ciências, designando a quantidade
de matéria presente em um corpo.
Existe uma unidade padrão para medir a massa, que é o quilograma. A
massa não se altera, mas o peso pode se alterar a depender da força da
gravidade.
Como ficou claro pelos exemplos acima, tanto na culinária quanto na
física, as “massas” são inertes e transformadas por uma ação externa: a
gravidade, a temperatura, a mistura com outros ingredientes.
Por isto, quando estamos falando de pessoas, usar o termo “massas” pode
ser interpretado como uma atitude de desprezo e também de
desconsideração da diversidade.
Afinal, as “massas” populares têm uma grande diversidade de histórias,
hábitos, culturas, sexos, idades, etnias e opções.
Esta diversidade é um fator importante para compreender como reage cada
setor das “massas” a um mesmo estímulo “externo”. Explica, portanto, a
transformação ou não, em que ritmo e profundidade, das pessoas em militantes.
Ou seja: quando estamos falando de pessoas, as “massas” são
heterogêneas. Elas possuem um nível de diversidade e autonomia totalmente
diferente das “massas” do mundo físico e gastronômico.
Isto tudo deve ser levado em conta por quem deseja utilizar a palavra
“massas”.
Isto é importante, entre outros motivos porque a pessoa que hoje é
militante precisa lembrar sempre que algum dia foi parte da “massa”.
Sendo muito comum, aliás, que os militantes surgidos nos momentos de
grande radicalização das massas, serem também mais radicais nos propósitos e
tenham mais “urgência” do que os militantes que despertam para a luta nos
momentos mais mornos da luta de classes.
Motivo pelo qual o militante que se julga “vanguarda” hoje, pode ser
ultrapassado amanhã pelas “massas” de ontem.
Quem já é militante deve trabalhar para que um número cada vez maior de
pessoas estude, organize e lute.
E para atingir este objetivo, é preciso saber lidar com as pessoas que
não são militantes, é preciso saber trabalhar com as pessoas que são “massa”,
aprender os processos e ritmos através dos quais evoluiu o nível de consciência
das pessoas.
Relação militância e massa
Muitos militantes gostam de ser chamados de “vanguarda”.
Na terminologia militar, vanguarda é o destacamento que segue na frente,
que primeiro entra em choque com os inimigos.
Na terminologia política, vanguarda é a organização que indica o rumo da
luta e que dirige os outros.
Já nas artes, na moda e na vida cotidiana, vanguarda é a pessoa ou o
grupo que inaugura novas estéticas e adota novos comportamentos.
Evidente, é muito fácil falar e é muito difícil ser vanguarda. A maioria
dos que se acham “vanguarda” não têm ninguém na sua retaguarda, além de muitas
vezes defenderem ideias e repetirem comportamentos ultrapassados.
Para complicar, só dá para ter absoluta certeza sobre se uma corrente
política é mesmo vanguarda, depois que muita água passar por debaixo da ponte.
Até porque as vanguardas não nascem, elas se formam no curso do processo.
Por este motivo, sugerimos adotar a palavra vanguarda num sentido mais
básico: a militância que se dedica, de maneira cotidiana e permanente, a
trabalhar para que um número cada vez maior de pessoas estude, organize e lute.
Se esta militância tiver êxito no seu trabalho cotidiano, quando ocorrer
de milhões de pessoas despertarem para a luta, estes milhões terão um ponto de
apoio fundamental.
Se nos momentos normais da luta de classe a militância tiver êxito no
seu trabalho de estudar, organizar e lutar, então nos momentos mais quentes da
luta de classe, quando milhões despertarem simultaneamente, as chances de
vitória serão maiores.
Dito de outra forma: a melhor vanguarda é aquela que se dedica a
organizar as massas.
Mas há diferentes maneiras de fazer isto. Há quem consuma todas as suas
energias no trabalho de base, sem enfatizar os vínculos entre este trabalho de
base e os objetivos de longo prazo, a visão de mundo que nos anima e às
organizações que a classe trabalhadora.
O vocabulário da luta
Para organizar melhor e lutar do jeito certo, é fundamental que as
vanguardas estudem (compreendendo por estudar não apenas tomar contato com
conhecimento já produzido, mas também investigar a realidade e produzir
conhecimento novo).
Estudar quem somos, pelo que lutamos, contra o quê e contra quem
lutamos; aprender com quem lutou antes de nós e com os que lutam em outras
regiões do Brasil, da América Latina e do mundo.
Responder as velhas questões e também as novas questões.
Estudar é trabalhar; e trabalhar exige disposição, esforço e técnica.
Um dos aspectos técnicos envolvidos no estudo é o domínio da linguagem.
Cada profissão tem seu vocabulário, um conjunto de termos que os
trabalhadores daquela profissão utilizam para se comunicar.
Qual é o vocabulário da militância? Quais os termos, as palavras, as
categorias, os vocábulos utilizados pela classe trabalhadora na luta por seus
interesses?
Como sempre acontece, o verbo surge da ação, da vida cotidiana da
classe, das lutas que ela desenvolve, muitas vezes tomando as palavras de
empréstimo das demais classes (assim como tomamos palavras de empréstimo de
outros povos, de outras línguas e de outras épocas).
Um bom exemplo disto é a palavra greve.
Segundo alguns estudiosos, a palavra tem origem latina, designando areia
ou cascalho. Estes estudiosos nos informam que a Place de Grève (Praça da
Greve) ficava em Paris, à beira do rio Sena, num ponto em que se acumulava
areia e cascalho. Nesta praça reuniam-se trabalhadores que estavam sem
trabalho, à busca de um emprego. Mais adiante, o termo será empregado não para
designar trabalhadores em situação passiva (parados por falta de um
empregador), mas sim trabalhadores em situação ativa (parado contra seus
empregadores).
O vocabulário da luta é atualizado de forma permanente.
Certas palavras vão mudando de significado. Outras palavras possuem
diferentes significados, a depender do país, do momento da história, do setor
da classe que as utiliza.
Por exemplo: governo e poder.
É muito comum ouvirmos algumas pessoas falarem que “Hugo Chavez chegou
ao poder em 1998”, “Lula chegou ao poder em 2002”.
Ao que outras pessoas respondem: “nunca chegamos ao poder, apenas
conquistamos o governo”.
E outras lembram, ainda, que não basta que um partido chegue ao poder, é
necessário que a classe trabalhadora chegue ao poder.
Por trás destas três frases e de suas variantes, há visões distintas
acerca do que seja a política, o poder, o Estado, o governo e os processos
eleitorais, a relação entre os partidos e as classes etc.
A prática como critério
Um dos desafios que enfrentamos, quando se trata de estudar, é dominar o
vocabulário “técnico” com o qual descrevemos a luta e planejamos nossa
intervenção nela.
Há várias maneiras de fazer isto. A que consideramos mais adequada é a
que toma como referência -- como “critério da verdade” -- a realidade.
Ou seja: cada um pode “significar” como quiser termos como classes
sociais e luta de classes, Estado e política, partidos e sindicatos,
conjuntura, tática e estratégia.
Mas para que haja diálogo e ação comum, é preciso que muitas pessoas
signifiquem da mesma forma. Ou seja, é preciso que muitas pessoas entendam da
mesma forma determinados termos.
E para que isto seja possível, é preciso que aqueles termos expressem
algo em comum para muitas pessoas. E este “algo em comum” é, em última análise,
a realidade, a prática social, a ação e o produto da ação de dezenas e centenas
de milhões de pessoas.
Com um detalhe importante: a realidade social se transforma o tempo
todo. E esta transformação ocorre antes de ser traduzida em palavras, em
conceitos, em categorias, termos e vocábulos. Por isto é comum que utilizemos
palavras antigas (que designam fenômenos passados) para denominar
acontecimentos do “presente” e previsões que fazemos sobre o futuro.
Como dizia um poeta alemão, a coruja do conhecimento alça voo ao
anoitecer. As palavras que utilizamos para falar do presente e do futuro
tiveram origem no passado e designavam originalmente realidades passadas.
Um exemplo disto: a palavra utopia. O termo é de origem grega: u-topos,
não lugar, um lugar que não existe. Foi utilizado como título para um livro
publicado por volta de 1516 (há 500 anos, portanto).
Naquele livro, Thomas Morus criava um personagem que descrevia uma
sociedade existente em uma ilha a qual chegara através de um naufrágio.
Portanto, uma sociedade que era contemporânea aos personagens do livro e também
aos leitores do livro.
Pois bem: desde o século 19 até hoje o termo utopia é muito utilizado
para designar uma sociedade... futura!!!
Aqui se faz necessário falar de um “detalhe” importante: a ação humana
faz parte da realidade, tanto como observadora quanto como construtora da
realidade.
Se muitos humanos acreditarem em algo e organizarem-se em função desta
crença, isto gera uma realidade, mesmo que aquela crença seja fantástica,
ficcional, artificial, ilusória, um mito. As ideias, quando são incorporadas
por muita gente, convertem-se em força material.
Aliás, um filósofo alemão do século 19 dizia que não foi Deus que criou
o homem, foi o homem que criou Deus.
Noutras palavras: os seres humanos criaram vários deuses, igrejas e
doutrinas que serviram como linguagem para expressar determinados interesses
sociais durante muitos séculos. Os deuses podem não existir, mas as igrejas e
os movimentos religiosos existem, assim como existem e atuam aquelas milhões de
pessoas que são crentes.
Vocabulário e classe social
Antes de existir o vocabulário da luta da classe trabalhadora, existiu o
vocabulário da luta dos burgueses.
Antes disto, o vocabulário que expressava os interesses dos senhores
feudais (e também dos que se opunham aos feudais) era um vocabulário religioso.
Foram as revoluções burguesas (nos séculos 17, 18 e 19) que “criaram” um
vocabulário político laico.
Entre 1789 e 1917, a classe trabalhadora de todo o mundo utilizou um
vocabulário político surgido principalmente da revolução francesa de 1789.
O exemplo clássico disto: as palavras esquerda e
direita, bem como a expressão partidos políticos.
A revolução francesa, por sua vez, foi buscar estes e outros termos
políticos na antiguidade grego-romana. Por exemplo: democracia, república e
proletariado.
Mas também resgatou e adaptou termos utilizados por movimentos
religiosos, econômicos e políticos dos séculos anteriores!!!
Partindo do vocabulário surgido da grande revolução francesa de 1789, o
movimento da classe trabalhadora ao longo do século 19 foi “criando” -- o que
geralmente significa resignificar e/ou customizar -- seus próprios termos.
É o caso de palavras como greve, proletariado, socialdemocracia,
trabalhismo, anarquismo, populismo, cooperativismo, socialismo e comunismo.
Com a revolução russa de 1917 surgiu um novo paradigma: até então, o
vocabulário político tinha como referência a revolução francesa de 1789. A
partir de 1917, passou a existir uma nova referência.
Processo semelhante ocorreria com outras revoluções, que pelo seu
impacto na realidade converteram-se em fonte de transformação, de inspiração,
foram tomadas como modelo ou exemplo.
A partir de 1917 e até hoje, o vocabulário da luta continuou mudando.
Mudanças no capitalismo, mudanças na luta da classe trabalhadora,
surgimento (ou reconhecimento da existência) de outros setores sociais e de
outras questões, diferentes tentativas de transição socialista, além de muitas
derrotas, todas estas novidades se expressaram em palavras velhas ou novas,
assim como em inventos como é o caso do termo neoliberalismo.
Portanto, estudar o vocabulário da luta não é a mesma coisa que estudar
matemática básica. Podemos dizer que é mais parecido com o estudo da literatura
ou da pintura, em que uma mesma obra pode gerar diferentes percepções e
avaliações, sendo sempre necessário distinguir entre os aspectos “objetivos” e
os aspectos “subjetivos” da obra.
E poucas vezes é possível chegar a um acordo, embora seja possível pelo
menos entender o que cada um quer dizer.
Com todos estes cuidados, quais são os termos fundamentais que precisam
ser conhecidos por quem deseja organizar melhor e lutar melhor? Que vocabulário
básico precisa ser dominado pelos militantes, lutadores, revolucionários?
Alguns dos termos essenciais são: classes sociais, luta de classes,
formação social, modo de produção, Estado, politica, partido político, reforma,
revolução, estratégia, tática, conjuntura.
Não há definições universais para cada um destes termos. O que veremos a
seguir é -- mais que um dicionário – um guia para estudo.
Classes sociais
O que diferencia os seres humanos de outros animais? Fundamentalmente a
capacidade de transformar a natureza, ou seja, o trabalho.
Temos aqui uma interessante história, que envolve o uso da mão; a
extensão da mão em ferramenta; a ferramenta combinada com a ação coletiva,
convertendo um animal fisicamente frágil em um caçador poderoso; a coleta e a
caça convertendo-se pouco a pouco em criação e reserva; o desenvolvimento de
novos conhecimentos e novas ferramentas, como o fogo; a constituição de
agrupamentos cada vez mais numerosos e uma crescente divisão de trabalho entre
os integrantes deste agrupamento.
Em algum ponto desta história originária, a divisão de funções técnicas
serviu de base para uma divisão social mais permanente, que nos acompanha até
hoje: a divisão entre produtores e proprietários.
Resumindo de outro jeito a mesma trajetória: os dois elementos básicos
de qualquer sociedade são as relações que os seres humanos estabelecem entre si
e as relações da humanidade com a natureza, para produzir e reproduzir suas
condições de existência.
Note-se que os seres humanos se convertem em seres humanos, na medida em
que agem socialmente, em comunidade, em humanidade.
As relações que os seres humanos estabelecem entre si no processo de
produção podem ser de cooperação e subordinação. Que por sua vez desdobram-se
em conflitos e lutas.
Ou seja: as relações que os seres humanos estabelecem entre si, no
processo de produção, envolvem simultaneamente cooperação, subordinação e
conflito.
Ao longo da história, estes tipos estiveram presentes em proporções que
foram variando.
Numa fábrica moderna, por exemplo, existe alto nível de cooperação entre
os trabalhadores (e em alguma medida também entre estes e os capitalistas). Ao
mesmo tempo há alto nível de subordinação dos trabalhadores aos capitalistas.
E, portanto, graus variados de conflito entre os trabalhadores e os capitalistas,
indo das reclamações às sabotagens, das greves a outros atos de insubordinação.
Na sociedade atual, não sobreviveríamos sem água e energia elétrica, que
são produto de um alto nível de cooperação, de subordinação e de conflito. Como
sabemos, em sociedades tecnicamente capazes de produzir e fornecer água e luz
para todos/as, o acesso não é universal.
O acesso à água depende de diferentes níveis de cooperação e
subordinação, conflito e luta, tanto na produção quanto na distribuição.
É importante lembrar sempre que as relações humanas não se limitam ao
processo de produção e reprodução das condições materiais de existência.
Mas como não existe sociedade sem produção, as relações de produção
constituem as relações fundamentais, que influenciam todas as demais.
Ao longo da história, podemos identificar vários tipos de relações de
produção.
As mais comuns foram a escravidão, a servidão e o assalariamento.
Embora seja óbvio, vale lembrar: uma relação de produção é uma...
relação, uma unidade de contrários: se há escravidão, há escravizados e
senhores de escravizados; se há servidão, há servos e senhores; se há
assalariamento, há trabalhadores assalariados e capitalistas.
Qual o nome que damos para estes “partes”, estes grupos de pessoas que
ocupam um mesmo lugar numa determinada relação social de produção? Classes
sociais.
E qual o nome damos para a relação que estes grupos sociais estabelecem
entre si? Luta de classes.
Esta luta se exprime das mais diversas maneiras e nos mais diferentes
espaços.
Quando um patrão e um empregado firmam um contrato, há luta de classes.
No processo de produção – inclusive na definição sobre o direito de ir ao
banheiro -- há luta de classes.
A luta de classe também está presente nas definições públicas e privadas
que decidem como será o transporte do trabalhador até sua casa, como serão suas
condições de moradia, de saúde, de educação, de cultura e lazer.
De igual maneira, a luta de classes está presente nas lutas sindicais,
nas batalhas eleitorais, nas definições de governo e parlamentares, em cada ato
cotidiano da vida pública e também da vida privada. Inclusive nas telenovelas,
nas missas, no esporte.
As pessoas podem ou não ter consciência dista, mas numa sociedade
dividida em classes sociais, tudo que fazem ou deixam de fazer está atravessado
pela luta de classes.
Ao longo da história não existiram sempre as mesmas classes sociais,
portanto a luta de classes nem sempre foi a mesma.
Claro que há semelhanças: os escravizados, os servos e os assalariados
têm em comum o fato de serem produtores subordinados à exploração dos
proprietários. Da mesma forma, senhores de escravizados, senhores de terra e
senhores de capital têm em comum o fato de serem proprietários não-produtores
que exploram os produtores diretos.
Mas há diferenças muito importantes, motivo pelo qual falamos que há não
apenas diferentes classes, mas sociedades diferentes, modos de produção
diferentes.
Um exemplo destas diferenças: o escravizado era tratado como
propriedade, o assalariado é considerado uma pessoa livre.
Outro exemplo destas diferenças: em geral, o escravocrata compra e vende
tanto os trabalhadores quanto os bens materiais produzidos por eles; o senhor
feudal não é dono dos servos da gleba, mas se apropria da maior parte do que
eles produzem; o capitalista se apropria da maior parte do valor produzido pelo
assalariado para acumular e reproduzir, de forma ampliada, o... capital.
Numa mesma sociedade, podem coexistir diferentes tipos de cooperação,
subordinação e conflito. É o predomínio de uma determinada combinação destas
variáveis que define a sociedade como um todo.
Exemplo: no Brasil, por volta de 1850, era a exploração do trabalho
escravo, a dificuldade em continuar importando “peças escravas”, as fugas e
revoltas, a organização de quilombos e o abolicionismo que determinavam o curso
geral da sociedade.
Já no Brasil, por volta de 1950, era a exploração do trabalho
assalariado, as reivindicações, lutas e greves dos trabalhadores, e a
repercussão disto junto aos demais setores, que determinavam o curso geral da
sociedade.
Tanto num caso como noutro, ao lado da escravidão e do assalariamento,
respectivamente, existiam outros tipos de relações de produção. Mas havia uma
relação que era dominante. Noutras palavras, havia um modo de produção que era
dominante.
Falamos em modo de produção comunista primitivo, modo de produção
escravista, modo de produção feudal e modo de produção capitalista exatamente
para deixar claro qual a relação de produção que predomina (e, por decorrência,
que tipo de cooperação/subordinação/conflito predomina).
Mas devemos sempre lembrar que nas sociedades realmente existentes, é
comum encontrarmos vários modos de produção coexistindo. E não apenas isto: em
sociedades onde predomina um determinado modo de produção, é comum encontrarmos
este modo de produção existindo sob diferentes formas.
Por exemplo, um capitalismo predominantemente agrário, ou
predominantemente industrial, ou predominantemente financeiro etc.
Tanto em 1950 quanto em 2016, o capitalismo é o modo de produção
predominante nos EUA, Inglaterra, Brasil e Índia (em todos predomina a
exploração do trabalho assalariado), mas nestes quatro países há sociedades com
semelhanças mas também com muitas diferenças.
Nas sociedades onde predomina o modo de produção capitalista, é comum
encontrarmos outras classes sociais, além dos casos extremos de proprietários
capitalistas não-produtores e produtores assalariados não-proprietários.
Por exemplo, os artesãos de ontem e os pequenos-proprietários urbanos e
rurais de hoje.
Assim como é comum encontrarmos grandes diferenças no interior das duas
classes sociais fundamentais. Diferenças tão grandes, que muitos autores tratam
uma fração da classe trabalhadora, como se fosse uma classe social autônoma: a
“classe média”.
Para dar conta destas diferentes combinações, dessas diferenças que
existem entre sociedades em que predomina um mesmo modo de produção, é que
utilizamos o termo formação social (alguns preferem falar de formação
socioeconômica).
Por exemplo: a formação social de qualquer país da América Latina na
primeira metade do século 20 é diferente da formação social existente neste
mesmo país nos dias de hoje.
Importante perceber que os conceitos de modo de produção e de formação
social “derivam” dos conceitos de classe e luta de classes.
Dizendo de outra maneira: são as relações de produção que os seres
humanos estabelecem entre si, para produzir e reproduzir as suas condições
materiais de existência, portanto são as classes sociais e a luta de classes
que existem em cada época e lugar, que definem qual “formação social” existe e
qual “modo de produção” predomina.
Por isto, a questão básica que deve ser respondida sempre é: quais são
as classes e como lutam entre si? Pois uma classe social nunca existe sozinha.
Se todas as pessoas fizessem parte de uma única classe, não haveria classes nem
luta de classes...
Estado e luta de classes
Onde há classes, há luta de classes. Notem que isto é diferente de falar
que “onde há tribos, há luta pelo controle do território”.
Nas épocas originárias, havia luta entre os seres humanos, por exemplo
entre as diferentes tribos.
Mas esta luta era diferente da luta de classes, que surgiu quando as
sociedades se dividiram internamente entre produtores não-proprietários e
proprietários não-produtores.
Quando uma sociedade está dividida em classes, isto significa dizer que
uns exploram outros. E para que a exploração se converta em parte normal da
vida cotidiana, é preciso que haja “argumentos” fortes para que prevaleça um
determinado ponto de vista: o controle das armas e o controle das mentes, sendo
que este último inclui a inexistência (ou desconhecimento) de alternativa
melhor.
Ao longo de séculos, as diferentes classes dominantes desenvolveram
mecanismos, instrumentos, discursos, hábitos voltados a converter a exploração
e a dominação em parte do cotidiano. O “estado normal” das coisas seria a
divisão entre ricos e pobres, senhores e escravos...
Deste processo milenar surgiu o que hoje chamamos de Estado, uma
instituição construída pela luta entre as classes sociais, uma instituição que
foi pouco a pouco assumindo um duplo propósito:
a) impedir que os conflitos inerentes a uma sociedade dividida por
interesses antagônicos paralisem esta sociedade;
b) ao fazer funcionar uma sociedade dividida em classes, perpetuar esta
divisão em benefício dos interesses essenciais da respectiva classe dominante.
Há tantos Estados quanto há sociedades.
Podemos, para fins didáticos, falar em Estado escravista, Estado feudal
e Estado capitalista. Mas é preciso ter claro que estas palavras expressam algo
tão óbvio quanto saber qual a cor do cavalo branco de Napoleão. Ou
seja: cada tipo de ordem social é protegida por um determinado tipo de Estado.
Mais importante do que saber isto é conhecer como a
classe dominante faz, em cada sociedade concreta, para proteger seus interesses
essenciais.
Dito de outra forma: como faz para impedir que a luta de classes --
inerente e inevitável em uma sociedade dividida por interesses de classe
antagônicos – prejudique os interesses da classe dominante.
A resposta é intuitiva: através da cooperação e da subordinação.
Utilizando outras palavras: através do convencimento e da dominação. Ou
ainda: através das palavras e das armas.
Como por definição os dominados são sempre em maior número, a forma
“normal” de fazer uma sociedade funcionar “em tempos normais” precisa estar
baseada no convencimento dos dominados pelos dominantes.
Para usar outros termos, a forma “normal” de fazer uma sociedade
funcionar tem que estar baseada no consentimento, na hegemonia, no convencer as
maiorias a seguir as opiniões das minorias.
Em tempos normais, o método normal não pode ser a subordinação
explícita, a dominação, a repressão militar.
Portanto, se queremos entender como uma classe dominante prevalece por
tanto tempo sobre um número incrivelmente maior de pessoas, é preciso conhecer
os mecanismos através dos quais a classe dominante consegue que uma maioria de
explorados aceite, tolere e coopere com sua própria exploração.
Aqui se faz necessário compreender a força do hábito (“sempre foi e
sempre será assim”), o papel do racismo (“naturalizando” a inferioridade de um
setor social frente a outro), o papel das religiões oficiais (definindo
hierarquias e estimulando o conformismo), o papel da cooptação (confrontar
africanos escravizados contra indígenas, brancos pobres contra escravizados
negros, trabalhadores locais contra migrantes, trabalhadores homens contra
mulheres etc.), o papel do medo (inclusive o medo da fome).
Estes e outros mecanismos vão se tornando mais sofisticados e poderosos,
à medida que o tempo vai passando.
Basta pensar no que era o Estado escravista e compará-lo com o Estado
capitalista, ou pensar no Estado existente nos tempos da colônia e o Estado
existente hoje.
O Estado capitalista
Por qual motivo o Estado foi se tornando mais sofisticado e poderoso,
seja no que diz respeito aos mecanismos de convencimento, seja no que diz
respeito aos mecanismos de dominação?
Entre outros motivos porque a sociedade se tornou mais complexa,
tornando cada vez mais difícil impedir que os conflitos de classe paralisem
esta sociedade.
Evitar que a sociedade capitalista seja paralisada pelas crises do
próprio capitalismo exige cada vez mais Estado, exige o que chamamos de um “Estado
ampliado”, mesmo que este Estado sirva essencialmente para cobrar tributos e
transferir recursos para o capital financeiro.
Acontece que a ampliação do Estado -- ampliação indispensável para que
ele possa cumprir o papel de estabilizar o funcionamento de uma sociedade cada
vez mais conflitiva – tem aspectos que são, em si mesmos, potencialmente
conflitantes com o objetivo de usar o Estado para beneficiar os interesses
essenciais da respectiva classe dominante.
De maneira geral, o Estado capitalista é mais “ampliado” que o Estado
feudal e o Estado escravista. Também de maneira geral, o Estado capitalista no
século 21 é mais ampliado do que o Estado capitalista no século 19.
Parte desta ampliação implica em contratar um grande número de
funcionários públicos, que não têm origem na classe dominante. O que introduz
contradições.
Basta pensar na diferença de comportamento entre as cavalarias formadas
por nobres, as tropas formadas por mercenários e os exércitos formados por
alistamento.
Outra parte da ampliação do Estado consiste em dar a outras classes
sociais os meios de interferir em algumas decisões do Estado, por exemplo:
elegendo presidentes, parlamentares e juízes.
Óbvio que este tipo de ampliação introduz contradições no papel do
próprio Estado.
A ampliação do Estado deixa cada vez mais clara a diferença entre duas
dimensões da ação estatal: aquela destinada a fazer funcionar uma
sociedade cada vez mais complexa e coletiva (por exemplo, o SUS, a
educação pública, o controle de trânsito) e aquela destinada a preservar
os interesses da classe dominante (as forças armadas, as polícias,
o judiciário).
A ampliação do Estado, além de deixar cada vez mais claras aquelas duas
dimensões, reforça a contradição entre elas.
Esta contradição se manifesta de maneira mais aguda nos períodos de
crise e/ou de baixo crescimento econômico.
Nestes períodos, os recursos são escassos e a luta por eles é maior. Por
exemplo: mais impostos ou menos impostos? Impostos para pagar juros ou para
financiar políticas sociais?
Esta contradição potencial se manifesta também quando o eleitorado dá
vitória a governos e parlamentos contrários, em maior ou menor medida, ao status
quo.
Estado e democracia
Quando isto acontece, ficam claras as diferentes interpretações que cada
setor da sociedade dá para o termo democracia.
Esta palavra tem um significado muito forte para a maioria das pessoas,
significado geralmente carregado de significados positivos.
Democracia seria o governo da maioria, portanto o oposto de uma
ditadura.
Mas quando observamos ao longo da história, veremos que nem sempre foi
assim.
Na origem, aliás, democracia era o governo dos homens proprietários de
escravos.
E durante muito tempo, não se exigia de um governo democrático que fosse
democrático para todos, pois durante parte do século 19 e 20, o “povo cidadão”
não incluía todos os habitantes adultos.
À medida que a luta da classe trabalhadora foi conquistando o direito de
votar e ser votado extensivo a todos as pessoas adultas, homens e mulheres,
independente de raça, religião e propriedade, a classe dos capitalistas foi
agindo para impedir que este direito universal de voto afetasse seus interesses
fundamentais.
Esta ação dos capitalistas consiste, por exemplo, em desestimular a
participação política, criar dificuldades para o registro eleitoral, corromper
o processo através do dinheiro e da mídia, cooptar os partidos e os eleitos de
esquerda, sabotar os governos de orientação popular e, no limite, praticar
magnicídios e golpes de Estado.
Ou seja: a democracia existente no capitalismo é plenamente democrática
apenas para uma parte da sociedade. Para a classe dominante, existe muita
democracia. Para a classe dominada, existe pouca democracia. O que,
especialmente nos momentos de crise, pode ser dito assim: em alguns momentos e
para alguns setores sociais, a democracia capitalista não passa de uma ditadura
dos capitalistas.
Esta constatação traz muitas implicações para a ação política dos
partidos vinculados à classe trabalhadora.
A luta pelo poder de Estado
A principal implicação é a seguinte: os partidos ligados aos
capitalistas não lutam pelo poder, pois eles já o possuem.
Os partidos capitalistas são instrumentos para ajudar na gestão dos
negócios do Estado, um dos instrumentos para selecionar o pessoal que vai gerir
a máquina estatal. E nem sempre são o instrumento principal.
Na história de países como o Brasil, a Venezuela e a Argentina, por
exemplo, as forças armadas e as grandes empresas de comunicação já demonstraram
ter, em algumas situações, maior importância do que os partidos.
Já os partidos ligados à classe trabalhadora estão diante de uma
disjuntiva.
Podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a participar
da gestão da máquina do Estado; ou podem ser um instrumento para ajudar a
classe trabalhadora a se converter em poder de Estado.
Claro que na luta cotidiana, não há contradição absoluta entre estes
dois objetivos.
Quem luta contra o capitalismo pode e deve, também, lutar por melhorar a
vida aqui e agora, inclusive os salários, as condições de trabalho. Assim como
pode e deve lutar por reformas democráticas, ou democrático-burguesas (agrária,
urbana, política, sanitária, educacional, tributária).
Mas também pode e deve lutar pelo fim do capitalismo, o que conduz a
lutar por reformas mais profundas, democrático-populares e socialistas (que
incluem a supremacia popular sobre o Estado, a supremacia das empresas estatais
nas áreas econômicas estratégicas, a orientação do Estado sobre o mercado e
sobre o conjunto do desenvolvimento econômico e social, a hegemonia da
orientação democrático-popular na educação, saúde e outros serviços e questões
sociais).
Mas embora as duas dimensões citadas nos parágrafos anteriores possam
ser combinadas -- ajudar a classe trabalhadora a participar da
gestão da máquina do Estado e ajudar a classe trabalhadora a
se converter em poder de Estado -- existe sempre uma
contradição potencial entre os dois objetivos (governo e poder), pois no limite
eles podem corresponder a metas diferentes: reforma ou revolução, capitalismo
ou socialismo.
E os caminhos que levam a uma e a outra meta não são exatamente os
mesmos, fato que fica claro no dia-a-dia, mas principalmente nos momentos de
crise aguda da sociedade.
Por exemplo: aqueles que têm como objetivo final lutar por reformar o
capitalismo, tendem a se integrar aos mecanismos do Estado.
As eleições se convertem no seu objetivo principal, seus partidos passam
a ser financiados da mesma forma que os partidos burgueses, a vida interna de
suas organizações vai ficando cada vez mais tradicional e seu programa é
influenciado cada vez mais pelos capitalistas e seus interesses.
Mas atenção: não se deve medir ninguém, partido ou pessoa, pelo que ela
diz ou acha de si mesma. A prática é o critério da verdade.
Assim, às vezes acontece o seguinte: partidos que dizem que tem como
objetivo final a revolução e socialismo, mas na prática ase limitam a lutar por
reformar o capitalismo. E como é assim, acabam também se integrando aos
mecanismos do Estado.
Por isto o debate estratégico é tão importante: para escolher os
caminhos a seguir, na luta de classes.
Estratégia em debate
Entre os que valorizam as experiências dos governos progressistas e de
esquerda iniciada em 1998, com a eleição de Hugo Chavez para a presidência da Venezuela,
existem diferentes pontos de vista, que dizem respeito não apenas às
estratégias passadas, mas também à qual deva ser a estratégia no período em que
estamos e futuramente.
Estas diferentes visões às vezes são expressas num mesmo vocabulário (as
pessoas concordam quanto ao significado das categorias, conceitos e termos, mas
discordam no mérito); outras vezes são expressas através de vocabulários
distintos, em que uma mesma palavra ganha significados distintos ou
simplesmente não é adotada.
A palavra “estratégia” tem um significado originalmente militar, a
saber: o conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma guerra.
Uma guerra é composta de várias batalhas. A estratégia é a maneira de
articular entre si batalhas, com a finalidade de ganhar a guerra.
Já a tática é o conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma
batalha.
O termo estratégia exige, portanto, uma definição preliminar: de que
“guerra” estamos falando?
Responder a esta questão implica em definir inimigos, aliados e objetivos
estratégicos.
No nosso caso, a “guerra” de que falamos é a luta entre a classe dos
trabalhadores assalariados e a classe dos empresários capitalistas.
É legítimo falar de “guerra”, quando falamos da luta de classes entre
trabalhadores e capitalistas?
Sim, não tanto para destacar o caráter violento da luta, mas
principalmente para acentuar o componente de dominação envolvido no processo e,
portanto, para deixar claro que se pretende alterar a relação fundamental entre
as partes em luta.
Embora capitalistas e assalariados existam há mais tempo, foi nos
séculos 19 e 20 que foi predominando, no interior de cada país e no conjunto do
mundo, um tipo de sociedade baseado nas relações de produção entre aquelas duas
classes.
Hoje o chamado capitalismo é dominante, em escala local e global.
Evidentemente, nem o capitalismo é determinado apenas pela relação entre
capitalistas e assalariados; nem os destinos de cada sociedade e do mundo são
determinados apenas pelos rumos do capitalismo.
Mas ambos os fenômenos (o capitalismo; a luta de classes entre
capitalistas e trabalhadores) são variáveis fundamentais para compreender o
conjunto dos conflitos sociais dentro de cada país e o conjunto dos conflitos
internacionais.
Por isto é correto falar de uma classe determinada, ao invés de adotar
expressões genéricas como “o povo”, “os explorados”, “os oprimidos” ou “os
excluídos”.
Tais categorias genéricas expressam fenômenos reais, tem utilidade
analítica e são muito úteis na retórica política, mas não são adequadas para
precisar o conteúdo das definições estratégicas mais gerais.
Portanto, estratégia é o conjunto de ações que a classe dos
trabalhadores assalariados desenvolve para ganhar a guerra que trava contra a
classe dos capitalistas.
A classe dos trabalhadores assalariados não é homogênea: sua formação
(no duplo sentido: sua história e sua composição) varia de região para região,
e varia de época para época.
Em cada momento dado, há ao mesmo tempo diferentes classes trabalhadoras
assalariadas convivendo, assim como diferentes frações da classe trabalhadora
assalariada convivendo.
Isto pode ser nítido em âmbito internacional (os trabalhadores
assalariados de um país vis a vis os trabalhadores assalariados de outros
países); mas também ocorre em plano nacional, o que nem sempre é devidamente
considerado.
A saber: a classe trabalhadora assalariada possui diferentes “frações”
internas, em função de fatores “objetivos” como a região, a idade, o sexo, o
ramo de atividade; e em função de fatores “subjetivos” como a experiência
adquirida na própria luta de classe.
Na prática, isto significa que quando nos referimos à “estratégia da
classe dos trabalhadores assalariados”, estamos nos referindo à estratégia que
defendemos deva ser assumida e praticada por esta classe, mas que nunca é a
estratégia de todos os integrantes da classe, pois sempre haverá diferenças no
interior da classe que resultarão em diferentes posições políticas, portanto
diferentes estratégias.
A mais geral destas diferenças políticas existentes no interior da
classe dos trabalhadores assalariados consiste no seguinte: em todo momento, o
conjunto da classe está submetida à exploração, mas apenas uma parte da classe
reage coletivamente a isto.
Quando ocorre, a reação coletiva pode ter dois propósitos fundamentais:
o de melhorar as condições de vida da classe, nos marcos do capitalismo; e/ou o
de “mudar de vida”, superando o capitalismo.
Ambos os propósitos (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”) exigem
enfrentar o capitalismo. Os dois propósitos podem ser apresentados sob a forma
de raciocínios estratégicos, que historicamente foram denominados como
“estratégia reformista” e “estratégia revolucionária”.
Neste caso, a denominação -- “reformista”, “revolucionário” -- diz
respeito ao objetivo final que se persegue, não aos caminhos utilizados.
É por isto que – na prática histórica – vemos pessoas que se definem
como revolucionárias dedicando a maior parte do seu tempo militante à educação
política, à luta sindical, à atividade parlamentar ou governamental.
E vemos, também, pessoas que se definem como reformistas envolvidas em
guerrilhas, guerras de libertação nacional e outros tipos de mobilizações
sociais e politicas extremamente radicais.
Há, no interior da classe trabalhadora, vários pontos de vista, vários
objetivos estratégicos, portanto várias estratégias.
Estas estratégicas desdobram-se, em alguns casos, em alianças com outras
classes. Por exemplo, alianças estratégicas com setores que mantém conflitos
com o capitalismo, como é o caso dos trabalhadores que são pequenos
proprietários, urbanos ou rurais, entre os quais também há quem se proponha
enfrentar o capitalismo, seja para conviver com ele em melhores condições, seja
para superá-lo.
Em tese, estas variadas estratégias podem ser concorrentes, mas não
precisam ser inimigas, uma vez são estratégias adotadas por diferentes frações
da classe dos trabalhadores assalariados.
Na prática, entretanto, ocorrem situações em que o conflito entre
diferentes estratégias transforma-se num conflito frontal. É o caso, por
exemplo, quando determinada estratégia conduz a alianças estratégicas com a
classe dominante.
Diferentes estratégias
Sendo estratégia o nome que damos para o conjunto de ações que a classe
dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para superar o capitalismo,
então estas ações podem ser definidas como basicamente três: estudar, organizar
e lutar.
O “estudar” significa fundamentalmente compreender o funcionamento do
capitalismo e o que entendemos por superar o capitalismo.
Consideramos que este é um aspecto fundamental do debate estratégico.
A superação do capitalismo exige uma reorganização social profunda,
tornando possível que aqueles que produzem a riqueza social decidam como
produzir, o que produzir e como distribuir esta riqueza social. É isto que
entendemos por socialismo e, portanto, quando nos referimos a superar o
capitalismo estamos falando de construir o socialismo.
Aceita esta premissa, então estratégia é o nome que damos para o
conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver
para construir o socialismo.
Fica clara, nesta definição, que existe uma distinção formal entre o
objetivo final (construir o socialismo) e a estratégia propriamente dita (o
conjunto de ações).
Falamos de distinção formal, porque evidentemente há uma relação entre
meios e fins.
No que diz respeito ao objetivo final, ele pode ser entendido de duas
maneiras diferentes: 1) “construir o socialismo” como dar início à construção
do socialismo; 2) “construir o socialismo” como construir uma sociedade
socialista plena, portanto, superar completamente o capitalismo.
Esta distinção pode ser apresentada de duas maneiras, nos seguintes
termos: 1) transição ao socialismo e socialismo pleno; 2) transição socialista
e comunismo.
Pensar a estratégia tendo como objetivo final uma sociedade socialista
plena (aquilo que Marx e Engels denominavam comunismo) nos colocaria diante do
seguinte desafio: imaginar um processo em escala mundial, com a duração de
várias décadas ou séculos.
Como isto seria tão genérico quanto não operacional, preferimos pensar a
estratégia como uma conduta que tem como objetivo iniciar a construção do
socialismo (ou, noutros termos, iniciar a transição socialista).
Portanto, entendemos por estratégia o conjunto de ações que a classe dos
trabalhadores assalariados deve desenvolver para iniciar a construção do
socialismo. Ou, dito de outra forma: para poder dar início à transição
socialista.
Estratégia e socialismo
O que significa “construção do socialismo”?
Alguns compreendem que a construção do socialismo começa quando um
trabalhador adere à sua organização coletiva de classe, quando a classe
trabalhadora cria e fortalece estas organizações, quando a classe trabalhadora
consegue vitórias concretas na luta contra os capitalistas, vitórias que podem
ser econômicas, políticas, sociais, ideológicas, no plano nacional, regional ou
mundial.
Outros compreendem que a construção do socialismo supõe não apenas estas
atitudes e conquistas parciais, nos marcos do domínio capitalista, mas também
alterações mais profundas, que só são possíveis quando parcelas fundamentais da
vida social passem a ser controladas pela classe trabalhadora. O que supõe, em
maior ou menor medida, que a classe trabalhadora detenha um poder econômico e político
equivalente ao que hoje constitui monopólio da classe capitalista.
A rigor, a diferença fundamental entre estas duas abordagens reside em
como enxergam o tema do chamado poder de Estado. O que implica discutir a força
política relativa entre as classes sociais.
O poder é uma relação de força, portanto nenhuma classe ou setor de
classe detém todo o poder. Mas na maior parte do tempo, na maior parte das
sociedades, o poder é distribuído de maneira desigual entre os diferentes
setores sociais.
Por isto é correto afirmar que o poder de Estado está com as classes ou
setores de classe que controlam um conjunto de mecanismos (produtivos,
militares, comunicacionais, legislativos, executivos, nacionais e
internacionais) que permitem a estes setores manter e/ou definir o rumo geral
de funcionamento de uma dada sociedade.
Por exemplo: na maior parte dos países do mundo, a classe dos
capitalistas controla direta ou indiretamente o governo nacional, a maior parte
dos governos regionais e locais, a maioria dos parlamentos em todos os níveis,
a maior parte do judiciário, a maior parte das polícias e forças armadas, a
maior parte das empresas privadas e também das empresas estatais, a maior parte
dos meios de comunicação, da indústria cultural e educacional, bem como das
igrejas.
Para construir o socialismo, a classe trabalhadora necessita do poder
necessário para alterar o funcionamento da sociedade. Isto supõe ampliar o
poder da classe trabalhadora e reduzir o poder da classe dos capitalistas.
Neste processo de ampliação/redução, há um momento fundamental: quando os
trabalhadores adquirem poder suficiente para manter e/ou definir o rumo geral
de funcionamento de uma sociedade. Quando chegamos neste momento, falamos que a
classe trabalhadora passou a deter o “poder de Estado”.
Por isto, ter o “poder de Estado” é um indicador fundamental, uma
preliminar para a construção do socialismo.
Por isto, podemos definir estratégia como o conjunto de ações que a
classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de
Estado e assim poder iniciar a construção do socialismo.
Esta definição permite compreender (no sentido de “incluir no contexto”
e “dar significado”) o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores
assalariados desenvolveu, nos diferentes países do mundo, ao longo dos séculos
19 e 20, bem como ao longo dos primeiros 16 anos do terceiro milênio, para
construir suas condições de poder (o que pode incluir tanto auto-organização
quanto ocupação de espaços no Estado) e/ou para conquistar o poder revolucionariamente
(organizando-se para derrotar o Estado vigente e construir outro), assim como
as várias situações híbridas e intermediárias de que a história está feita.
“Reformistas” e “revolucionários”
Já dissemos antes que estes termos podem ser utilizados para definir o
objetivo final (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”, capitalismo ou
socialismo).
Já dissemos, também, que na prática histórica os que buscaram estes
diferentes objetivos muitas vezes trilharam os mesmos caminhos e utilizaram os mesmos
métodos.
Portanto, tivemos revolucionários extremamente moderados e reformistas
extremamente radicais no que diz respeito às formas de luta.
Ocorre que os termos “reformista” e “revolucionário” também são
utilizados para designar diferentes formas de conquistar o poder de Estado.
Neste caso, chama-se geralmente de “reformista” quem defende conquistar
o poder de Estado, ocupando espaços no seu interior (por exemplo, disputando
eleições, mas também organizando a classe trabalhadora e seus aliados para
pressionar e obter conquistas frente ao Estado capitalista).
E chama-se geralmente de “revolucionário” quem, participando ou não das
eleições e das lutas cotidianas da classe, considera que o “problema do poder”
só será resolvido através da destruição do Estado burguês e sua substituição
por outro de natureza distinta.
Devido a este duplo sentido, há correntes políticas e ideológicas que se
consideram como “reformistas revolucionárias”, ou seja, defendem que lutemos
através de meios reformistas para atingir um objetivo revolucionário.
Vejamos a seguir qual a implicação – na estratégia -- das diferentes
visões acerca de como lidar com o poder de Estado.
Já dissemos que estratégia é o conjunto de ações que a classe dos
trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado e poder
assim iniciar a construção do socialismo.
Nesta definição, ter o poder de Estado é uma preliminar. Como fazer isto
é a questão a ser respondida.
Para os que adotam uma resposta “reformista”, o como resulta
da acumulação progressiva de forças, que num determinado momento resultará em
que a classe trabalhadora detenha mais poder que a classe capitalista.
Não há, nesta visão “reformista” acerca do processo de como chegar ao
poder de Estado, um momento fundamental, transcendental, um ponto de ruptura.
Podem até existir vários momentos de embates profundos, de recuos e de
avanços; mas o que predomina é a noção do acúmulo progressivo.
Para os que adotam uma resposta “revolucionária”, a acumulação de forças
inclui dois momentos combinados, porém qualitativamente distintos.
Um deles é o de acúmulo progressivo de forças; mas quanto este acúmulo
de forças chega próximo de dotar a classe trabalhadora do poder de Estado,
inaugura-se um novo momento, uma nova etapa: ou bem a classe trabalhadora
conquista o “poder de Estado”, ou bem ocorrerá um retrocesso na acumulação de
forças.
Nesta visão “revolucionária” acerca do processo de como chegar ao poder
de Estado, a conquista do poder não resulta de um acúmulo “gradual”, mas sim de
um salto, de uma ruptura, de uma mudança qualitativa.
Destas duas respostas decorrem diferentes implicações práticas e também
conceituais.
Para os “revolucionários”, a estratégia deve responder a duas questões:
quais as maneiras de acumular forças e quais as maneiras de conquistar o poder.
Já para os “reformistas”, a estratégia deve responder a uma única
questão, pois a maneira de acumular forças também é a maneira pela qual se
consegue ter o poder.
Isto pode ser dito da seguinte forma: para os revolucionários, o poder
deve ser construído, mas também deve ser conquistado. Já para os reformistas, o
poder apenas se constrói (não existindo um momento especial onde se “toma” o
poder, quando se “assalta o Palácio de Inverno”).
Os diferentes caminhos para o poder
Ao longo dos últimos duzentos anos, em diferentes países do mundo a
classe trabalhadora construiu uma “modalidade” reformista e três “modalidades”
revolucionárias para tentar resolver o problema do poder.
A modalidade reformista foi uma combinação entre a organização da classe
(sindicatos, partidos, organizações populares diversas, e suas respectivas
alianças) e a conquista de espaços institucionais (executivos, legislativos,
democratização de outros aparatos de Estado).
Em nenhum país do mundo, esta modalidade reformista de lidar com o
problema do poder “resultou na”/”permitiu a” construção do socialismo. Porém,
em diversos países esta modalidade reformista resultou na/permitiu a construção
de melhores condições de vida nos marcos do capitalismo.
Vale lembrar, entretanto, que a classe dominante destes países citados
no parágrafo anterior geralmente se beneficiava da exploração imperialista
sobre outros povos, o que permitiu/facilitou concessões à sua própria classe
trabalhadora.
Donde resulta um questionamento acerca de como se combinaram -- para
viabilizar a melhoria citada nas condições de vida nos marcos do capitalismo --
a luta por reformas e a “gordura” disponível para a classe dominante graças à
exploração imperialista.
Já as três modalidades revolucionárias foram: a insurreição urbana, a
guerra (nas suas variadas formas: guerra de guerrilhas, guerra popular
prolongada, guerra de libertação nacional, guerra de ocupação) e a “via chilena
para o socialismo”.
Exceto o caso da Revolução Russa de 1917, todas as demais experiências
de construção do socialismo tiveram início na conquista do poder através de
guerras.
E mesmo a experiência de 1917 ocorreu em meio a uma guerra mundial e
incluiu, depois da revolução, uma sangrenta guerra civil. Fatos que marcaram
profundamente as características das respectivas tentativas de construção do
socialismo.
É importante, por outro lado, notar que a “via chilena” para o
socialismo não resultou – até agora -- na construção do socialismo em nenhum
dos países em que foi tentada.
A “via chilena” para o socialismo
A “via chilena”, como o nome sugere, foi elaborada e experimentada no
Chile, especialmente no período de governo da Unidade Popular (1970-1973).
Deixemos de lado as características especificamente chilenas e nos
concentremos no que é proposto por esta modalidade estratégica, enquanto
solução para o problema do poder: a ideia central é utilizar os mecanismos de
construção do poder (modalidade “reformista”), para possibilitar a conquista do
poder (modalidade “revolucionária”).
Dito de outra forma, fazer da disputa e da conquista eleitoral de
governos uma parte fundamental da disputa e da conquista do poder.
Os defensores da “via chilena” pretendiam, desta forma, resolver um
problema que provavelmente angustiou e segue angustiando muitos dos que se
pretendem revolucionários: que estratégia adotar em sociedades ou em momentos
históricos em que não estão ocorrendo, nem estão no horizonte visível,
processos revolucionários, crises revolucionárias, revoluções.
A “via chilena” oferecia, em tese, a seguinte resposta: utilizar a
maioria eleitoral para viabilizar uma presença nos governos, governos que
protagonizariam mudanças tanto de ordem econômico-social quanto de ordem
política, mudanças que ao fim e ao cabo alterariam a natureza capitalista do
Estado e da sociedade.
Obviamente, os defensores da “via chilena” tinham consciência de que a
implementação desta estratégia provocaria uma reação por parte dos
capitalistas: a oposição, a sabotagem e no limite o golpe de Estado.
Portanto, uma questão implícita era como criar as condições para que
esta reação não tivesse êxito.
Uma primeira resposta era obter maiorias eleitorais, que permitissem
controlar os órgãos executivos e legislativos, a partir dos quais se promoveria
a democratização dos demais órgãos de Estado e/ou a convocação de processos
constituintes, que no limite permitiriam substituir, a partir de processos
eleitorais, o Estado capitalista por um Estado popular.
Uma segunda resposta era neutralizar os instrumentos que a classe
capitalista utiliza para fazer oposição, sabotar e dar golpes: o controle da
economia, o controle dos meios de comunicação e o controle das forças armadas.
Isto se traduziria na ampliação da presença do Estado na economia, na quebra do
controle capitalista sobre os meios de comunicação e na submissão das forças
armadas ao controle democrático.
Este aspecto teve grande importância no caso chileno, onde uma parcela
da esquerda acreditou que as forças armadas chilenas seriam fieis a uma suposta
tradição legalista e não apoiariam um golpe. Ilusões semelhantes sobre as
forças armadas também estiveram presentes noutros países.
O tema das forças armadas teve particular importância no caso
venezuelano.
Lembramos que uma parcela das forças armadas apoiou um golpe contra o
presidente Hugo Chávez, enquanto outra parcela apoiou a reação popular contra o
golpe, forçando os golpistas a recuar e tornando possível uma reforma na
instituição militar, reforma que ajuda a entender por quais motivos, pelo menos
até o momento em que este texto está sendo escrito, predomine nas forças
armadas venezuelanas o apoio ao governo popular.
Tanto no caso venezuelano quanto no chileno, entretanto, a sabotagem
econômica foi fundamental para o êxito (parcial ou total) da reação
capitalista. O que remete para uma complexa discussão sobre a relação entre
economia nacional e internacional, Estado e mercado, discussão que também se
faz necessária quando analisamos as experiências de construção do socialismo no
século 20.
Uma terceira resposta a como criar as condições para que a reação
capitalista não tenha êxito consiste em defender a construção de um “poder
popular” paralelo ao poder de Estado e/ou complementar ao governo popular.
É importante perceber que todas as respostas citadas têm, entre seus
efeitos, o de acelerar a reação capitalista. Fato que nos remete para uma das
principais dificuldades "práticas" da “via chilena”: o tempo.
Numa guerra ou numa insurreição, a classe capitalista tende a perder
completamente, ou quase, seus instrumentos de poder. Já na “via chilena”, a
classe capitalista mantém parte importante, maior ou menor, de seus
instrumentos de poder. E utiliza estes instrumentos para fazer oposição,
sabotagem e no limite promover golpes.
A questão, portanto, é saber se os instrumentos que a classe
trabalhadora vai conquistando, adquirindo e construindo através da combinação
entre eleições e auto-organização serão capazes de deter a oposição, a
sabotagem e o golpe.
Trata-se de uma “corrida contra o tempo”, que assume a forma de uma
disputa política e ideológica – geralmente denominada de “disputa de hegemonia”
e/ou de "guerra de posições"-- muito mais complexa do que a existente
nos processos de guerra e de insurreição.
Luta pelo poder e hegemonia
As noções de "guerra de posições" e de "guerra de
movimentos" remetem a formas diferentes de travar o combate militar entre
dois exércitos. Neste âmbito, a guerra de movimentos se expressa, por exemplo,
nos ataques velozes da cavalaria (animal ou blindada). Já a guerra de posições
teve sua expressão típica nas trincheiras e casamatas, com longas esperas e
avanços lentos.
Guerra de posições conduz à "disputa de hegemonia" – termo
muito utilizado por Antonio Gramsci e, antes dele, já utilizado pelos
revolucionários russos no final do século 19, início do século 20.
Disputa de hegemonia corresponde a uma atitude presente em todas as
“modalidades” utilizadas pela classe trabalhadora, ao longo dos últimos 200
anos, para tentar resolver o problema do poder.
A disputa de hegemonia não acontece apenas nos momentos “pacíficos”, mas
também nas guerras e nas insurreições, que são expressões concentradas da luta
política. Portanto, nelas também ocorre a disputa de hegemonia, que aqui tem o
sentido de influência, convencimento, “quem dirige quem”.
Claro que quando a luta de classe chega ao estágio da “batalha final”
pelo poder de Estado, a busca do “convencimento” tende a tornar-se secundária
frente ao confronto direto de forças.
Portanto, o tema da disputa de hegemonia tem maior relevância nos
momentos de acúmulo de forças “pacífico”, momentos prévios à “tomada do poder”
ou posteriores a ele, neste segundo caso como parte da consolidação de uma nova
ordem política e social.
Por decorrência, a modalidade "reformista" para tentar
resolver o tema do poder (ou seja, aquilo que estamos chamando aqui de “via
chilena”), modalidade que pode ser apresentada como um processo mais ou menos
contínuo de acúmulo de forças, é aquela onde o tema da disputa de hegemonia tem
mais importância.
Estratégia, período e etapa
Ao longo deste texto, o termo estratégia foi utilizado em um duplo
sentido: como uma formulação teórica e como uma prática social.
A estratégia como prática social designa o sentido geral da ação
implementada -- durante longos períodos de tempo -- pelas diferentes forças
sociais e políticas. Não apenas o discurso que produzem, mas o conjunto de atos
que cometem.
De forma análoga, a tática como prática social designa o sentido geral
da ação implementada durante períodos de tempo mais curtos.
Já quando falamos de estratégia enquanto formulação teórica, estamos nos
referindo ao “plano de ação” formulado pelos dirigentes das diferentes forças
políticas e sociais.
Há uma piada que ilustra isto: ao ouvir as detalhadas orientações do
técnico de futebol, orientações que sempre terminavam com drible e bola na
rede, o craque perguntou se o técnico havia combinado tudo aquilo com os
adversários.
Como na piada, sempre tende a haver alguma diferença entre o projeto e a
ação real.
Esta diferença pode ter várias causas, mas a principal delas é que a
ação real se desenvolve em combate com outras forças sociais e políticas,
portanto em choque com outras estratégias, das quais surge uma resultante que
sempre tende a diferir das intenções e propósitos originais.
Falando em tese, a melhor estratégia é aquela que considera – nas suas
formulações e projeções – as potenciais decorrências do choque com as demais
forças políticas e sociais.
Uma das maneiras de tentar prever estas e outras potenciais decorrências
futuras é o estudo da história, embora esta não se repita nunca, motivo pelo
qual os “modelos” tendem a ser muito enganosos.
Outra das maneiras de considerar estas potenciais decorrências futuras é
tentar detectar quais as tendências mais gerais de um período histórico, no
plano nacional, regional e internacional.
Estas tendências resultam de choques anteriores, que definem o quadro
geral, a superfície, o ambiente em que se travam as batalhas do presente.
Alguns autores e dirigentes dão a este contexto estratégico o nome de
etapa e consideram que a análise da etapa define os limites mínimos e máximos
que uma estratégia pode obter.
Por exemplo: num contexto histórico de bipolaridade entre URSS e EUA,
todos os processos nacionais eram levados a “posicionar-se” em relação aos
polos. O que “empurrava” em direção ao socialismo processos que, em outros
contextos, poderiam ter outros desdobramentos.
Estratégica, tática e análise de
conjuntura
As definições estratégicas podem ser perfeitas no papel, mas se a tática
for equivocada, de pouco adiantará.
Ou seja: não é provável que vença uma guerra alguém que perde todas as
batalhas de que participa. Pois de derrota em derrota não se constrói a vitória
final, embora seja impossível vencer sem antes ter sido derrotado; e seja
imprescindível extrair lições da cada uma das derrotas.
A estratégia visa alterar a correlação de forças entre as classes
sociais num plano fundamental: o do poder de Estado. E a partir daí, agir sobre
o terreno das relações de produção.
A tática visa alterar a correlação de forças entre as classes sociais em
níveis menos fundamentais: no governo, no parlamento, nas eleições, nas lutas
sociais etc.
Ambas (estratégia e tática) dizem respeito à correlação de forças entre
as classes sociais; ambas se articulam; e no limite ocorrem batalhas táticas
com efeitos estratégicos (aquela batalha tática em que se decide a “tomada do
poder” é também uma batalha estratégica, ou seja, mesmo tendo vencido todas as
anteriores, perder esta batalha pode significar perder a guerra).
Noutras palavras: voltamos ao ponto de partida. Tudo depende da análise
das classes sociais e da luta de classes.
A análise de conjuntura (ou seja, a análise de um conjunto de elementos)
tem por objetivo medir a correlação de forças entre as classes sociais e
definir quais passos táticos devem ser dados para acumular forças em direção
aos objetivos estratégicos.
Como “medir” se estamos acumulando? É preciso verificar qual o nível de
consciência, organização e mobilização da classe trabalhadora, vis a vis as
demais classes sociais.
Vladimir Lenin dizia que a essência do marxismo é a análise concreta da
situação concreta, que o marxismo é um guia para a ação.
“Situação concreta” e “ação” podem dizer respeito a períodos de tempo
mais ou menos longos, em territórios mais ou menos extensos.
Podem dizer respeito à estratégia deduzida da análise das tendências de
desenvolvimento de uma sociedade ao longo dos últimos 100 anos; ou dizer
respeito à tática deduzida da análise de uma sociedade ao longo dos últimos 100
meses.
Podem dizer respeito à análise da situação de uma empresa, de uma
cidade, de um estado, de um país, de um subcontinente, de um continente, do
mundo.
Quando falamos de análise de conjuntura, estamos nos referindo a uma
análise concreta de uma situação concreta mais curta no tempo e restrita no
espaço.
Isto é assim não por conta da incapacidade de quem analisa, mas sim por
conta da natureza do fenômeno analisado.
A análise de conjuntura é uma análise da correlação de forças em luta,
correlação que em última análise remete para dois “sujeitos”: as classes
sociais (no âmbito de cada país) e os Estados (expressão desta luta de classes
no âmbito internacional).
A correlação de forças se altera com muita rapidez ao longo do tempo; e
num mesmo momento, mas em territórios diferentes, também apresenta enormes
diferenças.
Por isto, analisar a conjuntura de um século ou analisar a conjuntura do
mundo inteiro é, na verdade, estudar várias conjunturas encadeadas ou
simultâneas.
Isto é perfeitamente possível de fazer, mas neste caso estaríamos
realizando não uma “análise de conjuntura” --ou seja, das tendências de
curto/médio prazo-- mas sim uma análise das tendências de médio/longo prazo,
portanto uma “análise de estrutura”.
A análise “estrutural” é fundamental, até porque sem ela a análise de
conjuntura torna-se volúvel. Da análise de conjuntura deriva a tática, da
análise de estrutura deriva a estratégia.
Há análises de conjuntura para todos os gostos e sabores; assim como há
diferentes maneiras de analisar a conjuntura; não havendo consenso sobre o que
significa “analisar”, nem tampouco sobre o que significa “conjuntura”.
As análises da conjuntura fazem parte... da conjuntura. A difusão de
determinadas interpretações, narrativas, conclusões, propostas faz parte da
luta política permanente que se trava em nossa sociedade. Por isto é
fundamental saber que não existe análise neutra, acima e a parte daquela luta.
A classe trabalhadora está submetida à influência da ideologia da classe
dominante (os capitalistas). Reconhecer isto e desenvolver de forma consciente
seu próprio ponto de vista é parte integrante da luta por fazer da classe
trabalhadora a classe "dominante" e "dirigente" da
sociedade, mas voltada para a superação de toda e qualquer forma de dominação e
exploração.
(texto ainda em fase de redação e revisão. Sujeito
a alterações)
muy buen texto.es un aporte importante
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