quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Recuperando texto velho: uma polêmica de 2005 acerca do referendo sobre o comércio de armas de fogo e munições

Faz bastante tempo: no dia 19 de outubro de 2005 o Valério Arcary publicou um artigo no jornal Opinião Socialista (do PSTU), apresentando a opinião dele sobre o referendo acerca da comercialização de armas de fogo e munições.

No dia 22 de outubro, o Portal do PT publicou e Opinião Socialista fez a gentileza de republicar minha réplica ao artigo de Valério. 

Segundo nos informa o site do TSE, no dia 23 de outubro de 2005 "o povo brasileiro foi consultado sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munições no país. A alteração no art. 35 do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003) tornava proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º do estatuto. Como o novo texto causaria impacto sobre a indústria de armas do país e sobre a sociedade brasileira, o povo deveria concordar ou não com ele. Os brasileiros rejeitaram a alteração na lei".

A pergunta do referendo era: "você é a favor da proibição do comércio de armas e munição no Brasil?".

Segundo o Tribunal Superior Eleitoral votaram pelo "não" 59.109.265 eleitores (63,94%) e pelo "sim" 33.333.045 (36,06%). O índice de abstenção foi de 21,85% (26.666.791 eleitores). Votaram em branco 1.329.207 (1,39%) e nulo 1.604.307 (1,68%) pessoas.

É importante lembrar destes fatos, para não achar que certas pautas do bolsonarismo são flor exótica ou raio em céu azul.

Segue o texto que escrevi na época, me opondo a posição defendida então por Valério Arcary (não sei o que ele pensa hoje a respeito do tema).

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Até tu, Valério?

O companheiro Valério Arcary é uma figura! Mesmo quando fala as maiores barbaridades, continuamos gostando dele, seja por suas qualidades pessoais, seja por conseguir diferenciar a dureza do debate político, da necessária urbanidade e civilidade que devemos buscar manter no trato pessoal.

Talvez por saber disto, ele resolveu “forçar a amizade“, remetendo para alguns de nós (eu, inclusive) um “rascunho“ de um texto seu, em favor do NÃO no referendo do dia 23 de outubro. Eu tentei demovê-lo do comprometimento com esta tese. Sem sucesso, até porque Valério Arcary é um dos teóricos do PSTU, partido que assumiu com vigor a campanha do NÃO.

Sendo assim, vi-me liberado para exercer a crítica, que faço com base no “rascunho“ citado. Desconheço, ao escrever esta mensagem, se Valério concluiu o texto, se o divulgou mais amplamente e se o corrigiu em algum aspecto.

Valério iniciou seu rascunho, intitulado “Três razões para votar Não no Referendo“, dizendo que “o referendo do próximo domingo, seja qual for o resultado, não vai permitir melhora alguma na situação de insegurança em que vivemos“. Mas, diz ele, “somos obrigados a votar“.

Não fica claro, para mim, se ao dizer que “somos obrigados a votar“, Valério está tentando criar empatia com o senso comum, para quem ser chamado a decidir algo é angustioso; e para quem “gastar dinheiro“ com democracia é desperdício. Ou se Valério, no íntimo, preferia chamar a abstenção ou o voto nulo, mas não se sente em condições de fazê-lo.

Lembro que nos anos 1960: quando o povo decidiu majoritariamente pelo retorno do presidencialismo, um setor da esquerda dizia “nem sim, nem não“.

Seja como for, a premissa utilizada por Valério está ao menos parcialmente equivocada. Dependendo do resultado, pode haver uma piora na situação de insegurança. Isto porque toda luta política (e o referendo é uma luta política) afeta pelo menos a percepção dos indivíduos, dos grupos sociais, dos partidos, das classes.

Neste sentido, mesmo que a decisão do referendo não altere a situação objetiva, haverá alterações subjetivas no estado de ânimo do povo. E, caso o NÃO saia vencedor, não terá sido pelos motivos defendidos pela ultra-esquerda (PSTU e setores do PSOL), mas sim graças à influência do conservadorismo no seio do povo.

Valério diz que “uma perspectiva socialista aconselha que a análise do referendo seja feita por um ângulo de classe“. Esta é uma premissa correta. O problema é: o que, exatamente, significa “analisar o referendo“ por “um ângulo de classe“?

Valério dá a entender, pela seqüência de seu raciocínio, que analisar a questão do “ângulo de classe“ é ver quais seriam os efeitos do SIM e do NÃO sobre cada setor social. Sua primeira frase, ao tentar fazer isto, é dizer que “a burguesia não irá se desarmar“.

Vejamos isto melhor. As armas da burguesia, não é ela própria quem carrega. Este papel cabe às empresas de segurança privada e, principalmente, ao Estado.

O referendo não vai “desarmar“ a burguesia, nem poderia, pois para tal seria necessário proibir toda segurança privada e alterar o caráter de classe do Estado.

Portanto, dizer que a “burguesia não irá se desarmar“ não vale como argumento em favor do NÃO. Com o perdão da comparação, seria como ser contra o SUS, porque ele não “desarma“ o sistema privado de saúde.

De nossa parte, achamos que o debate sobre o comércio de armas é um bom “pretexto“ para tratar, junto à população, sobre as causas sociais e políticas da violência, sobre a necessidade de acabar com a segurança privada e sobre o caráter de classe do Estado.

Dando seqüência à sua análise “de classe“, Valério diz que “o Sim no Referendo levará à proibição da comercialização de armas da população civil“.

Mas quem é esta tal “população civil“? Será a imensa maioria do povo? Ou será um pequeno setor, que compra armas legalmente?

Valério sabe muito bem quem é esta “população civil“: a “pequena burguesia proprietária“, que ele próprio aponta ser uma “base social histórica do discurso da ‘Rota na rua’, do malufismo e das versões regionais da direita irritada“.

Apesar de reconhecer isto, Valério saca do bolso do colete o seguinte raciocínio: “a proibição atingirá (…) todos os que não poderão pagar pela segurança privada“.

Quem são estes “todos“? Segundo Valério, seriam os “trabalhadores manuais (…) que vivem em bairros periféricos próximos às favelas controladas pelo tráfico, em permanente conflito com os lumpens, não poucas vezes resistindo às pressões da marginalidade dentro de suas famílias, e desconfiados da Polícia. E são as várias camadas da classe média (…)assustada com a queda do seu padrão de vida, e apavorada pela insegurança e a impunidade“.

O que Valério está querendo dizer, noutras palavras, é que os trabalhadores residentes em bairros com forte presença da marginalidade, bem os setores médios “apavorados“ devem garantir sua segurança pública através da auto-defesa.

Levemos este raciocínio adiante: para executar uma auto-defesa eficiente, contra bandidos geralmente muito bem armados, será necessário organizar milícias, treiná-las, obter armamento de qualidade. E como isto fará com que estas milícias concorram com o aparelho de Estado, será preciso a cooperação ou pelo menos a anuência das forças armadas.

Ora, isto só é possível de acontecer em duas situações: ou para as classes trabalhadoras, num quadro revolucionário; ou para as classes proprietárias, num quadro de democracia burguesa.

Ou seja: o raciocínio “de classe“ de Valério acaba dando a volta sobre si mesmo e termina numa conclusão que justifica a auto-defesa reacionária praticada, no Brasil, pelas classes proprietárias, tendo como vítima os pobres em geral. Auto-defesa reacionária que encontra respaldo ideológico nos instintos animais, fascistas, especialmente dos setores conservadores das chamadas classes médias.

O efeito prático de uma eventual vitória do NÃO seria validar o direito à auto-defesa reacionária, exatamente daqueles que podem comprar armas e/ou que podem pagar a segurança privada.

Portanto, ao contrário do que pensa e deseja Valério, a vitória do NÃO ajudará a preservar “a imunidade, ainda que relativa, das classes proprietárias“. Pois de nada adianta, para as grandes maiorias, ter o “direito“ (de comprar armas), mas não ter os meios de comprar e de usar de maneira adequada estas armas.

Valério diz, em seu rascunho, que “o Estado, o regime político democrático-liberal e o governo sairão reforçados com a vitória do Sim“.

Valério tem razão ao dizer que a vitória do SIM será, na prática, uma vitória do governo. Mas falta alguma razão ao resto de seu raciocínio.

Em primeiro lugar, é evidente que o referendo não vai eliminar as causas sociais e políticas profundas da violência, não vai eliminar a corrupção na política e nas forças armadas, nem vai eliminar a praga da segurança privada.

Mas o que estes alhos tem a ver com aqueles bugalhos? Se adotarmos a linha implícita no raciocínio de Valério, não deveríamos ter votado na emenda das diretas, pois o projeto do Dante de Oliveira não previa a quebra do monopólio dos meios de comunicação, uma medida indispensável para garantir o voto realmente livre e democrático.

A linha de argumentação do Valério confunde marxismo com maximalismo, pois desautoriza a defesa de qualquer medida parcial. As perguntas que devem ser feitas são, em nossa opinião, bem mais simples: impedir o comércio de armas ajuda a reduzir mortes desnecessárias? Ajuda a impor limites ao mercado da morte?

Colocada a questão na condicional (impor limites, ao invés de eliminar), vejam as respostas que poderiam ser dadas para algumas das perguntas de Valério:

Valério: “Alguém pode esquecer que a violência do latifúndio contra os sem-terra não dependeu nunca de armas legalizadas?“

Não, ninguém pode esquecer disso. Mas quando mais difícil e ilegal for para eles, melhor para nós.

Valério: “Alguém tem razões para duvidar que o mercado paralelo de armas e munições, onde os lucros vão disparar permitindo uma acumulação meteórica de fortunas, será abastecido pelas Polícias e pelas Forças Armadas?“

Não, ninguém pode esquecer disto. Mas é melhor dificultar as coisas para eles, pois hoje a fabricação e o comércio de armas constituem atividades legais, que se dependesse de nós deveriam ser extintas ou, enquanto não for possível extinguir, devem ser profundamente limitadas e controladas. Aliás, causa espécie no rascunho de Valério a ausência de qualquer menção aos interesses dos capitalistas que fabricam e comercializam legalmente armas.

Valério: “Alguém tem a certeza que o volume armas em circulação irá diminuir se o Sim for vitorioso?“

Certeza ninguém tem. Como ninguém tinha certeza que o uso de cinto iria reduzir o número de mortes e traumas em acidentes de trânsito. Mas nem por isso devemos deixar de tentar.

Aceita a tese de que a medida em debate no referendo é uma medida parcial, o que devemos verificar é se ela ajuda a construir um caminho a nosso favor. E não, como faz Valério, defender o NÃO porque, entre outras coisas, o SIM não resolveria todos os nossos problemas.

Vejam só o que diz Valério: “A percepção de que a vulnerabilidade das casas será maior (…) poderia estimular uma onda de aquisição de armas por parte de pessoas que nunca antes se sentiram motivadas. Por outro lado, a audácia da delinqüência pode aumentar“.

É incrível como a ultra-esquerda adota com facilidade teses de direita. A tese da “audácia da delinqüência“ e da “maior vulnerabilidade“ é utilizada pela direita para defender a pena de morte e outras medidas violentamente antipobres.

Segundo os teóricos da direita, sabendo que serão punidos com a morte, os criminosos pensarão duas vezes antes de fazer. Implícito neste raciocínio está a “tese“ segundo a qual a “vulnerabilidade“ e a “insegurança“ devem ser combatidas com medidas repressivas, na linha da “resposta armada“. Não deixa de ser curioso que Valério flerte com este argumento, em tudo contrário a fundamentação inicial de seu texto, segundo o qual o SIM não levaria em conta as razões sociais e políticas profundas da violência.

Aqui, novamente, há um debate de fundo: que tipo de “ambiente social“ nós queremos estimular? Queremos um clima de “faça a justiça com suas próprias mãos“ ou queremos que haja um crescente constrangimento social contra a criminalidade e suas causas estruturais?

Uma questão interessante é saber por quais motivos Valério não percebe o caminho perigoso que resolveu trilhar, em sua defesa do não?

Acredito que sua cegueira momentânea deve-se ao fato dele participar do debate sobre o referendo, invocando a seu favor “a tradição marxista [que] sempre foi contra o monopólio da violência pelo Estado“.

Para começo de conversa, a tradição marxista não é exatamente esta.

A “tradição marxista“ é “contra“ a existência de Estado, entre outros motivos porque encara esta existência como um sinal de que a sociedade segue dividida em classes. Uma sociedade comunista, sem classes sociais, é uma sociedade sem Estado. Uma sociedade onde a “administração das pessoas“ será substituída pela “administração das coisas“.

A “tradição marxista“ considera que o Estado desaparecerá, à medida que a sociedade dividida em classes desapareça.

Mas para que isso aconteça, será necessário um longo processo de transformações políticas, ideológicas, culturais e sociais. Longo processo que, para ter início, supõe que as classes trabalhadoras assumam o domínio e a direção da sociedade.

Noutras palavras, supõe uma revolução político-social, que construa um novo Estado, a serviço da construção de uma nova ordem social.

Nisto reside um paradoxo que anarquistas e reformistas em geral criticam, na “tradição marxista“: para que o Estado venha a desaparecer algum dia, será necessário, durante um determinado tempo, que exista um Estado que defenda os interesses das maiorias sociais, contra os interesses das antigas classes dominantes.

A “tradição marxista“ argumenta que este Estado revolucionário, de transição, não será mais um Estado no sentido pleno da palavra, pois não será mais um instrumento de opressão das minorias sobre as maiorias. Mas reconhece que continuará sendo um Estado, pois exercerá sua força, seu poder, contra as antigas classes dominantes, para impedir que estas restaurem –por movimentos internos ou externos ao país– a antiga ordem social.

Como este “Estado revolucionário“ tratará a questão do “monopólio da violência“?

Esta questão podia ser tratada de um ponto de vista teórico, antes da Comuna de Paris. Mas agora, depois de décadas de experiências revolucionárias reais, concretas, é no mínimo temerário dizer que “a tradição marxista [que] sempre foi contra o monopólio da violência pelo Estado“.

Tomada ao pé da letra, esta afirmação de Valério implicaria em permitir que todo e qualquer cidadão ande armado. Mas o bom senso e a experiência prática mostram que qualquer governo revolucionário impõe algum nível de restrição e controle ao porte de armas. Por exemplo, limitando este “direito“ às classes revolucionárias, submetendo as milícias populares ao controle das forças armadas etc. E, importante dizer, as “milícias populares“, nos processos revolucionários, são parte integrante do aparelho de Estado.

Portanto, o que Valério poderia dizer é que a tradição marxista sempre defendeu que a defesa armada não fosse monopólio exclusivo de militares profissionais.

Neste ponto, entretanto, reside o pulo do gato, que leva a argumentação de Valério (e de muitos marxistas) a flertar com outra tradição teórica e política, que não tem nada de socialista.

Trata-se da tradição liberal, expressa entre outros pelos pais fundadores do Estado norte-americano. É com base nesta tradição que, nos Estados Unidos, existem muitas milícias de direita, conservadores até o fundo da alma, fortemente armados, que estão em guerra contra o comunismo, a ONU e contra o governo federal… norte-americano.

É por isso que dirigentes do PSOL e do PSTU invocam Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, na tentativa de dar “suporte teórico“ à defesa do NÃO. Mas deveriam refletir melhor sobre as diferenças existentes entre esta tradição liberal e a tradição marxista.

Por exemplo: o que fazer “enquanto a revolução não vem“? Muitas coisas podem e devem ser feitas. Mas entre elas, certamente não está confundir o quadro de “guerra civil latente“, provocada pela miséria social e pela criminalidade de colarinho branco, com a existência de um ambiente revolucionário.

Quem faz esta confusão, deveria ser conseqüente e propor a seguinte palavra de ordem: “revolucionário que é revolucionário, não faz boletim de ocorrência“.

Pois, cá entre nós, fazer B.O. é reconhecer o “monopólio da violência“ por parte do Estado; e como o “Estado usa este monopólio“ em defesa da minoria, ao fazermos um boletim de ocorrência estamos ajudando na preservação da “ordem“, portanto, da propriedade privada.

E antes que alguém me acuse de estar fazendo galhofa, leiam a frase de Valério: “O argumento que justifica a defesa do Sim com uma defesa do Estado de Direito não é sério. No Brasil da impunidade convocar a esquerda a confiar na Polícia, na Justiça, no Parlamento, enfim, nas instituições do Estado, confessa um grau de alienação para além do aceitável“.

Eu acho que “alienação“ realmente faz parte desta polêmica, mas está presente principalmente na ultra-esquerda que defende o NÃO com este tipo de argumento.

Por óbvio, o problema não é “confiar“ nas instituições do Estado. O problema é como viver e sobreviver, lutar e transformar, uma sociedade concreta, sob hegemonia da burguesia, sob a égide do Estado burguês. O problema é como acumular forças, disputar hegemonia, construir condições para fortalecer as organizações socialistas, neste contexto.

Para tal, vale lembrar o que nos ensinou o velho Engels, naquela obra genial que é a Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado: o Estado surge historicamente como expressão de uma tentativa que a sociedade faz, de evitar que os conflitos de classe levem à destruição completa da sociedade. Por óbvio, numa sociedade de classes, esta tentativa é conduzida pela classe dominante, serve aos interesses históricos da classe dominante, o que confere caráter de classe ao Estado.

Este raciocínio nos ajuda a entender por quais motivos, em situações históricas muito peculiares, um Estado “estruturalmente“ capitalista pode implementar medidas “conjunturalmente“ favoráveis aos interesses das classes trabalhadoras. Esta flexibilidade relativa nos obriga, aos que somos socialistas e revolucionários, a adotar, frente ao Estado, uma atitude política, que considere os aspectos estratégicos e táticos envolvidos no problema.

Por exemplo: Valério afirma que “enquanto se mantiver a injustiça econômica e social não haverá paz“. É verdade isto? Sem dúvida. Mas que conseqüências tiramos daí? Por acaso isto nos impede de fazer armistícios nas guerras? De fazer acordos parciais? De tentar minimizar os efeitos da injustiça e da violência estruturais do capitalismo?

Na minha opinião, o modo de pensar do Valério, embora lance mão do vocabulário marxista, flerta o tempo todo com o maximalismo. É evidente, por exemplo, que o referendo não trará a paz. Quem fala isto, mente. Mas disto não se conclui que tanto faz.

Vejamos, finalmente, o argumento que Valério utiliza ao final do seu texto: o direito à auto-defesa. Segundo ele, o “direito à auto-defesa se concretiza no direito de não apanhar da Polícia. E isso exige serviços de ordem nos sindicatos e nos movimentos sociais (…) É verdade que a sorte militar de uma insurreição operária e popular depende de divisões nas Forças Armadas, e da distribuição de armas para os setores organizados dos trabalhadores. Mas, o medo das massas é um elemento chave da relação de forças. Um povo desarmado sempre será mais vulnerável“.

Este pequeno parágrafo de Valério mistura três discussões diferentes. Uma, é a “questão das armas“ num processo revolucionário. Outra, é o direito à auto-defesa dos movimentos sociais, num contexto de democracia burguesa. Uma terceira questão é saber o que as duas questões anteriores têm a ver com o referendo do dia 23 de outubro.

Um processo revolucionário, por definição, subverte a ordem jurídica. Por isto, neste contexto, a decisão do referendo valerá tanto quanto qualquer outra definição.

Quanto à auto-defesa, há que responder o seguinte: os movimentos sociais e dirigentes devem ou não exigir do Estado que faça respeitar as liberdades democráticas? A melhor auto-defesa é feita com armas de fogo? Fazer este tipo de auto-defesa, como regra, não constitui, no mais das vezes, um ato de provocação que mais ajuda do que atrapalha?

Quanto ao referendo, ele não impede a auto-defesa, nem é um obstáculo contra uma revolução. É apenas, insistimos, uma medida de restrição ao mercado da morte. Já para Valério, é uma medida que suprime direitos: “por quê seria razoável aceitar que um direito democrático – já estritamente regulamentado – seja reduzido?“

Valério aderiu, como se vê, à tese segundo a qual comprar armas é um “direito democrático“. Mas ele próprio admite que os “direitos“ são construções sociais. Há quem ache um “direito“ dirigir um carro na velocidade de 140 quilometros por hora, fumar em qualquer lugar ou andar sem cinto de segurança. No caso do referendo, o que está em questão é se comercializar armas (não apenas comprar, mas também vender) é ou não um “direito“ aceito no Brasil de 2006.

Como Valério admite que os direitos são “relativos“, ele deveria explicar para que e para quem serve este direito “democrático“, salvo nos casos da “auto-defesa“ e da “insurreição operária“ que, convenhamos, são temas apaixonantes para nós, mas não para o conjunto do povo.

Mas Valério não consegue explicar isso. Ao contrário, se embanana em coisas simples, tais como “alimentar muitas dúvidas que os crimes banais ou a violência doméstica seriam reduzidos. As armas não são as suas causas, mas um dos instrumentos. Podemos admitir que é possível que os acidentes com armas talvez diminuíssem com a proibição. Mas, somente, se viesse a ocorrer de fato uma diminuição do número de armas. Acontece que ninguém sabe se, de fato, a proibição virá a ter esse resultado, porque dependeria de uma adesão popular“.

É evidente que as armas são “apenas“ instrumentos. Mas, em situações socialmente conflitivas como as que vivemos, facilitar o acesso à estes instrumentos facilita a ocorrência de acidentes e mortes.

Sendo assim, a questão é: queremos ou não reduzir tal acesso? Se queremos, vamos tentar. Se vai ou não dar certo, isso dependerá de muitos fatores. O problema é que Valério não quer tentar. Como ele não quer tentar, os elementos de dúvida que ele lança tem como objetivo minimizar os aspectos positivos da proibição, como “imprevisíveis“.

Acontece que o mesmo foi dito de outras medidas restritivas, como limite de velocidade, cinto de segurança, uso de seringas descartáveis, uso de preservativos etc e tal. O referendo versa sobre este tipo de medida restritiva, algo em si bem simples.

Mas, como soe acontecer, é nas coisas simples que aparece o dedo do demônio. Ou, se quiserem, dos mais profundos debates ideológicos e de classe.

Segundo Valério, “pode ou não acontecer uma adesão ao desarmamento. Mas, depois virá uma terrível desilusão. Se a esquerda eleitoral abandona os interesses da base social que durante décadas pretendeu representar, e sucumbe à pressão da campanha do Sim, não surpreende que a direita eleitoral se fortaleça“.

De nossa parte, com todo o respeito, penso exatamente o contrário. Se a ultra-esquerda abandona os interesses da base social que durante décadas pretendeu representar, e sucumbe à pressão da campanha do Não, não surpreende que a direita eleitoral se fortaleça.

A direita eleitoral será a grande vitoriosa, se o NÃO prevalecer no dia 23. As dificuldades ideológicas e teóricas que a ultra-esquerda enfrenta neste debate derivam das pressões pequeno-burguesas que ela sofre. Pressões que levam a ultra-esquerda a tratar o “faça justiça com as próprias mãos“, defendido pela direita mais reacionária, como se fosse o direito à auto-defesa das camadas populares.“

No endereço abaixo está o texto original de Valério Arcary:

https://www.pstu.org.br/tres-razoes-para-votar-nao-no-referendo/

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