Uma coisa puxa a outra: um colega professor da Universidade Federal da Paraíba localizou um texto escrito por Wladimir Pomar na clandestinidade. O texto estava acessível no Sistema de Informações do Arquivo Nacional. Remexendo no dito cujo, achei dezenas de textos produzidos pelos serviços de "inteligência", inclusive um de 1999 (ou seja, em pleno governo FHC o petismo era investigado). Um dos textos, datado de 4 de julho de 1994 e com o carimbo CONFIDENCIAL, traz o seguinte título em maiúsculas: DOCUMENTO ELABORADO POR VALTER POMAR, INTITULADO "NOVENTA E TRÊS E OS PRÓXIMOS ANOS". O referido documento faz uma síntese e uma análise do texto supracitado e depois o reproduz na íntegra. Mandei este e outros arquivos para várias pessoas e uma delas me chamou a atenção para alguns acertos da análise feita há 28 anos. Por conta disso decidi republicá-lo em separata. Para tal o companheiro Adriano Bueno redigitou o texto original, bem como a introdução que copio e colo a seguir.
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Este texto circulou inicialmente em cópia xerox. Posteriormente, deveria ter sido publicado numa coletânea intitulada Articulação de Esquerda 1993-1998: artigos e resoluções, cujo prefácio dizia assim: “Esta coletânea reúne os principais documentos nacionais produzidos pela Articulação de Esquerda, desde o manifesto A hora da verdade (1993) até as resoluções adotadas em 1997. Reúne, também, alguns artigos que influenciaram os militantes que deram origem à tendência. Por razões técnicas, não foi possível incluir nesta edição outras contribuições, como as de César Benjamim (Decifra-me ou te devoro), David Capistrano (Tudo que é insólito desmancha no ar), Sérgio Amadeu (Preocupações de um petista), Carlos Eduardo Carvalho, Claus Germer, Wladimir Pomar e Jorge Branco. Estas lacunas não prejudicam o objetivo desta coletânea: permitir aos militantes do PT uma visão de conjunto sobre as posições da Articulação de Esquerda nos seus primeiros quatro anos de vida”. A coletânea planejada incluiria os seguintes textos: Manifesto aos petistas; Carta aos delegados da Articulação; O melhor ainda está por vir; À militância do Partido dos Trabalhadores; Tarefas para o próximo período; Balanço das eleições de 1996; Balanço do 11º Encontro Nacional do PT; Balanço do 6º CONCUT; Uma estratégia socialista para o Brasil; Resoluções organizativas; Noventa e três e os próximos anos; O poder, cadê o poder? e Alguns desafios do PT para 94. Alguns destes textos foram aproveitados noutra coletânea efetivamente impressa, um livro intitulado Socialismo ou Barbárie. Mas a coletânea originalmente planejada terminou não sendo impressa, estando disponível digitalmente para consultas no endereço www.pagina13.org.br”. A seguir, “Noventa e três e os próximos anos”.
Noventa e três e os próximos anos
Um
fantasma ronda o PT: o fantasma do
comunismo. Não o comunismo de que falava Marx, mas sim um comunismo pragmático,
eleitoreiro, reformista, típico do velho Partidão.
Comentando
a escolha de Vladimir Palmeira para líder do Partido dos Trabalhadores, o
deputado José Genoíno teria afirmado que, “com isso, o PT assume uma tendência
esquerdizante. Estou preparado para ser minoria”.
Dando o troco,
o também deputado
Jacques Wagner teria
dito: “Me surpreendo.
Então, ele está à direita?”[1]
A disputa
pela liderança foi
decidida por apenas
um voto, pouco
tempo depois da
Direção Nacional do
PT aprovar, pela
mesma diferença, uma
resolução que estabelecia
uma posição mais nitidamente oposicionista do PT frente
ao governo Itamar.
Naquela
ocasião, Paulo Delgado e José Genoíno deram entrevistas à
grande imprensa, externando
publicamente seu inconformismo com a posição majoritária na
Direção Nacional. Numa linha semelhante, o secretário-geral do partido, José
Dirceu, afirmava que a resolução fora aprovada por uma “maioria eventual”. O
que mereceu uma resposta de Jacques Wagner (para quem maioria eterna só no
stalinismo) e de Vladimir Palmeira e Sérgio Gabrielli, no Linha Direta, onde
diziam que “quem assegura a governabilidade é o governo. Não cabe ao PT
priorizar a estabilidade. Esta é uma tarefa dos conservadores. Cabe ao PT
priorizar as mudanças”[2].
Os dois
episódios mostram que o partido está, além de dividido, polarizado. Mostram
também que, cada vez mais, o debate partidário será travado publicamente.
Não há
porque temer isto. O PT tem influência cada vez mais decisiva nos rumos da
política brasileira. É natural que isso se reflita no partido, inclusive
através do acirramento da luta interna e do debate público entre suas várias
tendências.
Curiosamente,
a tendência majoritária do PT, a Articulação, não tem
conseguido debater organizadamente as
divergências presentes no
partido, que são suas também. Isso apesar de termos nos dividido, ou termos
sido divididos, na maioria das questões polêmicas. O que, na época dos
encontros partidários, cria situações cada vez mais desconfortáveis, com a
formação de maiorias para as disputas de direção que correspondem cada vez
menos às maiorias formadas em torno de questões programáticas.
Essa
situação, além de incômoda, é insustentável e danosa para o
partido. Ademais, do
ponto de vista
do autor destas
linhas, é muito desagradável ver a Articulação ser coletivamente
responsabilizada pelas posições expressas por certos “notáveis”.
Se a
Articulação enquanto tal - ou seja, os militantes que a integram - ainda quiser
influenciar coletivamente a vida partidária, então ela terá de travar aquele
debate. Esse é o objetivo deste texto: estimular os companheiros da Articulação
a promoverem uma discussão organizada sobre as nossas divergências políticas.
Como a
leitura deixará evidente, este texto não é uma tese, mas apenas um apanhado
acerca do que me parece ser o nó do problema:
um setor do
partido está formulando
e aplicando, à
revelia das resoluções
do partido e
das deliberações do
lº Congresso, uma nova linha
política, muito semelhante às propostas (derrotadas) do chamado “Projeto para o
Brasil”. Infelizmente, os defensores da “nova linha” - que de nova tem muito
pouco - não a submeteram
ao partido, que vem tomando conhecimento dela aos poucos, através de
declarações à imprensa, resoluções pontuais da direção e atitudes políticas
surpreendentes para os padrões petistas.
Isto já é suficiente, contudo, para
estabelecer a polêmica, de resto extremamente urgente. Afinal, para o partido
atuar unificadamente nos próximos anos, será necessário que o 8º Encontro
Nacional debata em profundidade as divergências em relação ao governo Itamar,
ao programa econômico de emergência e, inclusive, os contraditórios resultados
das eleições municipais - que, se demonstraram nossa força e potencialidade,
evidenciaram gravíssimos problemas, que ajudam a entender as derrotas em várias
administrações petistas, as dificuldades enfrentadas no estado de São Paulo, os
resultados eleitorais abaixo das expectativas etc.
Na encruzilhada
1992
deve ficar na história como o ano da “ética na política”. Mas poderia ser
lembrado, também, pelo massacre do Carandiru, pelos arrastões, pela vitória de
Maluf na eleição paulistana e pela “absolvição” de Quércia na CPI da Vasp.
Esses
sinais contraditórios revelam os limites de um
país que vem aperfeiçoando sua
institucionalidade democrática, mas que continua hegemonizado por uma
elite conservadora, num contexto de
deterioração cada vez mais aguda das condições de vida da maioria da população.
É
improvável que essa situação ambígua prossiga indefinidamente. Mesmo Francisco
Weffort, insuspeito de radicalismos, pensa que “são pequenas as chances de
sobrevivência da democracia em países que passam por severa e prolongada crise
econômica. No Brasil continuamos sem rumo, afundando no pântano de uma
permanente crise de governabilidade”[3].
Este
problema não é só nosso, nem se restringe ao chamado Terceiro Mundo. Uma de
suas consequências é a marginalização econômica, política e social de um setor
bastante significativo da população, o que, num contexto de crise do
socialismo, tem fortalecido não exatamente a direita tradicional, mas
principalmente movimentos, partidos e candidatos que se apresentam como
não-políticos, extra políticos, anti-establishment: Ross Perot,
Fujimori, Collor, o nacionalismo e o neonazismo são expressões (diferenciadas,
é claro) disso. Quanto à direita tradicional, vem tentando se reciclar,
adotando um discurso populista (como fez Maluf).
É
evidente que esta nova situação impõe ao PT a necessidade de atualizar sua
política. Mesmo com as lacunas conhecidas, foi isso que tentamos fazer no lº
Congresso. Entretanto, as posições mais à direita, derrotadas naquela ocasião,
são as que parecem ter maior influência no interior da direção partidária,
resultando numa política
cujos principais elementos
são: o privilégio
concedido à institucionalidade, em detrimento da mobilização e
organização social; uma política de alianças que perde de vista a necessidade
de manter diferenciado o perfil partidário; uma ação governamental que
desvincula as dimensões política e administrativa, privilegiando esta última;
uma concepção de construção partidária antidemocrática, que facilita a diluição
das instâncias, que não colabora para reduzir a distância entre direção e
bases, que facilita a autonomização dos “notáveis”, a quem se reservam as
grandes decisões, à revelia ou inclusive contra as bases; uma concepção que
desestimula a ação partidária nos
movimentos sociais; um discurso
ideológico que abandona progressivamente os valores socialistas, em favor de
valores socialdemocratas e até liberais; e uma estratégia que não apenas perde
de vista a necessidade de rupturas revolucionárias, mas que parece apostar num
inexistente espírito democrático e legalista das elites brasileiras.
Como subproduto desta política que
joga suas fichas no jogo institucional, em detrimento da organização social e
partidária, crescem a falta de ética, o aparelhismo, o desrespeito à
democracia, o cupulismo, a disputa de feudos entre parlamentares.
A integração à ordem
A
militância está cada vez mais preocupada com a possibilidade de o PT se
transformar num partido igual aos outros. O processo está apenas no início, mas
já provoca desencanto, angústia, perplexidade e falta de perspectivas em muitos
petistas.
O que
será de nossa democracia interna, se é cada vez maior a distância entre a base
e a direção? O que será de nosso projeto coletivo, se
tantas personalidades do
partido priorizam seus
projetos pessoais? O
que será do
partido das transformações sociais, se nossa ação política é cada vez
mais ditada pelo calendário eleitoral e pelos limites institucionais? O que
será de nossa organização de base, se cada vez se dá menos atenção à relação
com os movimentos sociais? O que será de nossa unidade de ação, se boa parte do
tempo de nossos sindicalistas é gasto em lutas internas, onde
se admite todo tipo de baixaria? O que será da
diferença, se começamos a realizar alianças que diluem o nosso perfil? O que
será do socialismo, se o apresentamos como algo distinto da modernidade e da
cidadania?
Para
deter a desagregação partidária, não basta, ainda que seja necessária, uma
reforma ética. É preciso, antes de mais nada, uma reorientação política. Porque
os desvios éticos presentes no PT alimentam-se de uma estratégia eleitoreira,
que pretende construir um partido de
notáveis e que sucumbe aceleradamente diante da ilusão que encantou o Partido
Comunista: a crença na vontade democratizante e reformadora da burguesia
brasileira.
Nosso
partido está ameaçado, hoje, pelo mesmo mal que vitimou outros partidos de esquerda,
que não conseguiram resistir às pressões e à força do status quo,
transformando-se em força auxiliar de partidos burgueses - como aconteceu com
os comunistas durante a Nova República - ou sendo simplesmente cooptados. Este
é o caso dos socialistas, comunistas (e inclusive petistas) que se deixaram
engolir pelo PMDB. Descrentes na
capacidade de mudança a partir de baixo, superdimensionando as possibilidades
da ação institucional/estatal, importantes segmentos do
PCB, do PCdoB, do MR-8 etc. terminaram
convertendo-se em quadros orgânicos da burguesia, particularmente do quercismo.
Um fenômeno similar ameaça hoje o PT, favorecendo as tendências gradualistas,
reformistas, eleitoreiras.
Nossa
ligação “com as bases”, antídoto natural para os riscos da cooptação, não
parece mais ser suficiente. Além daqueles laços estarem fragilizados, já faz
tempo que o centro de gravidade da
ação partidária reside
nos governos, nos
parlamentos, nos processos eleitorais.
Extremamente
positiva, a força institucional do PT contém contrapartidas:
1.
Cresceu o número de militantes envolvidos na institucionalidade, como
parlamentares, prefeitos, assessores, secretários municipais etc., ao mesmo
tempo em que se reduziu a participação da militância não profissionalizada;
2.
Aumentou o tempo dedicado pelo partido - seus militantes e dirigentes - às
questões institucionais, especialmente eleitorais, ao mesmo tempo em que se
reduziu nossa ação organizada junto aos movimentos sociais;
3.
Cresceu a dependência política e financeira do partido frente ao Estado, ao
mesmo tempo em que se reduziram as contribuições militantes.
Na ausência de mecanismos que
compensassem estes fenômenos, modifica-se progressivamente o perfil do partido,
reduzindo-se a sua sensibilidade diante dos temas populares e sua ligação com
os movimentos sociais. Pouco a pouco, o PT elitiza-se.
O movimento sindical cutista também
experimenta um processo semelhante. Cresce o peso das máquinas sindicais, dos
aparelhos, do número de profissionalizados - sem que isto corresponda a uma
ação mais orgânica, a uma maior organização de base - num ritmo ainda mais
intenso do que o experimentado pelo partido. Note-se que a estrutura partidária
continua muito aquém do necessário e muito inferior ao porte do braço sindical
e do braço institucional.
Este processo de institucionalização
resulta de nossas vitórias parciais, e seria pura ingenuidade imaginar que o PT
pode crescer sem modificar-se. Maior ingenuidade, entretanto, é só enxergar o
lado positivo da institucionalização. É o que acontece com parte da militância,
que superestima o papel das disputas eleitorais, em relação às outras dimensões
da luta política, social e ideológica. É em boa parte por isto, aliás, que há
pré-candidatos ou candidatos capazes de comer o fígado de companheiros, para
viabilizar suas pretensões, mas sempre achando que agem em nome da causa...
Como resultado, o partido perde
espaço frente ao candidato, a militância perde peso diante do eleitorado, o
programa corre o risco de se converter numa peça eleitoral, o eleitoralismo
estimula o individualismo e a atomização da política, servindo de porta de
entrada para comportamentos que a prática parlamentar ou governamental termina
solidificando.
A falta
de solidariedade, o individualismo e o vale-tudo cresceram no PT à medida que
cresceram nossos laços com a institucionalidade. Mas só se tornaram um fenômeno
ameaçador quando foram
potencializados pela crise
do socialismo, pela
exaltação dos valores
neoliberais, pelo clima de salve-se quem puder típico dos períodos de recessão
e também pelo fortalecimento, dentro do partido, dos setores que defendem uma
estratégia eleitoreira.
Por isto
achamos que superar a falta de solidariedade e o individualismo; combater as
mentiras e o mandonismo; extirpar o clima de desconfiança e restabelecer a
democracia interna; evitar que as eleições sindicais sejam tomadas pelos
métodos burgueses de disputa; restaurar a solidariedade partidária, socialista
e petista... tudo isto exige a criação de anticorpos que minimizem a absorção
do partido pela institucionalidade; exige restaurar a estratégia democrática e
popular, que não se resume em eleições; exige combater a estratégia
eleitoralista, que estimula a atomização da ação partidária, o individualismo e
o privilégio para os eleitos e mandatários.
Exige, inclusive, a adoção de uma
ética que não se limite ao comportamento dos políticos frente à coisa pública,
mas que inclua entre seus temas o combate à miséria, à marginalidade, à pobreza
- tudo aquilo que Cristovam Buarque chama de “ética das prioridades”.
Naturalmente não podemos nos iludir:
numa sociedade como a nossa, é impossível construir um partido puro, imune ao
que acontece a seu redor; cabe lembrar, também, que a luta política é espaço
propício para o surgimento de comportamentos que, vistos de uma perspectiva
socialista, são mais que condenáveis; além disso, os desvios éticos não
surgiram agora, já se fazendo presentes noutros momentos da vida do partido; só
que hoje o fenômeno atingiu tal intensidade que se constitui numa ameaça à
coesão partidária. Entretanto, para conseguir mais ética, é preciso combater a
política que facilita a falta de ética: o eleitoralismo, o institucionalismo.
Reafirmar a estratégia
Mais que
uma fonte de desvios em relação aos princípios e a ética partidária, o
institucionalismo é um jeito de fazer política, de acumular forças, de se
relacionar com a população e os movimentos sociais, de conceber a política de
alianças. Trata-se de uma estratégia política
muito diferente daquela
que o partido
defende em seus documentos e resoluções, uma estratégia que se alimenta
do desencanto frente às alternativas revolucionárias e que se sustenta numa
brutal confusão entre governo e poder.
O PT
sempre reservou um lugar importante, na sua estratégia, para a luta
institucional e eleitoral. E não apenas temos conseguido ampliar nossa força
nos legislativos e nos executivos, como também foi por aí que quase provocamos
aquela que teria sido a maior derrota das classes dominantes, em toda a história
do Brasil: a eleição de Lula presidente da República.
Contudo,
a disputa do poder político envolve muito mais do que a conquista de governos e
mandatos. E a luta institucional só contribui para a conquista do socialismo
quando combinada com a mobilização social e com a disputa ideológica. Quem
esquece isto, quem deixa de ver a luta institucional como uma das dimensões da
luta de classes, termina considerando o caminho para o poder como um acúmulo de
vitórias eleitorais.
A
estratégia estabelecida pelo PT, desde 1987, supõe - explícita ou
implicitamente - algumas condições para o sucesso de um governo democrático e
popular: o apoio do movimento social organizado, das instituições progressistas
e de um arco de alianças políticas e sociais; a adoção de medidas de impacto
que, embaladas no apoio inicial que todo governo tende a desfrutar, possam
consolidar posições junto ao grosso da população; a capacidade de gerenciar o
governo, evitando ao máximo quaisquer pretextos para uma ação
desestabilizadora; uma política de relações internacionais que, granjeando
apoio na Europa e América, iniba ações golpistas, boicotes e que tais; e a
recusa em dissociar os sucessos eleitorais e institucionais de uma perspectiva
revolucionária de transformação social.
De 1987,
quando se desenhou mais claramente essa política, até hoje,
muita coisa mudou.
De saída, perdemos
o elemento surpresa: as elites sabem de nosso potencial
para vencer as eleições. Por isso mesmo, consideram a adoção do
parlamentarismo, ao mesmo tempo
em que buscam
construir alternativas para
enfrentar a próxima disputa presidencial, sendo improvável que se repita
o ocorrido em 1989, quando as elites, para evitar o mal maior, tiveram que
optar por um aventureiro.
De 1987
até hoje, a crise brasileira aguçou-se, aumentando a urgência das reformas
políticas, econômicas e sociais necessárias à sua superação e, com isso,
sugerindo um início de governo mais radicalizado do que supúnhamos em 1987 e
esperávamos em 1989.
A situação internacional modificou-se
substancialmente: o chamado campo socialista não existe mais, a Europa
inclinou-se consideravelmente à direita, evoluiu negativamente a situação na
América Latina. Como resultado, os fatores de inibição à política agressiva e
conservadora dos EUA são bastante diminutos.
Mais grave que tudo isto, os
movimentos sociais encontram-se numa situação difícil, não apenas por efeito da
recessão, mas também por conta da crise política que se abateu sobre vários
deles, somados ainda às disputas internas ao PT e às desilusões produzidas por parte
dos governos municipais petistas.
Por último, a crise
político-ideológica que se abateu sobre a esquerda colocou em questão, para
muita gente, elementos essenciais da estratégia e do pensamento socialista,
como a noção de que não pode haver socialismo sem revolução.
O
quadro apresenta-se, portanto,
muito mais complexo
e difícil do que nos anos
anteriores. Como enfrentá-lo? Quais as alterações necessárias em nossa
estratégia?
Um horizonte difícil
Quando as
coisas estão difíceis,
não cabe aos
socialistas esperar dias
melhores; cabe sim lutar por dias melhores. Mas é importante ter em mente quais
as perspectivas desta luta, quais as forças com que se conta, quais os
obstáculos a superar.
Nesse
sentido, é preciso reconhecer que dias piores virão. Apesar da onda neoliberal
ter esgotado seus atrativos, isso não nos faz prever o início de um período
mais positivo para as forças de esquerda. Ao contrário, o recuo das forças
socialistas, a ofensiva político-ideológica
do capitalismo e
o crescimento do
conservadorismo racista e militarista de extrema direita são fenômenos que
devem durar ainda bastante tempo.
Mesmo
sem desconsiderar a possibilidade de vitórias pontuais ou
de resultados positivos
para a esquerda,
devemos estar preparados para uma luta de longo curso e
bastante difícil.
Esta
maneira de considerar a situação não nos leva a minimizar as potencialidades da
luta pelo socialismo no Brasil: somos um dos poucos países do mundo onde existe
um movimento político-social de massas, sindical e popular, fortemente
influenciado por uma esquerda radical, independente e socialista, que conseguiu
acumular significativas vitórias ao longo dos últimos doze anos.
Mesmo
aqui, entretanto, temos que considerar o forte impacto - político e principalmente
ideológico - da dèbâcle do chamado campo socialista e, de uma maneira
geral, da alteração na correlação de forças em nível mundial. Some-se a isto o
efeito devastador de uma prolongada recessão, cujos efeitos são reforçados
pelas conhecidas mudanças no processo de trabalho, que atingem em cheio a
classe trabalhadora, especialmente seu setor industrial. E, finalmente, é
preciso levar em conta o fenômeno, já comentado, da cooptação pela
institucionalidade.
Entretanto, não
é só o
campo popular que
enfrenta graves problemas.
No Brasil, a burguesia
tem motivos de
sobra para estar preocupada: a abertura planejada pelos
militares foi atropelada pelas Diretas Já; a transição negociada sob Tancredo resultou na instável Nova República de
Sarney; a Constituinte de centro-direita resultou numa constituição, sob vários
aspectos, mais progressista do que eles desejavam; as eleições diretas
quase resultaram na
vitória de um
socialista; e o
paladino do neoliberalismo revelou-se príncipe da
corrupção.
A
instabilidade política, principal marca dos últimos quinze anos, possui uma
causa básica: nem as elites conseguiram impor completamente seu projeto
aos trabalhadores, nem
a oposição democrática e popular conseguiu reunir forças
para impor um caminho alternativo ao das classes dominantes. Como resultado, a
situação econômica e social do país vem deteriorando-se progressivamente, sem
que se consiga dar início a um novo ciclo de desenvolvimento, mesmo do ponto de
vista do capitalismo.
É improvável que esta situação se
estenda por muito mais tempo - e, se o fizer, será às custas da estagnação, do
agravamento das condições de vida da população, e de tornar crônica a crise
política.
São basicamente três os desenlaces
alternativos para esta situação: ou bem a burguesia impõe uma derrota profunda
à organização sindical e popular, aos partidos de esquerda e aos setores
reformistas da sociedade civil, o que nas condições atuais exigiria uma ruptura
com a legalidade; ou bem a burguesia coopta um setor da oposição democrática e
popular, estabelecendo o tão sonhado pacto social; ou as forças de esquerda
conseguem virar o jogo. O objetivo do PT deve ser no sentido de viabilizar este
último desenlace. É a partir desta perspectiva que enxergamos nossa intervenção
na conjuntura atual.
A instabilidade pode ser
democrática
A
instabilidade no Brasil é social: a decadência, a marginalização, a piora nas
condições de vida estabelecem uma tensão surda, um ruído de fundo, uma guerra
civil de baixa intensidade. A instabilidade é econômica: há mais de uma década
fala-se da crise do modelo econômico, sem que outro tenha sido erguido no
lugar. A
instabilidade também é,
evidentemente, política: não
custa lembrar que até ontem Fernando Collor era celebrado por ter
introduzido “novos temas” na agenda nacional. Vê-se agora que “novos temas”
eram aqueles.
Diante
de um país tão instável, as elites - e não só elas - promovem uma espécie de
culto à estabilidade. Assim tem sido celebrado, por exemplo, por importantes
órgãos da imprensa brasileira e internacional, o afastamento de Collor e seu
julgamento: como uma prova da maturidade da nação. Enfim uma crise de porte é
enfrentada por meios constitucionais.
A moral
da história é bem diferente da exposta acima. Mais uma vez ficou evidente a
profunda instabilidade do país. Mais uma vez ficou patente a incompetência das
elites em gerar um projeto nacional que possibilite superar a crise e deflagrar
um novo período de crescimento do país.
Essa situação
nos faz lembrar
que, no Brasil,
as grandes mudanças sociais e políticas sempre foram
produto combinado de acordos por cima e golpes de força articulados pela classe
dominante. A tentativa presente - de transitar para um novo período histórico,
com acordos por cima, mas sem o recurso a golpes ou medidas do gênero - é em
boa medida inédita e, do ponto de vista das elites, sem sucesso.
Isto decorre de duas razões
principais: a primeira é que não se construiu um consenso, ou algum tipo de
hegemonia, entre as classes dominantes, sobre o projeto nacional que
substituirá o modelo parido pela ditadura e atualmente moribundo[4].
Isto, por sua vez, impossibilita aos
militares apresentarem-se como “promotores da nova ordem” (leve-se em conta,
também, os desgastes da recente experiência ditatorial; o novo contexto
internacional; a proposta de criar uma força armada internacional,
reservando-se aos militares tarefas policiais; e a desestruturação do aparelho
produtivo estatal, que juntos provocam bastante confusão entre os militares).
A outra
razão é também
simples: a oposição
democrática, popular e
socialista vem conseguindo,
até agora, obstaculizar as tentativas que a burguesia
tem feito para aplicar o(s) seu(s) projeto(s).
Nisso
reside o paradoxo da situação: não temos força suficiente para impor o nosso
projeto (que não está tão claro qual seja), mas eles também não conseguem
aplicar completamente o deles (que tampouco está claro). Em parte porque não
existe o projeto da burguesia; em parte porque somos fortes demais para sermos
derrotados apenas por meios institucionais - e, na ausência de maiores riscos à
dominação burguesa, não parece ser possível, nem parece valer a pena adotar, de
momento, outros meios.
Incapazes de
nos derrotar, as
classes dominantes fazem
seguidas tentativas de cooptar a esquerda, que até o momento
vinham se chocando contra a nossa teimosa
insistência em dizer não. Nisso pesavam tanto os vínculos sociais do
partido, que o punham em guarda contra os acenos das elites, quanto a
orientação estratégica do PT, que pelo menos até agora vinha se mantendo
distante do tradicional adesismo comunista. É exatamente por isto que nos
preocupa a atitude do PT diante da crise do governo Collor.
As
classes dominantes fizeram de tudo para evitar que a crise atingisse também o
projeto neoliberal e as elites que o sustentaram. Para isso, elas desenvolveram
toda uma operação ideológica, que
visava estabelecer um
cordão sanitário que
protegesse - a elas
e a seu projeto - da podridão collorida.
Diante
disso, era de se esperar que o PT mirasse não apenas Collor, mas também o
projeto neoliberal e as elites. Não foi esse o tom, entretanto, da intervenção
do partido no movimento Fora Collor. A partir de uma posição correta - a
necessidade de estabelecer alianças que garantissem o impeachment - nos
colocamos muitas vezes na posição de fiadores do processo e, em nome disso,
agimos com cautela desnecessária na hora de defender nossas próprias posições.
Para
afastar Collor, preservando a “agenda modernizante”, as classes dominantes desenvolveram também uma operação política,
para comprometer a oposição democrática e popular com o esquema de poder que
seguiu-se ao day after.
Nesse
particular, o sucesso da operação foi praticamente completo. Incorporaram-se ao
governo Itamar não apenas quase todos os partidos de esquerda, mas até o PT foi
comprometido - pois participou das discussões sobre a composição do governo e
da indicação (envergonhada) de Walter Barelli - situação que poderia ter se
agravado se o Diretório Nacional, numa histórica votação, não tivesse deixado
claro que nosso lugar é na oposição.
Nesse
episódio todo, o comportamento da Executiva Nacional do PT revelou uma
tendência muito forte à conciliação. O que teve início ainda antes do movimento
Fora Collor, quando o partido adotou uma tática recuada. O que teve
prosseguimento durante o movimento Fora Collor, com a aproximação do PT e dos
setores da oposição conservadora, com o risco de confundir perfis - coisa que
não ocorreu, em boa medida, graças ao “sectarismo” de nossa base. O que fica
também evidente na discussão sobre o governo Itamar, quando alguns querem
participar do governo, e outros consideram como nossa tarefa contribuir para a
governabilidade de Itamar.
Essa
tendência conciliatória presente na Executiva Nacional do PT vincula-se a uma
concepção incorreta que vem crescendo no partido, acerca do papel do PT e das
eleições de 1994. Trata-se de uma somatória de posições, de atitudes e de
concepções que abrem caminho para uma estratégia alternativa, profundamente
diferente daquela que o PT vem defendendo ao longo dos últimos anos.
O institucionalismo
A
hipótese estratégica central do PT é conhecida: nosso caminho para o poder
passa por ser governo. Trata-se, sem dúvida, de uma política bastante arriscada
- como de resto a experiência chilena já demonstrou.
Afinal, mesmo desalojadas do governo
federal, as elites manterão suas relações internacionais, seu poder econômico,
sua influência sobre os meios de comunicação e as forças armadas, sua presença
no legislativo, no judiciário e noutros níveis do executivo e da burocracia
governamental - e, a partir de lá, tudo farão para cooptar, submeter,
desestabilizar ou, no limite, inviabilizar a execução do programa democrático e
popular.
Por isso, criar as condições para uma
vitória eleitoral - por exemplo, em 1994 - é também criar as condições que
tornarão possível aplicar o nosso programa, ou seja, governar. E é dos
desdobramentos concretos da vitória e da ação governamental que pode, ou não,
resultar um avanço no sentido do socialismo.
Ocorre que um programa democrático e
popular atenta, necessariamente, contra interesses solidamente estabelecidos,
porque está estruturado em torno de um objetivo central: incorporar ao Brasil,
às vidas econômica, social, política e cultural, a enorme maioria de nosso
povo, que encontra-se marginalizada. Uma operação desta magnitude supõe impor
uma derrota profunda às elites.
Considerado de um ponto de vista
estritamente eleitoral e institucional, trata-se de um problema de difícil
solução: afinal, a maioria das forças políticas que podem se aliar a nós
rejeita a radicalidade das reformas que propomos; assim, ou bem não
conseguiríamos vencer, por falta de alianças; ou bem não conseguiríamos governar,
por falta de aliados.
A
solução que setores do partido têm apresentado para este problema é muito
simples: trata-se de rebaixar nosso programa, viabilizando assim a criação de
um arco mais amplo de alianças, o que possibilitaria tanto a vitória eleitoral,
quanto o governo. É claro que isto dilataria no tempo a execução das reformas
necessárias ao país. Mas seria um caminho mais seguro do que o aventureirismo
de querer vencer e governar sozinhos.
O bom
senso deste argumento é apenas aparente e esconde um paradoxo: supondo que fosse factível compor, em torno
do PT, o arco de alianças com que sonham tantos setores do partido, teríamos
como resultado não um governo democrático e popular, disposto a realizar
reformas estruturais na perspectiva do socialismo; mas sim um governo cujo
limite máximo seria enfrentar a crise brasileira, nos marcos do capitalismo[5].
Noutras palavras: a aliança não se daria em torno de nós ou de nosso programa,
mas em torno de outro programa e forças políticas[6].
Pode até
ser que um
governo federal petista
não consiga aplicar o programa democrático e popular e
que, efetivamente, termine mantendo-se nos
estritos limites do
capitalismo. A questão, contudo, não é saber se
conseguiremos ir até o final na aplicação do programa, ou se ficaremos pela
metade; o que está em questão é saber se nós vamos tentar criar as condições
para aplicar até o final nosso programa. O risco que se esconde por trás dessa
busca desesperada pela ampliação do leque de alianças é, já de saída,
desistirmos de boa parte de nossos objetivos.
A história
é bastante cruel
com quem age
desta maneira. Conseguiríamos no máximo a desconfiança e o
desânimo de nossas bases sociais e eleitorais, sem conquistar outros setores.
E, diga-se de passagem, sem
reduzir a animosidade
das elites contra
nós[7] -
como demonstrou a
recente campanha eleitoral,
especialmente na cidade de São Paulo.
O mais
grave, contudo, é a hipótese que está subjacente àquela proposta: a de que o
Brasil poderia experimentar, sem rupturas maiores, uma sequência de governos
reformistas, democráticos e progressistas. Somente este horizonte torna
razoável defender que o PT suavize agora suas reivindicações e adote uma
estratégia gradualista.
Quanto pior, pior
As forças
de esquerda precisam
pensar mais sobre
as consequências políticas da
acelerada degradação das condições de vida da maioria de nosso povo. Há mais de
uma década que as liberdades políticas vêm se ampliando, há mais de uma década
que os movimentos sociais pelejam por reformas parciais, e há mais de uma
década aumenta o número de pessoas que
estão abaixo da linha da miséria.
A
miséria, quando se apresenta desorganizada, é facilmente manipulável pelas forças de direita, que a utiliza não apenas
como instrumento de pressão contra os assalariados e os setores médios, mas
também como reserva eleitoral e, inclusive,
pretexto para defender governos fortes e soluções policiais para as
questões sociais, o que encontra apoio inclusive entre os próprios miseráveis -
que aliás parecem ter ganho muito pouco
com a democracia.
Sabemos
que, por mais revolucionário que seja um governo federal petista, o processo de
elevação das condições de vida da maioria
do povo será
necessariamente lento. Por
isso mesmo, trata-se de correr contra o tempo, porque as
demandas são enormes e certamente serão amplificadas diante de um governo de
esquerda, que desperta expectativas de mudança rápida.
Se não
soubermos administrar estes elementos - a expectativa, a esperança, que, aliás,
são os principais motivos que levam as pessoas a votar num partido socialista -
se o principal componente de nossa estratégia for a moderação, corremos o risco
de ser abandonados exatamente pelos que confiaram em nós[8].
A
alternativa - temida por alguns, sonhada por outros - de um governo moderado,
que decepcionaria os setores mais radicais de nosso eleitorado, mas que
conseguiria levar a cabo reformas de base no país, não nos parece sustentável
nem convincente. Cabe perguntar: o povo sustentaria um governo que não o
defende? A direita permitiria um governo de esquerda sem apoio popular?
O Chile
mostrou que a
estratégia gradualista, moderada,
do passo a passo, pode terminar em tragédias maiores do que o
aventureirismo vanguardista.
Sem ilusões
A
política apresentada por setores do partido - rebaixar o programa, ampliar o
leque de alianças, moderar a oposição, reduzir o horizonte de nosso governo -
nos parece a pior tática possível.
Em
primeiro lugar, porque a tradição das elites brasileiras nunca foi
a de negociar
ou tolerar as
ações independentes dos
“de baixo”. Aqui,
ao contrário da
Europa, em que
a burguesia em parte aceitou, em parte viu-se forçada a
deixar que forças de esquerda administrassem por ela a crise do capitalismo, as
elites brasileiras não têm largueza de visão nem prática democrática.
Ademais,
as elites possuem suas próprias alternativas para enfrentar as eleições de 1994,
podendo dispensar uma eventual aproximação com o PT. Mesmo forças que hipoteticamente
estariam mais próximas de nós - o PDT, o PSDB - além de possuírem alternativas
próprias, demonstraram um tal nível de vacilação diante do governo Collor que
nada garante que, em 1994, aceitem marchar
conosco. O PSDB,
aliás, mostrou que
possui setores suscetíveis inclusive ao malufismo, ao mesmo
tempo em que sua principal estrela - o senador Mário Covas - recusou-se a
gravar seu apoio a Suplicy[9].
O
caminho para o PT crescer - e inclusive conquistar a base social de outros
partidos - é semelhante ao que seguimos durante a Nova República: a oposição
radical, sem subterfúgios, sem meios-termos, sem ambiguidades, evitando ao
máximo confundir, perante o povo, nosso perfil com o dos demais partidos.
Mostrar
nossas diferenças em relação a “tudo que está aí” é essencial, inclusive para
ganhar o apoio das maiorias desorganizadas, marginalizadas, “descamisadas”
da sociedade[10].
Sem ganhar estes setores, será muito difícil sustentar um programa consequente
de reformas. Mas para fazê-lo teremos que mudar nosso discurso e nosso jeito de
fazer política; executar uma ação governamental que incorpore à atividade
econômica os milhões de deserdados sociais - condição imprescindível para lhes
assegurar uma cidadania política que não seja meramente formal; e aprender a
trabalhar com o imaginário, o simbólico, e nos dotarmos dos mecanismos de
comunicação que viabilizam fazê-lo massivamente.
Naturalmente, é
improvável que consigamos,
no curto espaço
de dois anos,
dar conta das
tarefas acima relacionadas.
Entretanto, uma das maravilhas da luta política é que se pode conseguir
em um dia o que poderia demorar anos. Por isso é que só conseguimos conceber a
vitória de Lula, em 1994, num contexto de radicalização de paixões, de disputa
política aguda, em que nós despontemos como a única força disposta de fato a
realizar reformas profundas na sociedade brasileira.
Raciocínio
semelhante aplica-se ao governo. Uma coalizão de esquerda só se sustentará caso
leve até o fim seu programa. É ilusão achar que, transigindo em nossos
objetivos, será possível evitar retaliações de uma direita consideravelmente
mais forte. Ao contrário, só uma política radical - leia-se, a que vai
até o máximo que nossas forças permitem - criará as
bases populares e institucionais para um governo democrático e popular.
Em resumo: uma política baseada num
acordo de cavalheiros, na ampliação do nosso leque de alianças à custa de um
programa de reformas mais tímido, bem como à custa da redução do nível de ação
e de radicalidade da esquerda, só serviria para reduzir o nosso poder de fogo,
debilitando o cacife que poderia forçar outros setores a negociar conosco.
O caminho da conciliação desmoraliza
o PT, desfigura a esquerda. Nos faz perder apoios orgânicos e eleitorado. Nos enfraquece.
Enfim, é o caminho para uma derrota em 1994.
Eleição sem organização?
Partimos da
hipótese de que o caminho
para uma vitória
eleitoral consequente em 1994 deve combinar dois movimentos, em certa
medida contraditórios. De um lado, uma oposição radical ao governo de plantão,
às elites, à sua política econômica, a seus partidos, que nos apresente como o
que de fato somos: uma alternativa a “tudo que está aí”.
Ao mesmo
tempo em que firmamos um perfil político-ideológico diferenciado no plano
nacional, devemos consolidar apoios sociais, partidários, institucionais, de
massa, à política concreta de reformas sociais, econômicas e políticas que
estamos defendendo. O que só se fará, aliás, se tivermos estabelecido aquelas
diferenças.
Este
duplo movimento é necessário para evitar ao máximo que nossa eventual vitória nos encontre sem uma retaguarda
social mobilizada e organizada. E isto é fundamental, porque não acreditamos
que um governo democrático e popular seja outra coisa senão um governo de crise,
de enfrentamentos.
A
principal qualidade de um governo democrático e popular deve ser
a capacidade de
articular apoios políticos,
especialmente de massa. Isso exige mais que capacidade de gerenciar o
cotidiano; exige mais que competência técnico-administrativa e honestidade.
Se queremos aplicar um programa
democrático e popular na perspectiva do socialismo, carece ainda retomar nosso
discurso socialista, nosso combate ideológico ao neoliberalismo, nossa crítica
aos fundamentos da modernidade que o discurso hegemônico apresenta como
disfarce[11].
É evidente que uma política deste
tipo supõe um lugar destacado para a ação orgânica do partido: preservar e
ampliar nossa estrutura militante, garantir o bom funcionamento de nossas
instâncias democráticas, integrar a política das bancadas e das prefeituras à
política do conjunto do partido, garantir uma efetiva coordenação entre a ação
partidária e a ação dos movimentos sociais a nós ligados etc. E tudo isto, por
sua vez, pressupõe uma política e uma direção dispostas a isso.
Ao mesmo
tempo em que
nos empenhamos pela
vitória de 1994, é preciso também levar em conta os
possíveis cenários alternativos. Por exemplo, uma derrota - seja no primeiro,
seja no segundo turno - pode provocar uma crise profunda na militância, que tem
sido levada a imaginar a próxima eleição presidencial como a hora da onça beber
água.
Outro
cenário possível é o da vitória da esquerda, mas sob regime parlamentarista e
com um Congresso oposicionista. Um terceiro cenário, comum em países como o
Brasil, é o da interrupção total ou parcial do processo democrático. Nunca é
demais lembrar que crises como a que o país está vivendo agora sempre foram
solucionadas manu militari.
A
existência de cenários alternativos ao Feliz 94 deve servir como um alerta de
que nosso caminho para o poder passa por vitórias eleitorais e por um governo
democrático e popular somente no caso de manterem-se as condições atuais da
luta política. E mesmo nesse caso, o caminho para o poder passa pelas eleições,
mas não se limita nem se reduz a elas.
[1] Folha de S. Paulo, 19.12.1992.
[2] Linha Direta nº 112, de 20 a 26 de novembro de 1992.
[3] Folha de S. Paulo, 6.12.92.
[4] Aliás, tenho grandes dúvidas sobre se a burguesia
brasileira é capaz de gerar um projeto nacional semelhante aquele que orientou
a ação dos militares durante a ditadura. Nesse sentido, a própria burguesia
passa por um teste: ela conseguirá, sem ditaduras, sem golpes, sem intervenção
militar, formular um projeto hegemônico e ganhar apoio social e político para
implantá-lo? Como já disse, tenho dúvidas sobre isso. Até porque uma das
condições para a formulação de um projeto desta natureza seria a existência de
uma alternativa democrática e popular consistente, o que também não existe de
maneira muito clara. Com isso, na ausência - de um lado e de outro - de
projetos nacionais mais definidos e antagônicos, o país vai descambando.
[5] Como disse o prefeito de Goiânia, Darci Accorsi, “se
o Lula assumir a presidência da República, em 1994, o que ele vai fazer é gerir
a crise do capitalismo”. (Brasil Agora nº 29, de 7 a 20 de dezembro de l992).
[6] É por isso que julgamos extremamente oportuna a
crítica que César Benjamin dirigiu às Diretrizes para um programa emergencial
de política econômica: “É uma tragédia; estamos
perdendo nossa capacidade
crítica e deixando
de ser um
partido de reforma
social, justamente no momento histórico em que essa bandeira é mais
importante para o Brasil(...) Reformismo, no PT, está virando doença infantil.”
(Brasil Agora nº 30, de 21 de dezembro a 29 de janeiro de 1993).
[7] Afinal, não estamos na França ou na Espanha, onde uma
elite mais arejada - é verdade que às custas de duas guerras mundiais, de uma
guerra civil, das pressões combinadas do movimento socialista nacional e
internacional - aceitou que partidos socialistas executassem o programa
neoliberal. Nossa burguesia não é suficientemente esclarecida.
[8] Foi em certa medida o que ocorreu l988 quando
conquistamos os votos “descamisados”, que foram atraídos por Collor em l989 e
por Maluf em 1992. Paradoxalmente, a administração democrática e popular
realmente priorizou os investimentos sociais e a periferia. O que reforça a
ideia, em nosso entender, de que não basta “inverter as prioridades”
administrativas sem, simultaneamente, travar a batalha política - perdida pela
administração e pelo conjunto do PT em episódios como o IPTU ou a greve dos
condutores. Registre-se que André Singer, numa análise publicada pela Folha de
S. Paulo em 13.12.92, argumenta num sentido exatamente oposto.
[9] Apesar disso, há setores do Partido embevecidos com a
possibilidade de compor uma aliança com o PSDB ainda no primeiro turno de l994,
fingindo não ver que sua atitude na eleição paulistana sinaliza qual a
perspectiva do PSDB: tentar ocupar o centro, que as dificuldades do quercismo
ameaçam deixar vago. E para isto, nada mais improvável do que uma aliança entre
o PSDB e o PT - salvo se o PT quiser ocupar lugar secundário nesta aliança.
[10] Numa palestra feita no Instituto Cajamar, Eric
Hobsbawm bateu exatamente nesta tecla: para ele, vivemos um período histórico
onde as forças anti-establishment de direita têm conseguido capitalizar
a insatisfação popular contra a política e os políticos. A vantagem relativa do
PT é exatamente não ser visto como parte integrante do establishment.
Cauteloso, Eric Hobsbawm acrescentou a esta última frase um “hasta la fecha”...
[11] Isso supõe, como diz Emir Sader, em artigo publicado
no Brasil Agora nº 25, de 12 a 25 de outubro de 1992, enfrentar “o risco da
cooptação da esquerda por parte das elites tecnocráticas derrotadas na versão
Collor, mas revividas política, ideológica e tecnocraticamente em parte não
desprezível da oposição”; enfrentar “a força ideológica acumulada pelo
neoliberalismo, inclusive na esquerda e no próprio PT”, expressa por exemplo
numa “estranha comunidade de parlamentares economistas, que convivem no
Congresso de forma promíscua ideologicamente, como se os imperativos técnicos
da economia se impusessem sobre as prioridades políticas e sociais. Basta
recordar como o plano Collor chegou a ser saudado por economistas do PDT, do
PMDB e do próprio PT”.
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