O companheiro Jaques Wagner é agora colunista de Carta Capital.
Seu primeiro texto, publicado na edição 1151 da referida revista, tem como título “Forças do Estado”.
Nele, Wagner adere à tese segundo a qual a demissão do “ministro da Defesa, seguida de inédita troca dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica”, deveu-se ao fato deles “não compactuarem com a sanha golpista do Planalto", o que "diz muita coisa. Reforça o caráter de Estado que caracteriza essa instituição”.
Não sei com base em quais fatos se baseia a afirmação de Wagner.
O que sei é que os quatro demitidos contribuíram, direta e indiretamente, para os golpes que vêm ocorrendo no Brasil desde 2016 (contra Dilma, contra Lula, contra as eleições de 2018, contra os direitos sociais, contra a soberania nacional etc.).
E
quanto mais leio e escuto a respeito da demissão, menos acredito que ela tenha
tido a ver com alguma objeção de consciência dos demitidos.
Entretanto, qualquer que seja a interpretação que façamos acerca da demissão, não consigo entender a lógica que leva Wagner a comemorar o fato de que a atitude dos demitidos “reforça o caráter de Estado que caracteriza essa instituição”.
Voltarei a isto
ao final deste comentário.
Diferente de
Wagner, não estudei em Colégio Militar, nem fiz serviço militar. Minhas experiências
pessoais com militares em geral e com generais em particular foram de outro
tipo. O mais importante, contudo, não são nossas experiências pessoais, mas a história.
E a história simplesmente não confirma que nossas Forças Armadas tenham
compromisso “com a soberania e a independência nacional”.
Aliás, o texto de Wagner traz um exemplo didático que indica o contrário. Cito: “dois ministros de Estado, um general do Exército e um almirante da Marinha, atravessando a Praça dos Três Poderes para entregar ao Congresso um projeto que autoriza a venda de uma das mais importantes empresas nacionais, a Eletrobras”.
Claro, Wagner atribui isto ao presidente. Mas este presidente não estaria lá se
os militares não tivessem contribuído para isso; e o governo Bolsonaro é inseparável
dos milhares (!) de militares que ocupam cargos de confiança nos mais variados
setores, inclusive o tal general que esteve “à frente do Ministério da Saúde,
por mais de nove meses, um general sem qualquer experiência em saúde pública,
justamente na maior crise sanitária do País”. Um general da ativa, é bom
lembrar.
Minha
impressão é que Wagner escreveu um texto sobre como ele gostaria que as coisas
fossem, não sobre como as coisas são.
Por exemplo:
Wagner diz que Bolsonaro é “um mau militar, que foi para a reserva justamente
pelo seu péssimo comportamento nos quartéis”. Verdade. Mas este mau militar foi
o candidato presidencial apoiado pelo comando das Forças Armadas; e ainda foi agraciado
por Villas Bôas com um diploma na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais.
Outro
exemplo: Wagner diz que as “Forças Armadas não se movem a partir da simpatia ou
da antipatia por governantes democraticamente eleitos. Não foi assim nos
governos do Partido dos Trabalhadores e não deve ser assim no atual”. Talvez
não devesse ser assim, mas a verdade é que as Forças Armadas se moveram a partir
da antipatia pelos governos Lula e Dilma, contribuindo ativamente para a prisão
de um e para o impeachment de outro.
Um terceiro
exemplo: Wagner diz que os militares teriam como “orientação maior” os “princípios
constitucionais”. Deveria ser assim. Mas as pressões contra o STF, em 2018, indicam
que os princípios constitucionais que interessam ao pessoal da farda são
aqueles do artigo 142 e da GLO.
Tenho a
impressão de que Wagner “passa o pano” motivado pelo objetivo de que “desarmemos
os espíritos e sigamos todos com o mesmo foco, que é salvar vidas. Depois,
partiremos para a necessária reconstrução do País. Tenho certeza de que, assim,
contaremos com o apoio patriótico de todos, inclusive desses servidores do
Estado brasileiro”.
Se for isto, minha opinião – novamente com base na experiência histórica recente, dos governos Lula e Dilma – é que passar o pano não contribui em nada.
Para começo de conversa, não é fato que todos tenhamos “o mesmo foco, que é salvar vidas”. A cúpula das Forças Armadas é cúmplice ativa e passiva de um governo que é aliado do vírus.
Em segundo lugar, não é correto alimentar a versão de que os militares apostaram no desenvolvimento, sem qualificar a natureza conservadora deste projeto, especialmente no que toca a aprofundar a desigualdade.
A ditadura (“rompimento democrático” é um eufemismo usado para passar o pano) não foi por acaso, foi uma decorrência daquela variante de desenvolvimento nacional, de espírito conservador.
Em terceiro lugar, se hoje a cúpula militar está alinhada com o neoliberalismo é porque – como antes – está alinhada com o imperialismo USA. Patriotismo ali é discurso para dias de festa.
Se queremos disputar as Forças Armadas, se queremos que ressurja ali uma corrente democrática, nacional-popular, de esquerda, se queremos Forças Armadas realmente capazes de cumprir um papel histórico positivo, então é preciso começar chamando as coisas pelo seu nome.
E aí chego no ponto que deixei pendente no início deste
texto: “o caráter de Estado que caracteriza essa instituição”.
Não tenho dúvida nenhuma de que as Forças Armadas são instituições de Estado. Mais ainda: são parte importante do núcleo duro do Estado realmente existente no Brasil. Que é um Estado antipopular, antidemocrático e antinacional. E por isso mesmo operaram entre 2016 e 2018 para derrotar o governo Dilma e a candidatura Lula, como já haviam feito antes em 1964 contra Jango/Brizola e em 1954 contra Vargas/Jango.
Portanto,
do ponto de vista estratégico/estrutural não consigo entender por qual motivo nós
de esquerda devemos comemorar que as forças armadas sejam “instituições de Estado”.
Vejamos agora o problema do ponto de vista tático: vamos supor, para facilitar o raciocínio, que o companheiro Jaques Wagner tenha razão e as demissões tenham ocorrido porque os 4 supostamente não compactuaram com a sanha golpista do Planalto.
Isso supostamente indicaria que haveria uma divisão nas forças armadas, entre os defensores dos três primeiros golpes (Dilma, Lula, 2018) e os defensores do “golpe dentro do golpe”.
A pergunta é: os que supostamente agora teriam se oposto ao “golpe
dentro do golpe”, por acaso teriam se convertido à democracia? Estariam dispostos
a aceitar que a esquerda volte ao governo, com plenos direitos, sem tutelas nem
chantagens?
Não há sinal algum disto. Pelo contrário, há sinais de que alguns militares, para proteger o fundamental (exclusão da esquerda e submissão aos EUA), estariam dispostos a investir numa terceira via, inclusive com certo estímulo da embaixada-de-qual-país-vocês-sabem-qual.
Portanto, também do ponto de vista tático, não estamos diante de uma disjuntiva
entre militares legalistas-democráticos e militares golpistas.
Por tudo
isso, acho que Wagner deveria propor à Carta Capital uma pequena mudança no
título de seu artigo: em vez de “Forças do Estado”, sugiro: "Forças do
Estado de exceção”.
Talvez não soe tão simpático. Mas seria mais preciso.
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Estreio, com
este artigo, como colunista de CartaCapital, o que muito me honra. Agradeço à
revista, em nome do jornalista Mino Carta, o convite. Espero contribuir para
reflexões importantes em tempos tão desafiadores.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCom esse tipo de interpretação da realidade, feita por Wagner, ficamos ainda mais distantes de promover as devidas mudanças que o país necessita
ResponderExcluirÉ verdade que Wagner fica voando e mostrando mais o que ele desejaria do que a verdadeira realidade. Ele esquece as reações aborrecidas dos militares frente aos resultados da Comissão da Verdade e ele ignora que todos os militares gostariam ver o Sérgio Moro no Planalto e a Lava Jato mandando no STF.
ResponderExcluirEntretanto, Pomar exagera na crítica ao Wagner e radicaliza suas externações para ataca-lo. De fato, a única crítica certa do Pomar é que Wagner não diz que os comandantes das FF AA, também aceitando o responso popular das eleições, sempre pretenderiam exercitar a tutela sobre o Estado brasileiro. E isso, no caso de vitória da esquerda em 2022, vai ter que ser enfrentado, elaborando um processo de democratização das FF AA baseado em leis e políticas públicas concretas e contundentes.
No meu comentário acima não apareceu meu nome: Alessandro Vigilante, Bahia.
ResponderExcluirSobre este assunto sugiro assistir ao ótimo vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=2CTaQHFkQTI