terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Chacina da Lapa, 35 anos


O texto abaixo foi escrito em 2000 por Carlos Eduardo Carvalho e divulgado sob o título A Chacina da Lapa. Os últimos assassinatos da Ditadura.

A morte de três dirigentes comunistas em São Paulo no final de 1976, a chacina da Lapa, encerrou de forma brutal a longa série de assassinatos cometidos pela ditadura militar. Último elo desta cadeia sangrenta, a Lapa representa a contestação viva e irrefutável da versão dominante, mentirosa e insistentemente repetida, sobre Ernesto Geisel, o quarto general-presidente da ditadura, e o processo de distensão política iniciado no seu governo.

Eram quase sete horas da manhã de 16 de dezembro de 1976 quando militares e policiais dos "órgãos de segurança" atacaram de surpresa a casa de número 767 da rua Pio XI, no bairro da Lapa, em São Paulo, onde funcionava a direção do Partido Comunista do Brasil, o PC do B. O ataque foi fulminante. Rajadas de metralhadora arrebentaram a porta, as janelas, os vitrôs. A fuzilaria chegou a arrancar pedaços do reboco do teto da sala. Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foram mortos à queima-roupa, em instantes. Mal tiveram tempo de entender o que se passava e pronunciar algumas palavras de espanto, segundo o relato da única sobrevivente ao ataque, Maria Trindade, militante do partido encarregada da manutenção da casa. Apavorados com os tiros, vizinhos ouviram Maria gritar: "pára, pára", desesperada, enquanto um dos agentes berrava: "atira, atira no pé dela".

Pomar e Arroyo eram os únicos membros da Comissão Executiva do Comitê Central do PC do B ainda na casa, depois de concluída a reunião do CC, iniciada dias antes. João Amazonas, o principal dirigente do partido, estava na China. Os demais membros do CC começaram a sair na véspera, à noite. Dois a dois e de olhos fechados, para não identificarem o local, foram levados no velho Corcel azul dirigido por Joaquim Celso de Lima, também militante do partido.

Em duas viagens, saíram Wladimir Pomar, João Batista Drummond, Aldo Arantes e Haroldo Lima. Foram todos presos pouco depois de descerem do carro, um a um, em locais diferentes. Drummond morreu horas depois. Pelo que se sabe, atirou-se de uma janela do prédio do DOI-CODI para escapar das torturas bestiais a que foram submetidos todos os presos, durante várias semanas.

Apesar dos rigorosos cuidados habituais, Joaquim não notou nada de estranho nas duas viagens. Na última saída, porém, no alvorecer do dia 16, com Manoel Jover Teles e José Gomes Novaes, logo percebeu automóveis suspeitos acompanhando ostensivamente o carro. Tentou despistar pelo Alto de Pinheiros, pegou a Pedroso de Morais, depois a Teodoro Sampaio, virou à direita em direção à Rebouças. Quando acreditou que havia escapado, parou bruscamente e mandou os dois descerem. Cada um correu para um lado. Joaquim saiu em disparada, mas o carro foi cercado logo adiante, em um cruzamento da Faria Lima. Agarrado e espancado pelos agentes, ouviu um deles anunciar por um rádio: "Tudo limpo, pode tocar a operação". Era a senha para a invasão da casa e a chacina.

Os fatos são estarrecedores, mas a história do regime militar e da abertura política é continuamente repetida como se os mortos de dezembro de 1976 não tivessem existido. Até mesmo na memória de boa parte da opinião pública democrática e de esquerda, o último morto da ditadura teria sido Vladimir Herzog, jornalista da TV Cultura preso em outubro de 1975 em São Paulo e assassinado nos porões do DOI-CODI. Ficaram muito marcadas na memória daquele período as manifestações públicas de protesto e repúdio à ditadura militar diante da versão oficial de que Herzog se enforcara em sua cela.

Chega-se por vezes a lembrar também a morte de Manoel Fiel Filho, operário ligado ao Partido Comunista Brasileiro, o PCB, como Herzog, e assassinado no mesmo DOI-CODI no início de 1976. O crime precipitou a demissão do general Ednardo D'Ávila Mello do comando do II Exército, substituído pelo general Dilermando Gomes Monteiro, adepto da "distensão" do regime, o processo de abertura "lenta, gradual e segura" patrocinado por Geisel e seu conselheiro, o general Golbery do Couto e Silva. Apesar de Geisel ter mantido por mais um ano no Ministério do Exército o general Sylvio Frota, considerado um dos líderes da "linha dura", a troca de comando em São Paulo vem sendo desde então apontada como a evidência de que o general-presidente conseguira enfim "controlar" os órgãos de segurança e acabar com as torturas e os assassinatos.

A Lapa desmente esta versão da história. A chacina ocorreu quase um ano depois da posse de Dilermando no comando militar em São Paulo e existem indicações muito claras de que os agentes do Exército e da polícia invadiram a casa da rua Pio XI com a missão definida de matar imediatamente os dirigentes máximos do PC do B.

A ação foi preparada com antecedência. Há um ofício do Chefe do Estado-Maior do II Exército, datado de 10/12/1976, informando à Secretaria de Segurança Pública sobre a reunião e a presença de Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Outro ofício, em 14/12, solicitava à SSP o desvio do trânsito na data e horário previstos para a invasão. Depois de monitorar a casa por vários dias, a repressão deixou que saíssem os que não estavam marcados para morrer. Foram seguidos e presos, um a um, em locais diferentes, de forma que os demais nada percebessem. O ataque foi executado com precisão: morreram os dois membros da Comissão Executiva, Pomar e Arroyo. Maria Trindade foi poupada. É evidente a premeditação da morte dos dois.

Todos estes fatos estão cuidadosamente documentados no livro Massacre na Lapa (São Paulo, Ed. Página Aberta, 2a. ed., 1996), de Pedro Estevam da Rocha Pomar, neto de uma das vítimas. Os detalhes da tragédia ali reconstituídos nunca foram desmentidos ou contestados. O livro relata inclusive um episódio inusitado e revelador. Às 12 horas do dia 16, o cônsul-geral dos EUA em São Paulo, Frederic Chapin, chegou esbaforido à Cúria Metropolitana e implorou a D. Paulo Evaristo Arns que interferisse de imediato para evitar que os presos fossem mortos. E declarou ao cardeal: "Sabíamos da reunião há dias, mas não esperávamos que sob o Dilermando acontecesse o que aconteceu".

Feita a chacina, não houve sequer a preocupação de salvar as aparências. As mortes na casa foram atribuídas ao "tiroteio" provocado pela "reação" dos militantes cercados, alegação ridícula, logo desmentida pelas fotos e pelos relatos dos vizinhos e de um jornalista que conseguiu entrar no local logo após os tiros. Sobre a morte de Drummond, nenhuma providência, nem mesmo um comentário além da habitual referência a "atropelamento durante tentativa de fuga".

Este é o problema colocado pela chacina da Lapa: o desmentido cabal de toda a interpretação construída sobre o papel do general Ernesto Geisel como o "déspota esclarecido" que acabou com as torturas e os assassinatos. E também sobre o processo de abertura política do seu governo, processo que acabaria dando o tom da transição da ditadura militar para o atual regime político. É por isto que as três mortes precisam ser esquecidas. É por isto que precisam ser também esquecidas as selvagens torturas aplicadas aos presos durante semanas.

A chacina reforça outra interpretação para a política de Geisel e Golbery, muito discutida na época em algumas áreas da oposição e reforçada com as recentes denúncias sobre a Operação Condor e outras formas de cooperação entre as ditaduras da América Latina e os EUA na época: o assassinato dos principais opositores do regime era parte integrante do processo de distensão do regime ditatorial, era um pressuposto, um pré-requisito para a abertura política. Tratava-se de retirar da cena política lideranças de grande prestígio popular, como Juscelino Kubitschek, morto em um estranho acidente na Via Dutra meses antes da Lapa, e também os principais dirigentes dos partidos de esquerda. As mortes deveriam ocorrer antes que a abertura avançasse. Deveriam precedê-la. Deveriam garantir que fosse um processo seguro.

Esta tese explica o assassinato de vários líderes do Partido Comunista Brasileiro em 1974-75, em sangrenta perseguição iniciada logo após a posse de Geisel. O PCB nunca adotara a luta armada contra a ditadura e a repressão tinha concentrado suas atividades criminosas sobre outras organizações da esquerda nos anos anteriores. Por que o PCB foi atingido de forma tão brutal naquele momento, quando Geisel empreendia os primeiros passos da distensão?

A explicação pode estar nos receios de que os comunistas aproveitassem a ampliação dos espaços políticos legais que a abertura iria trazer, como se comprovou nas eleições de 1974, com a esmagadora vitória eleitoral do MDB, o único partido de oposição admitido pela ditadura. Nesta linha de interpretação, os responsáveis pela morte de Herzog e Fiel Filho foram punidos não por terem assassinado presos políticos, mas por terem assassinado presos que não estavam na lista dos condenados pelo regime.

Geisel de fato controlou a tortura e o aparato repressivo, mas não para eliminá-los. O objetivo era colocá-los firmemente a serviço da ditadura e do seu projeto político. O próprio ditador justifica indiretamente esta interpretação na longa entrevista autobiográfica concedida muitos anos depois e transformada em livro (Ernesto Geisel, Maria Celina D'Araújo e Celso Castro, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1997). Perguntado se a tortura teria sido sempre resultado de "uma omissão, uma falta de controle do comandante", Geisel respondeu com clareza: "Não, nem sempre. Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões. (...) O inglês, no seu serviço secreto, realiza com discrição. E o nosso pessoal, inexperiente e extrovertido, faz abertamente. Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior" (p. 225).

Esta declaração reveladora vem logo depois de Geisel apresentar seus esclarecimentos sobre "o problema de São Paulo", do jornalista Herzog e do operário Manuel Fiel Filho: “Houve ali a omissão do comandante, do general Ednardo. O que acontecia? Ele ia passear no fim de semana (...) e os subordinados dele, majores, faziam o que bem queriam. (...) ele não torturava, mas, por omissão, dava margem à tortura. Várias vezes eu tinha advertido o Ednardo, de maneira que, quando ocorreu o segundo enforcamento, não tive dúvidas e o demiti. Ele não estava comandando!" (p. 225).

Por ocasião da morte de Geisel, em 12/09/1996, a grande imprensa dedicou páginas e páginas enaltecendo o ditador e seu governo. A demissão de Ednardo Melo foi lembrada inúmeras vezes, bem como a morte de Herzog. Sobre a Lapa, nada. É exemplar a longa matéria da Veja, assinada por Marcos Sá Corrêa. Começa afirmando que nos cinco anos do governo Geisel "a repressão sumiu para sempre com 39 esquerdistas. Houve tortura nas prisões militares e 42 adversários do regime morreram" (Veja, 18/09/1996, p. 42). Quem foram os mortos? Não diz. Elogia Geisel por ter exigido, no primeiro dia de mandato, que ninguém fosse preso sem ele saber, e sugere que isto foi feito porque "o comitê central do Partido Comunista Brasileiro fora secretamente dizimado por assassinatos às vésperas de sua posse" (p. 45).

Ora, toda a documentação sobre os crimes da ditadura fôra publicada havia anos e deixara claro que a morte dos dirigentes do PCB começou depois da posse de Geisel, e não antes. Aqui a matéria da Veja utiliza o velho truque: as mortes concretas, com nome, ou desaparecem (como as da Lapa), ou são atribuídas difusamente aos "órgãos de segurança", a um ou outro agente subalterno ou já morto, a um período indeterminado. A repressão e seus crimes ficam sob a responsabilidade de um ente sem face e sem nomes, os "agentes", os "subordinados", os "majores".

Durante o governo Geisel e nos anos posteriores, esta manobra era justificada pela alegada conveniência de evitar problemas para a abertura e seus defensores – os generais "democratas" e os políticos da direita "civilizada". A manobra ajudou a preservar o pacto das elites e a maioria dos políticos e dos militares que eram agentes ou cúmplices da ditadura, dos seus crimes bárbaros. Ainda hoje, salvo um ou outro bode expiatório, continuam no poder, ou muito próximos dele, quase todos os velhos servidores da ditadura, reabilitados pela mesma operação que absolveu Dilermando e Geisel: o sangue teria corrido à sua revelia, eram inocentes, queriam coibir os excessos, e por aí afora.

Não por acaso, a mesma matéria da Veja traz um quadro intitulado "Geisel, segundo Fernando Henrique". Fazendo o elogio do morto, FHC sustenta que o ditador "estava do outro lado, apesar da tortura, dos excessos que ocorriam em seu governo. Ele enfrentou o regime repressivo, embora mantendo o regime autoritário" (p. 47). E explica a decisão de almoçar com Geisel logo depois de sua eleição, em 1994: "Eu queria mostrar que tenho respeito por ele. Era homenagem mesmo".

Ao lado das declarações de FHC, a matéria da Veja sustenta que "a demissão do general Ednardo trincou irremediavelmente o regime militar", que seria "desmontado" um ano depois, em 1977, quando Geisel demitiu o ministro Sylvio Frota. Explica-se o fim da ditadura por um ato de força e de autoridade do próprio ditador. Junto com a chacina da Lapa, desaparecem todas as lutas da resistência popular e democrática à ditadura, a votação esmagadora na oposição em 1974, o Movimento do Custo de Vida, as grandes greves de 1978, a ação persistente das organizações de esquerda e dos parlamentares autênticos do MDB. Foi toda esta luta que fez a ditadura recuar, arrebentou os limites estreitos da distensão de Geisel e Golbery e abriu caminho para a democratização.

Infeliz o país que precisa de heróis, escreveu Bertold Brecht meio século atrás. Felizmente o Brasil teve muitos. Teve os mortos e torturados da Lapa, teve as centenas de assassinados, teve os milhares de torturados, presos e perseguidos pela ditadura. Teve todos os que, naqueles tempos sombrios, ousaram lutar e ousaram vencer. Todos os que fizeram o que puderam, o que entenderam ser correto fazer para derrubar a ditadura infame, para virar aquela página infeliz da nossa história.

Não serão esquecidos jamais.


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