Fator de transformação
A revista Territórios
Transversais pediu que eu escrevesse um artigo sobre o seguinte tema: “Lulopetismo:
fator de transformação ou manutenção das bases sociais do Brasil no limiar do
Século XXI?”.
Responder exige
explicar o que compreendo por cada um dos termos da pergunta: o que são as “bases
sociais do Brasil”? Que transformações estão ocorrendo em nossa sociedade? Qual
o papel do PT e de Lula nessas transformações?
O Brasil é
uma sociedade capitalista, como a maior parte do planeta. O que diferencia a
formação social brasileira de outras é o processo específico, histórico, pelo
qual o capitalismo se desenvolveu aqui: dependência, desigualdade e democracia
restrita.
O
desenvolvimento do capitalismo no Brasil, nos momentos de crescimento intenso e
de recessão, em épocas de bonança internacional e de crise, foi possível graças
à manutenção de imensas taxas de desigualdade social, de fortes restrições às
liberdades democráticas (sem as quais a desigualdade seria posta em questão) e
de grande dependência externa (ideológica, militar, política, tecnológica, de
capitais, de mercados etc.).
Em outros
termos: os grandes capitalistas transformaram-se, ao longo do século XX, em
classe dominante, mantendo e aprofundando padrões de subordinação externa, exploração
econômica e opressão política herdadas de períodos pré-capitalistas. Houvesse
mais democracia e bem-estar social, os capitalistas brasileiros não teriam
enriquecido como enriqueceram.
Quem olha o
Brasil de hoje e compara com o Brasil de 1914, vê um país maior e mais
desenvolvido. Mas este crescimento/desenvolvimento foi obtido como? Longos
períodos de ditadura aberta ou de restrições fortes às liberdades democráticas
mais básicas. Uma constante dependência em relação às metrópoles capitalistas.
E uma intensificação, pelos mais variados meios, da exploração das classes
trabalhadoras (a de pequenos proprietários e a de assalariados).
Este
crescimento/desenvolvimento ocorreu através de intensa luta. No Brasil, a
história da transição capitalista (a partir de 1850) e do capitalismo industrial
(a partir de 1930) foi marcada por duro enfrentamento entre duas vias de desenvolvimento
capitalista.
Claro que havia
setores reacionários, agraristas, contrários ao desenvolvimento, que foram perdendo
influência à exata medida que o capitalismo central passou à fase imperialista,
de exportação de capitais, portanto em alguma medida estimulando o
desenvolvimento de parte da periferia.
Claro que
havia socialistas e comunistas. Mas até 1980, estas forças se viram diante de
duas situações: ou não tinham influência relevante na luta política e social;
ou se convertiam em linha auxiliar das forças que defendiam um desenvolvimento
capitalista democrático, contra aqueles que defendiam um desenvolvimento
capitalista conservador.
No embate
entre capitalismo democrático (que defendia desenvolver ampliando a democracia,
a soberania e o bem estar) e o capitalismo conservador (que implicava em desenvolver
conservando os níveis de desigualdade, dependência e democracia), quem
geralmente levou a melhor até 2002 foram os conservadores.
Há várias
causas para isto, mas duas delas têm muito interesse para o debate da situação
atual.
A primeira
causa é, exatamente, o atraso relativo do desenvolvimento capitalista no
Brasil. O capitalismo chegou ao Brasil bem depois de já estar instalado
solidamente nas regiões centrais. Durante
muito tempo conviveu com uma formação social que não era hegemonicamente
capitalista. E durante todo o século XX, permaneceu existindo uma defasagem
entre o nível de desenvolvimento capitalista no Brasil e nos países centrais.
Qual a
conclusão que a maior parte das forças políticas tirou deste fato? A de que
existe um grande espaço para o desenvolvimento capitalista no Brasil. Motivo
pelo qual o desenvolvimento foi e segue sendo palavra-chave na boca das
mais variadas correntes ideológicas e forças políticas. Mas qual
desenvolvimento?
Aí entra em
cena a segunda causa das vitórias conservadoras: certo paradoxo enfrentado
pelos que defendem um desenvolvimento capitalista democrático.
A saber: o
capitalismo tal como existe no Brasil depende de altas taxas de desigualdade,
conservadorismo político e dependência externa. Construir uma via de desenvolvimento
capitalista democrática implica, portanto, em choque com os próprios
capitalistas. Choque que só pode resultar em vitória dos democráticos, caso
estes mobilizem as camadas populares. Cujo movimento traz para o palco questões
que entram em choque com os limites do próprio capitalismo.
Por isto os
defensores do desenvolvimento capitalista democrático se viram frequentemente
diante de uma encruzilhada: ou avançar por uma estrada que daria numa transição
socialista; ou conciliar com os defensores do desenvolvimento capitalista
conservador. Sendo que estes nunca pagaram para ver, motivo pelo qual é muito
comum que os setores conservadores promovam golpes preventivos contra “ameaças
comunistas”, que na verdade não são comunistas, mas sim
democrático-capitalistas.
Em resumo: o
desenvolvimentismo conservador não apenas conta com as vantagens da inércia e da
força de quem é dominante, mas também com uma “fragilidade estrutural” do desenvolvimento
capitalista democrático. Fragilidade que
pode ser resumida assim: o capitalismo não se dá bem com a democracia.
De 1980 até
hoje, o que mudou?
Em primeiro
lugar, o desenvolvimento capitalista brasileiro atingiu grande maturidade. Com
isto, a classe trabalhadora assalariada passou a ter um peso maior que antes e
isto se traduziu numa mudança na liderança e na orientação dos setores
defensores de uma via capitalista democrática.
No segundo turno
das eleições de 1989, o conflito foi entre extremos: um neoliberal encabeçando
os que defendiam um desenvolvimento conservador, um socialista encabeçando os
que defendiam um desenvolvimento democrático.
Este fato
poderia ter resultado, nos anos 1990, numa mudança dos termos da equação
fundamental da história brasileira. Ao
invés do conflito entre duas vias de desenvolvimento capitalista (uma
conservadora e outra democrática), poderíamos ter passado a um conflito entre
via capitalista e via socialista de desenvolvimento.
Mas não foi
isto o que ocorreu. O PT e Lula continuaram liderando o enfrentamento com o
conservadorismo. Mas o fizeram a partir de um programa de desenvolvimento
capitalista democrático, não a partir de um programa socialista.
Por qual
motivo isto ocorreu?
Há
explicações para todos os gostos. Mas para quem acredita que os fatos
fundamentais da história não podem ser explicados por escolhas subjetivas, mas
sim que as escolhas subjetivas é que podem ser explicadas pelos fatos
fundamentais, é preciso entender o que ocorreu na luta de classes.
E o que
ocorreu na luta de classes, no Brasil e no mundo, nos anos 1990, é fartamente
conhecido: um retrocesso do socialismo, uma ofensiva capitalista, uma regressão
neoliberal.
Um dos efeitos
do neoliberalismo foi enfraquecer a classe trabalhadora brasileira e, com isto,
enfraquecer as bases objetivas de uma via de desenvolvimento socialista.
Claro que
diante deste fato objetivo, havia diversas alternativas. Uma delas seria dobrar
a aposta na defesa de uma via de desenvolvimento socialista, sem mediações.
Outra seria passar a ter como objetivo estratégico não mais o socialismo, mas
sim uma via de desenvolvimento capitalista democrática. Uma terceira seria
fazer um recuo tático, que nos permitisse reconstituir as bases estratégicas de
uma via de desenvolvimento socialista.
A partir de
1995, a posição majoritária no PT foi aderir ao desenvolvimento capitalista
democrático. Não foi uma mudança de direito, pois o socialismo segue nas
resoluções como objetivo estratégico do Partido. Mas foi uma mudança de fato e
que adquire cada vez mais cidadania no discurso petista, como se pode constatar
pela defesa veemente que vem sendo feita, de um “país de classe média”.
O PT venceu
as eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014 e governa o país orientado
por esta perspectiva estratégica, capitalista democrática. Neste sentido, foi
mais longe do que todos os seus antecessores. Mas também levou mais longe a
contradição fundamental de todo os que defendem uma via de desenvolvimento
capitalista democrática.
Repetimos o
que já dissemos antes: o capitalismo tal como existe no Brasil depende de altas
taxas de desigualdade, conservadorismo político e dependência externa.
Construir uma via de desenvolvimento capitalista democrática implica,
portanto, em choque com os próprios capitalistas. Choque que só pode resultar
em vitória dos democráticos, caso estes mobilizem as camadas populares. Cujo
movimento traz para o palco questões que entram em choque com os limites do
próprio capitalismo.
Por isto o
PT está diante de uma encruzilhada: ou avançar por uma estrada de reformas
estruturais, democráticas, populares e socialistas; ou conciliar com os
defensores do desenvolvimento capitalista conservador. Que novamente estão
demonstrando que não pagam para ver, motivo pelo qual já se fala de golpe contra
a “ameaça comunista”.
O Brasil vive
há alguns anos este dilema: ou construímos um caminho de desenvolvimento
democrático que se articule com uma via de desenvolvimento socialista; ou no
final das contas, por um caminho ou outro, acabará prevalecendo o
desenvolvimento conservador.
O desfecho
deste dilema depende de opções que estão sendo tomadas aqui e agora, mas é
certo que veremos choques de proporção cada vez maior.
Qual a
posição de Dilma, Lula e o PT frente a este dilema?
O que foi
feito ao longo destes doze anos pode ser resumido assim: os governos federais
encabeçados pelo PT estão tornando possível recompor, mesmo que lentamente, a
força objetiva e subjetiva da classe trabalhadora; mas não fomos capazes de
desmontar as bases objetivas e subjetivas do poder do grande capital e seus
aliados.
Para fazer
isto, o PT precisará adotar outra estratégia. Nisto estamos empenhados.
Valter Pomar
é historiador e militante do PT
Tenho consenso; argumentações me parecem racionais.
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