quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Comentários sobre a entrevista de Boulos

Guilherme Boulos, do MTST, concedeu uma entrevista ao jornal Valor.

Reproduzo abaixo a íntegra da entrevista, ou melhor, tal como ela foi editada e publicada pelo Valor.

A manchete do jornal é: "Ciclo do PT se encerrou, diz Boulos".

Boulos nega ter dito esta frase.

De fato, teria sido uma tolice dizer isto.

Primeiro, porque desde 2005 o PT já recebeu a extrema-unção diversas vezes, mas até agora resiste.

Segundo, porque de pré-candidato que briga com potenciais eleitores, nos basta Ciro Gomes.

Terceiro, porque apesar das críticas, grande parte da esquerda não faz mais do que reproduzir a estratégia seguida anteriormente pelo PT.

Um bom exemplo disto está na citada entrevista de Boulos.

Ele afirma que 2018 não é 2002. É verdade. Mas tampouco é 1989.

O que ocorreu com o PT e Lula em 1989, não ocorrerá em 2018 com o PSOL e Boulos.

O PT pode ser atropelado pela direita. Mas não será ultrapassado pela esquerda.

Claro que há quem pense que um eventual impedimento de Lula poderia criar as condições para esta ultrapassagem pela esquerda.

Imaginam que, sem Lula, o PT poderia vir a apoiar uma candidatura de outro partido; ou vir a lançar um nome petista com menor densidade eleitoral.

Situações que, ao menos em tese, poderiam beneficiar uma candidatura proveniente da esquerda crítica ao PT.

Ocorre que não foi isto o que o PT decidiu, na sua reunião de 15 e 16 de dezembro de 2017. Segundo a direção do PT, não há nem haverá plano B. O candidato será Lula, aconteça o que acontecer dia 24 de janeiro e posteriormente.

Claro, também, que esta acima descrita é a posição do PT. Tanto o PCdoB quanto o PSOL tem todo o direito de lançar e de manter até o final suas respectivas candidaturas presidenciais.

Mas caberia perguntar que papel estas candidaturas jogariam, num cenário fraudado pelo eventual impedimento de Lula concorrer.

Dito de outro jeito: as demais candidaturas de esquerda não correriam o risco de serem utilizadas para legitimar uma fraude, participando de um processo viciado na origem?

Não seria melhor formar, desde já, uma aliança com o PT e com Lula, em torno de um programa de revogação das medidas golpistas e de reformas estruturais? E enfrentarmos juntos -- com uma aliança de esquerda e sem golpistas -- o que vier pela frente?

Parte da esquerda não petista já decidiu que é melhor fazer isto.

Boulos parece, digamos, ter cada vez mais dúvidas a respeito.

Por um lado, afirma que “Lula é a maior liderança social e política do país, fez o governo mais popular da história da nova República e teve acertos e erros”.  
Apesar disso, considera a hipótese de ser candidato à presidência da República pelo PSOL.

Acontece que, caso Lula seja candidato, é pouco provável que haja espaço de massa para outra candidatura de esquerda. Salvo, é claro, que esta eventual candidatura tente crescer batendo no PT e em Lula, hipótese em que receberá generoso espaço da mídia golpista.

E, caso Lula não seja candidato, caberá responder o que foi comentando acima: se cabe a uma candidatura de esquerda agir de forma que pode ser manipulada para legitimar uma fraude.

O que dissemos até agora envolve algumas variáveis em aberto.

Seja como for, é muito curioso ver este tipo de dúvida e tentação eleitoral afetando alguém que critica a esquerda por ter deixado “de fazer o trabalho de base, de estar nas periferias”, de ter reduzido “sua atuação política à disputa do aparelho do Estado”.

Se é assim; e se é verdade que a crescente insatisfação popular abre espaço para saídas mais radicais, por qual motivo conceder centralidade para uma candidatura presidencial própria?

Isto faria e faz sentido, óbvio, para quem no fundo, no fundo, acha possível repetir a experiência dos governos do PT, sem cometer os erros do PT.

Objetivo que supõe fazer uma acumulação eleitoral de forças. Ao estilo do PT. 

O que gera uma contradição entre a prática e a teoria segundo a qual a “esquerda não pode ficar restrita a um projeto eleitoral”.

Deste ponto de vista, o trecho que considero mais interessante na entrevista de Boulos é o seguinte: 

Temos um ciclo se encerrando, o ciclo de um estratégia que foi capitaneada hegemonicamente pelo PT, inclusive nos seus governos, de que era possível ter avanços sem enfrentar a estrutura arcaica de privilégios. Nos governos Lula se teve avanço porque havia um crescimento médio de 4%. Com manejo orçamentário se fazia política social sem tirar nada do andar de cima. Quando a crise vem, isso não é mais possível. A esquerda tem de pensar rumos, um novo projeto, nova perspectiva. Essa perspectiva não tem que ser pensada para a próxima eleição apenas, mas para os próximos 10, 20, 30 anos”.

Aqui fica claro o problema do título dado pelo jornal para a entrevista: o Valor não atentou para a sutileza do argumento.

Afinal, o encerramento do ciclo de uma estratégia não necessariamente é o encerramento do ciclo do Partido que defendeu aquela estratégia.

Sutilezas a parte, há duas lacunas na resposta de Boulos, pelo menos na versão publicada pelo Valor.

A primeira lacuna é: a estratégia pode ter sido superada, mas Lula e o PT estão sendo ameaçados pela direita, não pela esquerda.

A segunda lacuna é: a estratégia supostamente superada não se limitou à conciliação; incluiu também o destaque dado às disputas eleitorais e aos governos.

Portanto, para os críticos desta estratégia, não basta dizer que uma nova perspectiva ”não tem que ser pensada para a próxima eleição apenas, mas para os próximos 10, 20, 30 anos”.

É preciso, também, destacar que uma nova perspectiva deve considerar a hipótese cada vez mais forte, da direita bloquear o caminho eleitoral pelos próximos 10, 20, 30 anos.

Um motivo a mais para não tentar repetir, em 2018, o que o PT tentou fazer em 1989.

Por tudo isto e por outros motivos, o melhor caminho é o da unidade, não apenas em torno do direito de Lula ser candidato, mas também em torno da candidatura Lula.


SEGUE A ENTREVISTA

"Ciclo do PT se encerrou, diz Boulos"
O ciclo do PT no poder se encerrou e a esquerda precisa tirar o foco da eleição de 2018 e reconstruir-se. A análise é do líder nacional do MTST, Guilherme Boulos, cotado para disputar a Presidência pelo Psol, em um eventual cenário eleitoral sem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Valor: Como será a esquerda pós-Lula?
Guilherme Boulos: Lula é a maior liderança social e política do país, fez o governo mais popular da história da nova República e teve acertos e erros. Mas não é possível achar que 2018 é 2002. O país está afundado em uma recessão enorme, está polarizado, a economia encolheu e a margem de manobra para uma composição social se reduziu muito. O desafio é pensar um programa que não seja o de conciliação, mas de enfrentamento e que bote o dedo na ferida de problemas estruturais.
Valor: Uma disputa eleitoral sem Lula une a esquerda ou a fragmenta ainda mais?
Existe a compreensão do direito do Lula de ser candidato como uma questão democrática. Não é de convergência programática, mas de não deixar que o Judiciário defina o processo eleitoral no tapetão. A esquerda tem diversidade. A intolerância e a unidade artificial nós deixamos para a direita. Eles são bons nisso. Defendo que a esquerda se apresente em 2018 com projeto de enfrentamento, sem alianças com golpistas. No primeiro turno é muito improvável ter candidatura única. Já se lançaram pré-candidaturas.
Valor: Quem são os candidatos que o senhor considera nesse campo? A Marina é de esquerda?
Não. Ela atravessou o rubicão quando apoiou Aécio Neves no segundo turno em 2014 e, em especial, quando apoiou o golpe [impeachment] em 2016. Marina foi para um caminho sem volta. Mas o cenário ainda está indefinido. O TRF-4 antecipou o julgamento para janeiro, o que é um escândalo, passou por cima de todos os ritos processuais e politizou.
Valor: Setores da esquerda apostam que a exclusão de Lula vai mobilizar as ruas contra o impedimento. O senhor vê essa disposição?
Boulos: Poucos foram às ruas para barrar uma reforma trabalhista que faz o país andar 80 anos para trás. Poucos foram às ruas para barrar uma emenda constitucional que congela investimentos públicos pelos próximos 20 anos. É um momento de perplexidade, de dificuldade. Por mais que haja uma grande insatisfação com o status quo, que se expressa na ampla rejeição do governo Temer e do Congresso, isso ainda não se traduziu em mobilização popular.
Valor: A que atribuiu isso?
Boulos: Parte da esquerda deixou de fazer o trabalho de base, de estar nas periferias e reduziu sua atuação política à disputa do aparelho do Estado. A esquerda paga por ter-se desvinculado dos setores sociais que dão sustentação a projetos de transformação política. Quem tem ocupado esse vácuo nas periferias urbanas são  as igrejas pentecostais. O abismo entre o que as pessoas querem e as decisões do governo e do Congresso é tão grande que mesmo com mobilizações e rejeição ampla de Temer elas pisam no freio. As pessoas pensam: 'vou para a rua e não está resolvendo'. Isso gera apatia, perplexidade. A longo prazo, cria uma fissura profunda entre Brasília e o Brasil, que se traduz no sentimento de insatisfação com a política e que pode se expressar em algum momento com explosões sociais.
Valor: Mas não há sinais disso...
Boulos: Ainda predomina a apatia, mas há sinais. Um exemplo é ocupação Povo Sem Medo, do MTST, em São Bernardo do Campo. Entramos no terreno com 500 pessoas e em uma semana tinhamos 5 mil. Hoje tem 8 mil famílias. São pessoas que foram por falta de alternativa e que estão se dispondo a lutar. Não é caso isolado, acontece em várias partes do país. O crescimento das ocupações é expressão do agravamento da crise social e da falta de resposta política. Ainda não tem potência para alterar a relação de forças sociais, mas anuncia a insatisfação popular.
Valor: O pós-Lula não tornará inadiável à esquerda enfrentar o tema do financiamento do Estado e da desigualdade no mundo do trabalho entre setores  do funcionalismo público e trabalhadores da iniciativa privada?
Boulos: Temos que nos defrontar com os privilégios, inclusive na Previdência, mas o debate está mal colocado. O foco deve estar nos militares, na cúpula do Judiciário, nos parlamentares. A Previdência deles é muito onerosa. O discurso de que a reforma é para combater privilégios é mentira.
Valor: É justo que um professor tenha regime de aposentadoria mais benéfico do que o gari que trabalha na limpeza pública?
A Previdência deve assegurar condições dignas a todos. O debate está mal colocado quando se parte da discussão de que há um grande déficit, que tem que cortar senão não se sustenta no longo prazo. A Constituição prevê receitas para a seguridade social que não são aplicadas na Previdência. O déficit também é resultado de manobra fiscal. A Previdência  é parte da sustentação social e econômica do país e move a receita de muitos municípios. Colocar a Previdência como vilã só interessa aos bancos que querem ampliar os fundos de previdência privada.
Valor: A situação fiscal de 2019 não vai obrigar a esquerda a ser mais realista?
A discussão para resolver o problema fiscal é uma reforma tributária progressiva, em que o andar de cima pague imposto. O financiamento do Estado tem que passar pelo imposto sobre grandes fortunas, maior progressividade no Imposto de Renda, com criação de novas faixas e isenção de faixas menores. Reforma tributária não é bolivariana, nem comunista. Foi feita na maior parte dos países capitalistas.
Valor: O sistema tributário é fruto de um consenso das forças políticas que aí estão. Como se muda isso sem alianças no Congresso?
Boulos: É preciso um plano de investimento emergencial que retome a economia no país, o emprego e a renda com o uso das reservas internacionais. Existe possibilidade para se fazer investimento público a partir daí e não depende do Legislativo. Existem duas formas de governabilidade. Uma é estritamente parlamentar e foi um dos erros que o PT cometeu: acreditar que a única forma de governar era em aliança com o PMDB. Outra possibilidade é construir governabilidade com respaldo popular.
Valor: Mas o tempo da mobilização da sociedade é mais longo que o da política...
Boulos: Mais ou menos. Veja o que aconteceu em países vizinhos, como no Equador, Bolívia, que chamaram Assembleias Constituintes e colocaram o povo no jogo. Sem isso, a esquerda nunca vai conseguir fazer um programa de esquerda e vai sempre ficar refém do PMDB. O PMDB nunca ganhou eleição presidencial e sempre esteve por trás de todos os governos. A única forma de se livrar disso é colocando o povo no tabuleiro.
Valor: No meio dessa apatia a que assistimos?
Boulos : A esquerda não pode ficar restrita a um projeto eleitoral. Temos um ciclo se encerrando, o ciclo de um estratégia que foi capitaneada hegemonicamente pelo PT, inclusive nos seus governos, de que era possível ter avanços sem enfrentar a estrutura arcaica de privilégios. Nos governos Lula se teve avanço porque havia um crescimento médio de 4%. Com manejo orçamentário se fazia política social sem tirar nada do andar de cima. Quando a crise vem, isso não é mais possível. A esquerda tem de pensar rumos, um novo projeto, nova perspectiva. Essa perspectiva não tem que ser pensada para a próxima eleição apenas, mas para os próximos 10, 20, 30 anos.

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