Conheci César Benjamin, creio, no Instituto Cajamar, quando ele participou de um programa de formação voltado a dirigentes partidários. Depois, participamos da Articulação de Esquerda, da qual ele saiu ao romper com o PT, em 1995. Posteriormente, César se engajou na Consulta Popular, até sair desta organização para assumir a condição de candidato à vice-presidente na chapa encabeçada por Heloísa Helena em 2006. Quem quiser mais detalhes, pode ler aqui:
https://valterpomar.blogspot.com/2014/07/texto-de-2006-sobre-surpreendente.html?m=1
Anos depois,
em 2009, César foi protagonista de uma história bizarra, para não dizer outra
coisa, que está parcialmente relatada aqui: https://vermelho.org.br/2009/12/06/ombudsman-e-leitores-condenam-folha-por-estupro-de-lula/
Depois
disso, só voltei a ter muita notícia de César quando ele foi secretário de
educação de Marcelo Crivella, função da qual foi exonerado em julho de 2018. Finalmente,
em novembro de 2024 encontrei César pessoalmente no lançamento de um livro de
Xi Jinping. Aliás, registro que minha melhor recordação a respeito dele são os
livros que produz na editora Contraponto, sempre muito bem editados.
Tendo em vista a trajetória acima resumida, não me espantou ler em seu perfil no Facebook um texto profundamente pessimista, cuja íntegra reproduzo ao final.
Apesar
do conteúdo, o texto de César tem a qualidade de expor um ponto de vista
bastante disseminado em certa parcela da esquerda, motivo pelo qual decidi
fazer os comentários que seguem.
César começa
seu texto dizendo que tem “evitado perder tempo com o debate político
brasileiro da atualidade”. E termina afirmando o seguinte: “Não me peçam uma
solução, que não vejo. Saí do PT em 1995, dizendo exatamente o que digo agora,
e permaneci até há pouco tempo buscando um caminho. Perdi sempre. Lamento que a
história tenha me dado razão”.
Não concordo que César diga agora, em 2025, “exatamente” o que dizia em 1995.
Entendo perfeitamente
a necessidade de acreditar que sempre se esteve do lado certo da história. Mas como demonstram sua passagem pela Consulta e pelo PSOL, naquela época César não
havia desistido de “buscar um caminho”, nem considerava perda de tempo “o
debate político brasileiro da atualidade”.
Acrescento
que, mesmo discordando das posições de César, acho simplesmente terrível que um quadro que
se considera pertencente à esquerda pense, escreva e publique algo tão
derrotista.
César diz
que “o Brasil vive uma longa fase de degeneração sem transformação, cujo final
ainda não podemos ver”. De fato, desde o final dos anos 1970 até hoje o Brasil
vem sendo empurrado para o passado, ou seja, para a condição de subpotência
primário exportadora, paraíso do capital financeiro e, por óbvio, um dos países
mais desiguais do planeta. A única maneira de interromper esta “degeneração” é
com “transformação”, com rupturas, com mudanças revolucionárias. E isso até
agora não ocorreu.
Admitindo que seja esta a situação, a pergunta é: o que fazer diante disso? César responde o seguinte: “A minha geração perdeu e uma nova não amadureceu. Isso afeta grandemente a qualidade dos debates.”
Realmente, o
nível dos debates políticos e ideológicos está mais baixo hoje do que era há 30
anos. Mas a questão principal não está na “qualidade dos debates”, mas sim na baixa
intensidade das lutas promovidas pelas classes trabalhadoras. Baixa intensidade em
termos quantitativos e em termos qualitativos, ou seja, quantos lutam e pelo
que lutam. É isso que afeta e explica, em boa medida, a “qualidade dos debates”.
Supondo que
isso seja verdade, o que fazer? Há várias alternativas, algumas que considero erradas e
outras que considero inaceitáveis. Uma das que tenho como inaceitáveis é, exatamente, a enunciada por César:
“[evitar] perder tempo com o debate político brasileiro da atualidade” e deixar
de buscar “um caminho”.
César acha “inútil
debater” com o que ele chama de “lulistas”, “pois estão entrincheirados em uma
posição inexpugnável: Lula é o que temos, a alternativa é pior. Têm razão nesse
ponto, se perdermos de vista a política como um processo.”
É bastante curioso que César faça esta crítica ao que ele chama de lulistas. Afinal, ao mesmo tempo que afirma que o PT “caminha para terminar seus dias com o slogan de Margareth Tatcher” - “não há alternativa” - César afirma que olhando a política “como um processo”, ele não consegue enxergar uma alternativa. Ou seja: o que vai acontecer com o PT está por definir, mas a posição de César já está definida: quando olha a situação e o “processo”, não vê “solução” - ou seja, não vê alternativa. Portanto, poderíamos dizer ser ele e não o PT quem “caminha para terminar seus dias com o slogan de Margareth Tatcher”.
Da crítica aos
“lulistas”, César passa sem mediações à crítica ao PT. Como César, eu também conheci o PT nos anos 1980. Mas diferente de César, eu lembro que no PT da época havia
posições muito diferentes acerca de absolutamente tudo. Portanto, não é fato que o
conjunto do Partido se considerasse “revolucionário”, muito menos que se
considerasse “o único partido revolucionário”, nem tampouco que houvesse uma
única definição acerca do que significava ser revolucionário, ou socialista.
Talvez, ao falar do caráter revolucionário do PT nos seus primórdios, César
esteja se referindo à expectativa que ele e muitos de nós tínhamos em relação ao
PT. Mas o PT realmente existente nunca foi exatamente isso, nunca foi somente isso. Portanto não podemos julgar o papel histórico PT a partir da frustração de nossas expectativas.
Também segundo César, “o tempo passou, e o PT se transformou no exato oposto do
que anunciava ser. Tendo rompido com sua origem, mas sem compreender essa
ruptura, não sabe mais o que é. Pois não pode assumir que se transformou em um
partido da ordem. Apresenta-se como eternamente aprisionado pela ‘correlação de
forças’.”
Acho genial resumir quatro décadas assim: “o tempo passou”.
Nesse “tempo que passou”, a União Soviética acabou, o neoliberalismo
triunfou, a socialdemocracia europeia foi se transformando em social-liberal e neoliberal, as
sociedades desenvolvimentistas e as antigas colônias viveram processos regressivos,
os Estados Unidos entraram em modo imperial unilateral, o neoliberalismo entrou
em crise, a China ascendeu, a extrema-direita ganhou espaço etc etc.
Também nesse “tempo
que passou”, aqui na América Latina tivemos um ciclo neoliberal, um ciclo de governos
progressistas e de esquerda, um ciclo de golpes ultraliberais, uma tentativa de
retomada do ciclo progressista e novas vitórias da extrema-direita.
Foram tantos
acontecimentos nesses 45 anos, que o surpreendente não é que o PT tenha mudado.
O surpreendente é que, apesar de todas as mudanças que sofreu desde 1989 e até hoje, o PT
segue sendo um dos polos da política brasileira, expressando no plano
político-eleitoral a posição da esmagadora maioria dos trabalhadores com consciência de
classe.
César,
quando fala que o PT rompeu com sua origem, está se referindo – creio eu – àquele
“PT revolucionário” que ele acredita ter existido e que ele considera não
existir mais. Do meu lado, reconhecendo (e combatendo) as mudanças negativas, eu comemoro o fato de que – mesmo tendo se moderado
brutalmente – o PT conseguiu manter e ampliar sua condição de representante político-eleitoral dos
trabalhadores com consciência de classe.
Detalhe: César subestima os petistas. Existem dentro do Partido setores que compreendem perfeitamente que houve uma mudança na orientação política do Partido. Alguns compreendem e apoiam esta mudança; outros compreendem e combatem esta mudança.
Quando setores do PT apoiam políticas moderadas ou de direita, não se trata de ignorância de quem não “compreende essa ruptura”, atitude de quem “não sabe mais o que é”. Quando setores do PT apoiam o social-liberalismo ou coisa pior, o fazem por análise, por opção. Errada, mas consciente.
A questão é:
isso teria transformado o PT “em um partido da ordem”? César acha que sim. Acontece que a classe dominante acha que não. E, cá entre nós, quando se trata de discutir
este tema, eu prefiro tomar a classe dominante como parâmetro.
Aliás, um dos grandes erros cometidos pelos que defendem a social-democratização do PT – sua conversão num partido da ordem capitalista – é não perceber que no Brasil não existe espaço para uma “verdadeira” social-democracia, entre outros motivos porque o Brasil não é um país imperialista e, portanto, nossa classe dominante não tem como “comprar a paz social” dentro do país, usando para isso recursos capturados na periferia do mundo.
Nós estamos
na periferia do mundo, portanto a opção por adaptar nosso Partido à ordem levaria à
destruição do Partido, não à sua transformação em “partido da ordem”.
César afirma que o PT “apresenta-se como eternamente aprisionado pela ‘correlação de forças’.” Isto é parcialmente correto. Parcialmente porque nem sempre foi ou é assim. Parcialmente, porque há setores do PT que não pensam nem agem assim. E, ainda, porque há outros setores da esquerda brasileira capturados pela mesma lógica.
César vai além: diz que Lula e o PT seriam “integrantes orgânicos desse sistema, construtores e suportes dele, que só se fortaleceu nos vinte últimos anos. Pois o PT nos governa despolitizando e desmobilizando, ou seja, enfraquecendo o povo.”
Nos “vinte últimos anos” significa desde 2005 até hoje. A escolha da data é curiosa, pois foi exatamente em 2005 que o “sistema” quase destruiu o PT. E o “sistema” tentou novamente destruir o PT entre 2016 e 2018. E repetiu a tentativa durante o governo Bolsonaro. E está tentando de novo agora.
Isto posto, convenhamos: se o PT fosse mesmo integrante orgânico, construtor e suporte do “sistema”,
por qual motivo a classe dominante seguiria lutando para domesticar, derrotar e
destruir o PT? Veja: não se pode negar que haja algum grau de integração à ordem, até porque não se atua numa sociedade - mesmo contra ela - sem ao mesmo tempo ser parte dela. O problema está em, digamos, determinar o grau desta integração.
César diz que o PT “nos governa” – quem dera fosse verdade que tivéssemos o Partido a governar – “despolitizando”, “desmobilizando” e “enfraquecendo” o povo. Admitamos que há elementos de verdade nessa afirmação, como se pode constatar contrastando os 60 milhões de votos de Lula com os pouco mais de 8 milhões de sindicalizados no país inteiro, mostrando que não temos conseguido convencer o trabalhador que vota em nós acerca da necessidade de se organizar e mobilizar.
Outra prova de que há elementos de verdade na afirmação de César é o fato do percentual de votos válidos nas candidaturas presidenciais petistas vir decaindo, assim como tem caído nossa votação em outros terrenos.
Mas existe o outro lado da moeda: se o PT não existisse, como estaríamos? Quem teria imposto limites às políticas neoliberais? Quem teria derrotado a extrema-direita em 2022? Quem expressaria no plano político-eleitoral e noutros terrenos a posição da maior parte das classes trabalhadoras com consciência de classe?
A rigor,
se observamos de onde veio o voto petista nas últimas eleições, o que percebemos
é o contrário do que César diz: afinal, a existência do PT tem sido um fator de politização, de fortalecimento e de mobilização para amplas parcelas do povo
brasileiro.
Há motivos para ficar insatisfeito e muito preocupado? Sim, claro que há.
Fiz campanha para o PT pela primeira vez em 1982 e desde então acompanho ativamente o Partido. E tenho todos os motivos do mundo para dizer que, se não mudarmos de estratégia, corremos riscos gravíssimos no curto prazo.
O que César afirma é algo diferente: ele diz que não quer perder tempo com o debate
político brasileiro da atualidade, depois desanca o PT e em seguida reafirma que
não vê “solução”. Compreensível: como ele considera o PT perdido, para ele mudar os rumos do PT não constitui uma solução. E como - sem o PT - não há como derrotar a
direita no curto prazo, o problema posto não tem resposta.
César cobre Lula de acusações, entre as quais a de “obter ganhos passageiros na pequena política, que é a que lhe interessa, em troca de impulsionar a degeneração cumulativa da vida política do Brasil.” E vai além: acusa Lula de ser “o principal construtor” da “correlação de forças”.
Quem dera isso fosse verdade. Mas infelizmente não é: existe o
governo Trump, existe a classe dominante brasileira, existe a direita
tradicional, o Centrão, a extrema-direita, existem os meios de comunicação etc.
Não sou
lulista, seja lá o que isso for. Nem sou adepto das posições atualmente majoritárias
no PT. Mas os que defendem estas posições, na sua ampla maioria, mesmo errados estão tentando
fazer alguma coisa. Já César, como ele próprio diz, não está mais buscando um
caminho. Agindo assim, com base no que César pode criticar aqueles que - supostamente ou de fato - não “desafiam
a correlação de forças”??
Um último comentário sobre o texto de César: há muitas maneiras de “desmoralizar a militância de esquerda”. Não fazer a defesa firme da Palestina e da Venezuela seria uma delas. Mas outra maneira de desmoralizar a esquerda consiste em produzir diagnósticos que levam as pessoas a concluir que nossos problemas não teriam “solução”. Mesmo quando vem embalada em grandiloquência, a impotência não é alternativa.
Segue abaixo o texto citado de César Benjamin
Meus amigos
sabem que tenho evitado perder tempo com o debate político brasileiro da
atualidade. Creio que o Brasil vive uma longa fase de degeneração sem
transformação, cujo final ainda não podemos ver. A minha geração perdeu e uma
nova não amadureceu. Isso afeta grandemente a qualidade dos debates.
Bolsonaristas e integrantes do chamado Centrão são lixo. Não digo isso dos
lulistas, que são a maioria dos meus amigos. Afetos importam. Mesmo com eles,
porém, acho inútil debater. Pois estão entrincheirados em uma posição
inexpugnável: Lula é o que temos, a alternativa é pior. Têm razão nesse ponto,
se perdermos de vista a política como um processo.
A evolução do PT é curiosa. Quando surgiu e, depois, quando ainda era jovem
considerava-se o único partido revolucionário. Vivi essa fase. O antigo PCB era
reformista, expressão muito pejorativa na época. O trabalhismo era burguês. A
socialdemocracia era conciliadora. O sindicalismo tradicional era pelego. Para
fazer a revolução era preciso jogar fora todo o passado.
O tempo passou, e o PT se transformou no exato oposto do que anunciava ser.
Tendo rompido com sua origem, mas sem compreender essa ruptura, não sabe mais o
que é. Pois não pode assumir que se transformou em um partido da ordem.
Apresenta-se como eternamente aprisionado pela “correlação de forças”.
Lula seria uma espécie de Dom Quixote em luta permanente contra as deformações
do sistema político brasileiro, enfrentando os maus. Quando, na verdade, ele e
o PT são integrantes orgânicos desse sistema, construtores e suportes dele, que
só se fortaleceu nos vinte últimos anos. Pois o PT nos governa despolitizando e
desmobilizando, ou seja, enfraquecendo o povo.
A “correlação de forças” não surge do nada. Quando Lula entrega 1.200 estações
de rádio e TV aos grupos pentecostais, quando doa ministérios e bancos estatais
ao Centrão, quando aceita o chamado orçamento secreto etc etc ele está
construindo a correlação de forças. Quando desmoraliza a militância de
esquerda, idem. Em cada caso, obtém ganhos passageiros na pequena política, que
é a que lhe interessa, em troca de impulsionar a degeneração cumulativa da vida
política do Brasil.
Com a direita forte e a esquerda fraca, só nos resta – dizem – apoiar o próprio
Lula, em nome de uma correlação de forças da qual ele mesmo tem sido o
principal construtor. Ele joga esse jogo conscientemente. Há muito perdeu
completamente o respeito por uma esquerda que se deixa aprisionar nessa
armadilha.
Aquele partido que se considerava o mais revolucionário do Brasil caminha para
terminar seus dias com o slogan de Margareth Tatcher: “não há alternativa”.
Mesmo se vier a se alinhar abertamente com a invasão da Venezuela – não está
longe disso –, os lulistas o apoiarão.
Os líderes transformadores, mesmo quando não revolucionários, são os que
desafiam a correlação de forças. Foi assim, agindo contra a correlação de
forças, que criamos o PT há mais de 40 anos.
Não me peçam uma solução, que não vejo. Saí do PT em 1995, dizendo exatamente o
que digo agora, e permaneci até há pouco tempo buscando um caminho. Perdi
sempre. Lamento que a história tenha me dado razão.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Amor_fati
ResponderExcluirhttps://en.wikipedia.org/wiki/Amor_fati
É também sempre bom recordar que o jovem Marx em sua tese comparativa entre Demócrito e Epicuro citou esse último "...é uma desgraça viver na necessidade, mas viver na necessidade não é uma necessidade. Estão abertos em toda parte os caminhos para a liberdade, que são muitos curtos e fáceis. Agradeçamos a Deus que ninguém pode ser detido na vida. É permitido domar a própria necessidade." (Boitempo, p.49)
Claro que nem Marx nem os gregos contavam com Lula e os petistas brasileiros.
Gosto dos que jogam o jogo, mesmo com erros, sejam assumidos ou não. E assumir que foi vencido pela História não faz desse autor (Benjamin) menos ressentido e fora do jogo.O PT é tão antigo e importante que foi celeiro de pensadores, mesmo os que hoje o refutam. Prefiro viver uma contradição constante que não afeta meus princípios. Sigo petista até o fim. E não porque falte alternativa. Mas porque acredito nesta, que abraço.
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