sábado, 14 de janeiro de 2012

As peripécias da ética, em tempos de Roberto Jefferson

Texto divulgado em 15 de junho de 2005.
O deputado Fernando Gabeira foi o entrevistado das páginas amarelas da Veja desta semana. Frei Betto foi o entrevistado da revista Época.
Gabeira é apresentado como ex-petista, "até 2003". Não se explica ao leitor que ele foi petista por alguns poucos anos, tendo vindo e tendo voltado para o Partido Verde. Já Frei Betto é apresentado como ex-assessor de Lula, um petista não-filiado.
O título da entrevista com Gabeira é "O PT acabou", adequado ao sentido geral do que ele disse à Veja. Já o da entrevista com Betto é "As alianças espúrias", não tão adequado assim.
Um fala que o governo e o PT já eram. Outro reafirma sua confiança em ambos, bem como em Lula. Mas tanto Betto quanto Gabeira repetem uma idéia que se tornou uma espécie de mantra político-filosófico: a centralidade da "ética" no projeto do PT.
Palavras de Gabeira: "a população já descobriu que o PT é igual aos outros que ele denunciava. [Isso aconteceu] quando ele achou que poderia abrir mão da bandeira ética que mantinha quando estava na oposição."
Palavras de Betto: "Uma pessoa ou instituição pode perder tudo, menos a ética. A ética foi o mais precioso capital político do PT, somado ao seu compromisso com os mais pobres. Seria um suicídio político o PT jogar na lata de lixo da História estes dois princípios normativos".
A partir daí, ambos desenvolvem um raciocínio muito semelhante. Vamos ver:
Palavras de Gabeira: "Se voce considerar a centro-esquerda brasileira, como o PT e o PSDB, existe uma base numérica para você dirigir o país (...) Nós poderíamos superar essa etapa da história brasileira criando uma frente política que fosse não tão rigidamente ideológica, como eles querem, mas uma frente política dos homens e mulheres de bem. Havendo essa demarcação ética, o governo conseguiria isolar progressivamente os fisiológicos."
Palavras de Betto: "Essa crise serve para depurar o jogo das alianças em 2006. Lula estava certo ao defender, contra a opinião majoritária do PT, que o melhor para o Brasil é o parlamentarismo". 
Conscientemente no caso de Gabeira, certamente não no caso de Betto, a adoção deste critério supostamente "ético", como alfa & ômega das alianças políticas, conduz ao... PSDB!!!
Suponhamos, apenas suponhamos, para efeito de análise, que o PSDB conseguisse passar num detector de mentiras israelense e pudesse ser considerado um partido "ético". Caberia perguntar, então, de que ética estamos falando?
O que significa "ética na política"? Adotar uma política neoliberal é "ético"? "Roubar" de acordo com a lei é "ético"?
Não deixa de ser curioso que, para Betto, o desencanto da esquerda e dos movimentos sociais para com o governo Lula não tenha "nada a ver com a atual crise". Ou seja: os lutadores do povo estão irritados, não por razões "éticas", mas por causa da "lentidão das mudanças, das reformas prometidas, das políticas sociais e [do] rumo da política econômica".
Mas de que ética estamos falando, então?
Ocorre que numa sociedade dividida em classes, ética e moral não são valores universais, nem tampouco de fácil entendimento. Betto sabe disso, o que não o impede de cometer a frase: "uma pessoa ou instituição pode perder tudo, menos a moral", frase que emenda com "a ética sempre foi o mais precioso capital político do PT".
A separação entre a ética e o programa, entre a democracia e seu conteúdo, entre a forma e o conteúdo, é típica da sociedade burguesa. Sua expressão mais conhecida é a "igualdade perante a lei".
Contra esta visão liberal, o movimento socialista propôs relacionar forma e conteúdo. A adoção da expressão "social-democracia" --nome que Marx deplorou—tinha originalmente este propósito.
O PT surgiu combinando estes elementos. Mas, no início dos anos 1990, exatamente durante o movimento "pela ética na política", parte de nosso partido acabou "aceitando" separar as coisas.
Considero como ato fundador desta separação o discurso do então líder do PT na Câmara dos Deputados, Eduardo Jorge, para quem o voto pelo impeachment de Collor era pela "ética na política", não tendo relação com o programa de governo collorido.
Naquele pequeno raciocínio, deu-se um salto mortal que ajuda a entender o que se passou no PT nos anos posteriores. A defesa de uma ética desencarnada de seu conteúdo programático, levou tanto a considerar os tucanos "éticos" (pois, muito supostamente, não estariam vinculados ao roubo de patrimônio público), quanto a considerar "ético" receber dinheiro de grandes empresas (pois supostamente isso não ameaçaria nossos compromissos programáticos).
Não admira que, parcialmente desencarnado de conteúdo, o movimento pela "ética" na política tenha acabado servido de ante-sala para a vitória de Fernando Henrique Cardoso e seus boys neoliberais, cuja ética de banqueiro todos conhecemos.
Tampouco admira o entusiasmo com que parte das chamadas classes médias se lançaram contra Collor e em favor, pouco depois, do Real. Há um traço de continuidade neste comportamento, que tem pouco a ver com a luta por melhorar as condições de vida do povo comum, mas sim com a idéia de que o Estado é um covil de corruptos, ladrões, preguiçosos.
O discurso da "ética na política", ostentado orgulhosamente por setores conservadores da classe média, acabou hegemonizado pela visão de mundo neoliberal. Não há porque ficar surpreso que hoje ele sirva de "argumento" para um udenismo redivivo e apaulistado atacar o governo Lula.
Mesmo parcelas da esquerda petista, angustiadas pela direitização programática do Partido, demonstram excessivo entusiasmo com as possibilidades proporcionadas pelo discurso "ético". Parecem não perceber que os mesmos meios de comunicação que estigmatizam o programa da esquerda, abrem generosos espaços para que os "radicais” critiquem supostos ou reais desvios éticos do governo e do partido.
Não deixa de ser irônico que, quinze anos depois de termos combatido a "democracia como valor universal", tenhamos agora que fazer o mesmo com este discurso da "ética como valor universal", supostamente desvinculado de conteúdo social, de programa, de interesses de classe. Digo supostamente, pois o discurso da “ética pura” tem as quatro patas enlameadas na atual ordem social.
Temos que lembrar, por exemplo, que a corrupção no sentido vulgar da palavra não é o principal problema do país. O principal problema do país é a desigualdade social. Aquela corrupção "vulgar", por maior que seja, por mais valores que pirateie, sempre será um subproduto da desigualdade, da concentração de riqueza e de poder. Não é sua causa.
É preciso lembrar que existe uma corrupção em sentido amplo: a apropriação do que é público, em favor de interesses privados. Nesse sentido, não há como esconder os laços entre a corrupção lato senso, o neoliberalismo e o capitalismo. Não apenas os laços indiretos, causados pelo ambiente ideológico competitivo e individualista, mas também os laços diretos, causados pelo lobby das grandes empresas sobre os governos.
É o caso de muitas decisões do Copom, do Cade, das mal-denominadas "agências reguladoras". Mesmo que estejam protegidas pela lei, mesmo que não rendam um tostão para os que decidem (acreditem, se quiserem), ainda sim trata-se da apropriação do público, pelo privado. O que nos leva a ter que discutir o caráter de classe do Estado, a expropriação dos produtores diretos etc.
Se o PT quiser enfrentar para valer a corrupção, então temos que recuperar um conceito de "ética na política" que vá além da limitada visão pequeno-burguesa, que acha chique o governador Alckmin comparecer à inauguração da Daslu, onde se cobra 4 mil reais por uma saia, ao mesmo tempo que se escandaliza com os 3 mil reais da corrupção flagrada em vídeo; que considera um absurdo fazer o registro em carteira de suas empregadas domésticas, ao mesmo tempo que as denomina de "secretárias".
Não é preciso muito esforço para perceber, nos ataques das revistas semanais ao PT, sob o pretexto do "mensalão", o velho preconceito de classe. Mas é preciso perceber que, por trás do discurso típico dos aristocratas contra os "novos ricos", há coisa muito mais séria: o recado de que os trabalhadores não são capazes de produzir uma alternativa para este país.
As opções ideológicas, programáticas e estratégicas do chamado "campo majoritário" ajudaram a nos colocar nesta situação. Para sair dela, não é mais suficiente mostrar serviço no combate à corrupção. É preciso mudar os rumos políticos do governo e do Partido. Outra política de alianças, outra política econômica: só assim será criado o ambiente necessário para outra ética na política.

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