O texto abaixo, de 2007, trata da polêmica entre Leandro Eliel e Wladimir Pomar.
Um companheiro postou, na lista nacional da AE, o texto "Estratégia socialista", de autoria do Wladimir Pomar e publicado pelo Correio da Cidadania.
O companheiro Leandro fez um comentário crítico sobre o texto do Wladimir.
Na minha opinião, ambos (Wladimir e Leandro) tratam de uma questão fundamental, mas ambos a abordam de maneira parcialmente equivocada.
Comecemos por uma definição preliminar: o que significa "estratégia socialista"?
No sentido mais amplo da palavra, estratégia socialista é o plano geral da “campanha” que travamos pela superação do capitalismo e pela implantação de uma sociedade sem classes e sem Estado, sem exploração nem opressão.
Se tivermos sucesso nesta “campanha”, teremos realizado duas transições:
a)uma transição de modo de produção: do capitalismo para o comunismo;
b)uma transição de era histórica: da era da sociedade humana dividida em classes, para a era da sociedade humana não dividida em classes.
Por óbvio, esta "transição" será um longo período histórico: estamos falando não apenas de décadas, mas muito provavelmente de séculos.
É comum designarmos com termos diferentes o objetivo final (uma sociedade comunista) e a transição (o socialismo).
Se o socialismo é um período de transição, isto significa que ele tem um ponto de partida (o capitalismo) e um ponto de chegada (o comunismo).
A transição consiste no processo de socialização da produção, da propriedade e do poder político.
Uma parte desta transição está em curso, já agora, no capitalismo: trata-se da ampliação da capacidade produtiva, condição material básica para a existência de uma sociedade sem classes.
Esta ampliação da capacidade de produzir é o que denominamos desenvolvimento das forças produtivas. Numa frase: se produz cada vez mais, com cada vez menos tempo de trabalho.
A ampliação da produtividade do trabalho cria a possibilidade de uma sociedade que não esteja baseada na exploração do trabalho; cria, ainda, a possibilidade de uma sociedade sem carências materiais.
A maneira como o capitalismo desenvolve as forças produtivas socializa o processo de produção. Como sabe qualquer trabalhador fabril, o processo produtivo é cada vez mais integrando, interdependente, coletivo e... não precisa do capitalista para funcionar.
Mas os capitalistas existem e se apropriam da maior parte da riqueza produzida pelo trabalho. Mais que isso: o controle que os capitalistas mantém sobre o processo de produção, faz com que este processo de produção (e por tabela, toda a sociedade) sofra crises cíclicas.
Portanto, para que as possibilidades (ou potencialidades) libertadoras da socialização da produção (ocorrida no capitalismo) tornem-se realidade, é necessário socializar também a propriedade. Para uma produção coletiva, uma propriedade também coletiva; para uma produção que é social, uma propriedade também social.
Mas para que a propriedade seja colocada sob controle social, é necessário alterar a correlação de forças política existente na sociedade.
É por isso que podemos dizer que a transição socialista tem um ponto de partida político (a conquista do poder pelos trabalhadores), um ponto de chegada político-social (a abolição das classes e do Estado) e um parâmetro (sem o qual não faz sentido falar em transição): a progressiva socialização da propriedade, da produção e do poder político.
Acontece que o processo de desenvolvimento capitalista não é homogêneo, não é uniforme. O grau de socialização da produção é desigual, de país para país, de ramo para ramo, de época para época.
Acontece, também, que não existe nenhuma relação direta, mecânica, entre estágio de desenvolvimento das forças produtivas, de um lado, e criação das condições necessárias à tomada do poder pelos trabalhadores.
No século XX, por exemplo, os trabalhadores tomaram o poder exatamente em países com baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas. O que os colocou diante da necessidade de utilizar o poder de Estado não apenas para "socializar a propriedade", mas também para "socializar a produção". O que, nas experiências do século XX, obrigou os governos revolucionários a lançar mão de medidas de democratização da propriedade privada (como a reforma agrária) e/ou a formas muito semelhantes ao capitalismo de Estado.
Voltando a questão inicial: o que significa "estratégia socialista"?
No sentido mais amplo da palavra, estratégia socialista é o plano geral da “campanha” que travamos pela superação do capitalismo e pela implantação de uma sociedade sem classes e sem Estado, sem exploração nem opressão.
Este plano geral, entretanto, deve ser dividido em duas partes:
a)a estratégia que visa conquistar o poder político;
b)a estratégia que visa socializar o poder, a propriedade e a produção, após a conquista do poder.
A primeira parte pode ser concluída em âmbito nacional. A segunda parte só pode ser concluída num terreno mais amplo, de preferência mundial.
Isto posto, podemos falar do que me parece o "equívoco parcial" do texto de Wladimir.
Segundo ele, "qualquer estratégia socialista tem que tratar como questões cruciais as formas de propriedade e as forças produtivas existentes em cada país capitalista dado. A relação entre elas é que define o modo como a sociedade produz os bens necessários à reprodução de seus membros, e como ela se divide em classes ou segmentos sociais".
Esta afirmação está correta. Em última análise, o que diferencia o socialismo marxista de outras correntes é exatamente isto: perceber que a superação do capitalismo é um problema histórico-material, não apenas subjetivo.
Assim, tanto a estratégia de conquista do poder, quanto a estratégia de construção do socialismo, devem levar em conta estas questões cruciais: as formas de propriedade e as forças produtivas existentes em cada país capitalista dado.
Entretanto, estas questões têm um peso distinto em cada uma das estratégias.
Por exemplo: se o estágio de desenvolvimento fosse a variável determinante na decisão estratégica sobre a conquista do poder, os trabalhadores não deveriam ter tomado o poder em nenhum dos países onde ocorreram "revoluções socialistas" ao longo do século vinte. Afinal, em todos estes países o estágio de desenvolvimento material, bem como das relações capitalistas, era extremamente baixo. Aliás e paradoxalmente, foi graças às revoluções que o desenvolvimento, em geral, se acelerou.
Portanto, a política (correlação de forças, possibilidade de sucesso, oportunidade posta pelo momento, inevitabilidade da luta direta pelo poder ou ser massacrado pela contra-revolução) constitui a variável determinante na estratégia de conquista do poder. Mas não é, tomada isoladamente, a variável determinante na estratégia de construção do socialismo.
Wladimir está totalmente correto na discussão sobre o que acontece depois da tomada do poder: "para que o Estado possa transformar todas as formas de propriedade em formas socialistas, não basta realizar uma revolução política".
É possível conquistar o poder num país economicamente atrasado. Mas não é possível socializar plenamente o poder e a propriedade, num país economicamente atrasado.
A socialização do poder e da propriedade precisa, pois, caminhar junto com a socialização da produção: é necessário desenvolver as forças produtivas, o que exigirá manter, durante determinado tempo, relações capitalistas de produção (sempre é bom lembrar: a exploração capitalista é um fator fundamental na ampliação da capacidade produtiva da humanidade).
Mas Wladimir está parcialmente equivocado quando sugere aplicar este raciocínio ("rever" a experiência soviética) para o caso brasileiro, de um governo eleito, não revolucionário.
Atenção: ele está parcialmente equivocado, não totalmente equivocado. O problema do desenvolvimento produtivo é fundamental para o sucesso do governo Lula, como foi fundamental para a sobrevivência do governo soviético.
E, tanto lá quanto aqui, apenas a política (no sentido da vontade) não é suficiente. Assaltar os céus não enche barriga, nem firmeza ideológica sozinha é suficiente para garantir a defesa nacional.
Entretanto, e neste “entretanto” reside o equívoco parcial de Wladimir, é preciso deixar clara a diferença fundamental existente entre a situação soviética e a nossa. Lá, o apelo a métodos capitalistas para desenvolver a capacidade produtiva era contrabalançado pela força política do Estado soviético. Que, como sabemos, muitas vezes foi mal usada.
Aqui, o desenvolvimento acelerado que todos queremos não tem, como contrapeso, um poder estatal pró-socialista.
Por isto, ao mesmo tempo que precisamos perceber que, na atual situação histórica, é fundamental que nosso governo impulsione o desenvolvimento produtivo, é fundamental também disputar a natureza deste desenvolvimento e reforçar, de maneira "desproporcional", o aspecto político.
Neste sentido, o dilema não está em favorecer ou não o setor privado. O dilema é outro: como equacionar o necessário desenvolvimento da capacidade produtiva, com a estratégia política de conquistar o poder.
É possível favorecer economicamente o setor privado e acumular politicamente forças; como é possível desfavorecer economicamente o setor privado e desacumular politicamente.
Wladimir faz a seguinte pergunta: “Aqueles que atacam o PT e Lula por favorecer o setor privado talvez devessem rever a experiência histórica soviética e dizer como pretendem escapar do mesmo dilema num país como o Brasil, cujas forças produtivas ainda são medianamente desenvolvidas, e onde as relações de propriedade capitalistas sequer viveram um estágio democrático amplo. E esclarecer, portanto, o que querem realmente dizer com ‘estratégia socialista’.”
A pergunta faz sentido. Leandro tenta responder, mas o faz de maneira parcialmente equivocada.
Segundo Leandro, “uma das enormes dificuldades da transição socialista é a impossibilidade de, nos marcos nacionais encontrar o necessário desenvolvimento das forças produtivas para a avançar no processo de transição socialista ao comunismo. Essa dificuldade, analisada também logo no início da revolução russa pelos bolcheviques seria superada pela revolução alemã e européia que, derrotada, não veio. Esses limites [levaram] uma parte dos marxistas a formularem a estratégia etapista, ou seja, de que o desenvolvimento das forças produtivas deveriam se desenvolver como uma etapa inicial, criando as condições materiais para a transição socialista, como uma etapa posterior. Isso levou parte dos comunistas a formulação de uma política de alianças com os chamados setores nacionais, democráticos e progressistas para cumprirem essa primeira etapa (...)”.
Certamente devemos criticar o etapismo, especialmente por ele não compreender que as condições para a conquista do poder e as condições para a construção do socialismo não se formam juntas. E que, portanto, esperar que ambas coincidam pode significar abrir mão da tomada do poder (e, em alguns países, abrir mão do próprio desenvolvimento das forças produtivas).
Mas também devemos reconhecer que a conquista do poder, em condições extremamente atrasadas do ponto de vista econômico-material, gerou tentativas de construção do socialismo totalmente diferentes do que o movimento socialista imaginava. Portanto, podemos e devemos recusar o etapismo, mas não podemos nem devemos recusar a problemática que aponta o caráter central do desenvolvimento das forças produtivas, numa estratégia socialista.
Curiosamente, embora professem pontos de vista mais ou menos contraditórios, tanto Leandro quanto Wladimir cometem um equívoco semelhante: sugerem adotar para o caso brasileiro, onde temos um governo eleito no curso de um processo que não tem nada de revolucionário, um marco de análise construído a partir de processos revolucionários.
Se é para fazer algum estudo comparado, sugiro tomar como marco de análise outros processos. Com o objetivo de construir as condições para que, no Brasil, o desenlace possa ser diferente.
Nosso problema, na minha opinião, reside no seguinte: como construir uma estratégia socialista, nos marcos de uma situação política não revolucionária, em que uma esquerda majoritariamente reformista está dirigindo um pedaço do aparelho de Estado?
Em particular: que política de desenvolvimento devemos defender?
Leandro afirma que “não basta que nosso governo ‘favoreça o setor privado’. Isso só causa aumento de exploração de mais valia e do lucro. Nossa estratégia deve combinar as tarefas democráticas com a transição socialista, não como etapas separadas, mas como movimento combinado, como bem definimos nas diversas resoluções partidárias que ficaram para trás. Devemos combinar nossa estratégia com o avanço da esquerda na América Latina. Cuba espera até hoje que façamos nossa parte para que continuem sua transição, a Bolívia só romperá seus limites estruturais se fizermos nossa parte. A Venezuela só se libertará de sua dependência do petróleo se também fizermos nossa parte. Assim como os limites que temos por aqui podem ser resolvidos, minimizados por forças produtivas existentes nos demais países. Por isso, e pela impossibilidade do capitalismo em resolver os seus próprios dilemas e da própria humanidade, é que o socialismo é necessário, não como uma utopia e valor a ser preservado, mas como construção imediata, mesmo que isso vá para além de nosso tempo histórico individual”.
O parágrafo acima não esclarece o que devemos fazer. É uma profissão de fé, admirável e correta, mas uma profissão de fé. Pelo que eu entendi, nós temos que fazer a nossa parte, apoiando os demais países dirigidos pela esquerda, que por sua vez farão a sua parte, nos apoiando, e desta forma todos nós superaremos os nossos limites.
Mas, vamos ao grão: fazer a “nossa parte” significa investir, por exemplo, na ampliação da infra-estrutura econômica, material, existente no continente. Nas condições atuais, não há como fazer isso, sem recorrer pesadamente ao setor privado. Devemos fazer isso? Ou isso seria combinar de maneira incorreta as tarefas democráticas com as tarefas socialistas?
Repetindo o que disse antes: precisamos equacionar o necessário desenvolvimento da capacidade produtiva (que é um problema tanto tático quanto estratégico), com a estratégia política de disputa e conquista do poder.
Trata-se, na minha opinião, de adotar medidas que aumentem a fortaleza social e política das classes trabalhadoras; que ampliem o peso do capitalismo monopolista de Estado, frente ao capitalismo monopolista privado; que ampliem o peso do capitalismo democrático, frente ao capital monopolista privado; que ampliem o setor público não-mercantil (políticas sociais), frente ao setor mercantil; que ampliem a forma produtiva do capital, frente a forma especulativa.
E o nó, o centro da questão, está menos na economia estrito senso, mas no conjunto da obra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário