sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Texto escrito a pedidos da Territórios Transversais

Fator de transformação

A revista Territórios Transversais pediu que eu escrevesse um artigo sobre o seguinte tema: “Lulopetismo: fator de transformação ou manutenção das bases sociais do Brasil no limiar do Século XXI?”.
Responder exige explicar o que compreendo por cada um dos termos da pergunta: o que são as “bases sociais do Brasil”? Que transformações estão ocorrendo em nossa sociedade? Qual o papel do PT e de Lula nessas transformações?
O Brasil é uma sociedade capitalista, como a maior parte do planeta. O que diferencia a formação social brasileira de outras é o processo específico, histórico, pelo qual o capitalismo se desenvolveu aqui: dependência, desigualdade e democracia restrita.
O desenvolvimento do capitalismo no Brasil, nos momentos de crescimento intenso e de recessão, em épocas de bonança internacional e de crise, foi possível graças à manutenção de imensas taxas de desigualdade social, de fortes restrições às liberdades democráticas (sem as quais a desigualdade seria posta em questão) e de grande dependência externa (ideológica, militar, política, tecnológica, de capitais, de mercados etc.).
Em outros termos: os grandes capitalistas transformaram-se, ao longo do século XX, em classe dominante, mantendo e aprofundando padrões de subordinação externa, exploração econômica e opressão política herdadas de períodos pré-capitalistas. Houvesse mais democracia e bem-estar social, os capitalistas brasileiros não teriam enriquecido como enriqueceram.
Quem olha o Brasil de hoje e compara com o Brasil de 1914, vê um país maior e mais desenvolvido. Mas este crescimento/desenvolvimento foi obtido como? Longos períodos de ditadura aberta ou de restrições fortes às liberdades democráticas mais básicas. Uma constante dependência em relação às metrópoles capitalistas. E uma intensificação, pelos mais variados meios, da exploração das classes trabalhadoras (a de pequenos proprietários e a de assalariados).
Este crescimento/desenvolvimento ocorreu através de intensa luta. No Brasil, a história da transição capitalista (a partir de 1850) e do capitalismo industrial (a partir de 1930) foi marcada por duro enfrentamento entre duas vias de desenvolvimento capitalista.  
Claro que havia setores reacionários, agraristas, contrários ao desenvolvimento, que foram perdendo influência à exata medida que o capitalismo central passou à fase imperialista, de exportação de capitais, portanto em alguma medida estimulando o desenvolvimento de parte da periferia.
Claro que havia socialistas e comunistas. Mas até 1980, estas forças se viram diante de duas situações: ou não tinham influência relevante na luta política e social; ou se convertiam em linha auxiliar das forças que defendiam um desenvolvimento capitalista democrático, contra aqueles que defendiam um desenvolvimento capitalista conservador.
No embate entre capitalismo democrático (que defendia desenvolver ampliando a democracia, a soberania e o bem estar) e o capitalismo conservador (que implicava em desenvolver conservando os níveis de desigualdade, dependência e democracia), quem geralmente levou a melhor até 2002 foram os conservadores.
Há várias causas para isto, mas duas delas têm muito interesse para o debate da situação atual.
A primeira causa é, exatamente, o atraso relativo do desenvolvimento capitalista no Brasil. O capitalismo chegou ao Brasil bem depois de já estar instalado solidamente nas regiões centrais.  Durante muito tempo conviveu com uma formação social que não era hegemonicamente capitalista. E durante todo o século XX, permaneceu existindo uma defasagem entre o nível de desenvolvimento capitalista no Brasil e nos países centrais.
Qual a conclusão que a maior parte das forças políticas tirou deste fato? A de que existe um grande espaço para o desenvolvimento capitalista no Brasil. Motivo pelo qual o desenvolvimento foi e segue sendo palavra-chave na boca das mais variadas correntes ideológicas e forças políticas. Mas qual desenvolvimento?
Aí entra em cena a segunda causa das vitórias conservadoras: certo paradoxo enfrentado pelos que defendem um desenvolvimento capitalista democrático.
A saber: o capitalismo tal como existe no Brasil depende de altas taxas de desigualdade, conservadorismo político e dependência externa. Construir uma via de desenvolvimento capitalista democrática implica, portanto, em choque com os próprios capitalistas. Choque que só pode resultar em vitória dos democráticos, caso estes mobilizem as camadas populares. Cujo movimento traz para o palco questões que entram em choque com os limites do próprio capitalismo.
Por isto os defensores do desenvolvimento capitalista democrático se viram frequentemente diante de uma encruzilhada: ou avançar por uma estrada que daria numa transição socialista; ou conciliar com os defensores do desenvolvimento capitalista conservador. Sendo que estes nunca pagaram para ver, motivo pelo qual é muito comum que os setores conservadores promovam golpes preventivos contra “ameaças comunistas”, que na verdade não são comunistas, mas sim democrático-capitalistas.
Em resumo: o desenvolvimentismo conservador não apenas conta com as vantagens da inércia e da força de quem é dominante, mas também com uma “fragilidade estrutural” do desenvolvimento capitalista democrático.  Fragilidade que pode ser resumida assim: o capitalismo não se dá bem com a democracia.
De 1980 até hoje, o que mudou?
Em primeiro lugar, o desenvolvimento capitalista brasileiro atingiu grande maturidade. Com isto, a classe trabalhadora assalariada passou a ter um peso maior que antes e isto se traduziu numa mudança na liderança e na orientação dos setores defensores de uma via capitalista democrática.
No segundo turno das eleições de 1989, o conflito foi entre extremos: um neoliberal encabeçando os que defendiam um desenvolvimento conservador, um socialista encabeçando os que defendiam um desenvolvimento democrático.
Este fato poderia ter resultado, nos anos 1990, numa mudança dos termos da equação fundamental da história brasileira.  Ao invés do conflito entre duas vias de desenvolvimento capitalista (uma conservadora e outra democrática), poderíamos ter passado a um conflito entre via capitalista e via socialista de desenvolvimento.
Mas não foi isto o que ocorreu. O PT e Lula continuaram liderando o enfrentamento com o conservadorismo. Mas o fizeram a partir de um programa de desenvolvimento capitalista democrático, não a partir de um programa socialista.
Por qual motivo isto ocorreu?
Há explicações para todos os gostos. Mas para quem acredita que os fatos fundamentais da história não podem ser explicados por escolhas subjetivas, mas sim que as escolhas subjetivas é que podem ser explicadas pelos fatos fundamentais, é preciso entender o que ocorreu na luta de classes.
E o que ocorreu na luta de classes, no Brasil e no mundo, nos anos 1990, é fartamente conhecido: um retrocesso do socialismo, uma ofensiva capitalista, uma regressão neoliberal.
Um dos efeitos do neoliberalismo foi enfraquecer a classe trabalhadora brasileira e, com isto, enfraquecer as bases objetivas de uma via de desenvolvimento socialista.
Claro que diante deste fato objetivo, havia diversas alternativas. Uma delas seria dobrar a aposta na defesa de uma via de desenvolvimento socialista, sem mediações. Outra seria passar a ter como objetivo estratégico não mais o socialismo, mas sim uma via de desenvolvimento capitalista democrática. Uma terceira seria fazer um recuo tático, que nos permitisse reconstituir as bases estratégicas de uma via de desenvolvimento socialista.
A partir de 1995, a posição majoritária no PT foi aderir ao desenvolvimento capitalista democrático. Não foi uma mudança de direito, pois o socialismo segue nas resoluções como objetivo estratégico do Partido. Mas foi uma mudança de fato e que adquire cada vez mais cidadania no discurso petista, como se pode constatar pela defesa veemente que vem sendo feita, de um “país de classe média”.
O PT venceu as eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014 e governa o país orientado por esta perspectiva estratégica, capitalista democrática. Neste sentido, foi mais longe do que todos os seus antecessores. Mas também levou mais longe a contradição fundamental de todo os que defendem uma via de desenvolvimento capitalista democrática.
Repetimos o que já dissemos antes: o capitalismo tal como existe no Brasil depende de altas taxas de desigualdade, conservadorismo político e dependência externa. Construir uma via de desenvolvimento capitalista democrática implica, portanto, em choque com os próprios capitalistas. Choque que só pode resultar em vitória dos democráticos, caso estes mobilizem as camadas populares. Cujo movimento traz para o palco questões que entram em choque com os limites do próprio capitalismo.
Por isto o PT está diante de uma encruzilhada: ou avançar por uma estrada de reformas estruturais, democráticas, populares e socialistas; ou conciliar com os defensores do desenvolvimento capitalista conservador. Que novamente estão demonstrando que não pagam para ver, motivo pelo qual já se fala de golpe contra a “ameaça comunista”.
O Brasil vive há alguns anos este dilema: ou construímos um caminho de desenvolvimento democrático que se articule com uma via de desenvolvimento socialista; ou no final das contas, por um caminho ou outro, acabará prevalecendo o desenvolvimento conservador.
O desfecho deste dilema depende de opções que estão sendo tomadas aqui e agora, mas é certo que veremos choques de proporção cada vez maior.  
Qual a posição de Dilma, Lula e o PT frente a este dilema?
O que foi feito ao longo destes doze anos pode ser resumido assim: os governos federais encabeçados pelo PT estão tornando possível recompor, mesmo que lentamente, a força objetiva e subjetiva da classe trabalhadora; mas não fomos capazes de desmontar as bases objetivas e subjetivas do poder do grande capital e seus aliados.
Para fazer isto, o PT precisará adotar outra estratégia. Nisto estamos empenhados.

Valter Pomar é historiador e militante do PT

















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